Esta é a história de um assassinato. Um caso de intolerância política, pistolagem, cumplicidade das autoridades, foro privilegiado do mandante e impunidade de todos os envolvidos. A vítima, como tantas vezes no Brasil, era jornalista. Mas esse não foi um crime como qualquer outro. Foi o primeiro desse tipo na história do país.Os restos mortais enterrados no Cemitério da Consolação, em São Paulo, são os do médico italiano e editor do jornal Observador Constitucional, Líbero Badaró. Ele faleceu no dia 21 de novembro de 1830, em consequência dos ferimentos causados pelo tiro de pistola, disparado à queima-roupa pelo imigrante alemão Henrique Stock, a mando do desembargador ouvidor Candido Ladislau Japi-Assú. As 24 horas transcorridas entre a emboscada armada diante de sua casa e sua morte deram-lhe o tempo suficiente para que deixasse seu testamento político e fornecesse as informações que permitiriam à polícia prender o auto do disparo.
O cortejo fúnebre ocupou toda a distância entre sua casa, na hoje Rua Líbero Badaró, e a Capela da Ordem Terceira do Carmo, numa distância de aproximadamente 1,2 km, no atual centro histórico da capital paulista.
A morte de Badaró deixou a cidade de apenas 9 mil habitantes à beira da insurreição e gerou protestos em vários pontos do Brasil. Japi-Assú foi julgado e absolvido por seus pares no Rio de Janeiro, convenientemente longe da cena do crime e da pressão popular. A mesma instância judicial reviu a condenação do pistoleiro, absolvendo-o.
O jornalista
Giovanni Battista Libero Badarò nasceu em 1798, na vila de Laigueglia, perto de Gênova. Seu pai era um médico liberal de extraordinária erudição, como atestam gravuras retratando sua imensa biblioteca. Estudou em Gênova e Bolonha, antes de se formar em Medicina, em agosto de 1825, pela Universidade de Turim. Recém-formado, decidiu ganhar o mundo. Tinha 28 anos, mas parecia mais velho. Era alto e magro, usava longas suíças e óculos de lentes redondas.
Badaró chegou ao Brasil, em 1826, atraído por uma terra que, aos olhos de muitos, já era o país do futuro e uma das poucas nações governadas por um imperador tido como liberal que aceitava livremente a submeter-se a uma Constituição. Ainda no Rio de Janeiro, tornou-se amigo de outro jornalista que se destacava pelas ideias liberais, Evaristo da Veiga. Em pouco tempo, ele e seus correligionários viram suas teses perderem terreno perante o avanço das forças conservadoras, diante das quais o imperador Pedro I, que num dia de glória havia sido aclamado como "Protetor Perpétuo do Brasil", se isolava e assumia atitudes autoritárias a cada dia que passava.
Badaró chegou a São Paulo no início de 1828. Nessa época, os sinais de que a reação conservadora ganhava força estavam por toda a parte e seus líderes eram cada vez mais truculentos. Mesmo assim, ele lançou, em 23 de outubro de 1829, o seu Observador Constitucional um bissemanário sem anúncios, de 30 cm de altura por 20 cm de largura, quatro páginas e vendido por 80 réis, impresso na tipografia do jornal que já circulava na cidade, O Farol Paulistano, de José da Costa Carvalho, com quem se hospedou, antes de alugar uma pequena casa na Rua São José (atual Líbero Badaró) .
Em São Paulo, os reacionários ocupavam os principais cargos provinciais: o de governador, exercido numa interinidade sem fim pelo vice-governador e bispo dom Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, o de comandante de armas, coronel Carlos Maria de Oliva, e o de chefe do Poder Judiciário, o desembargador ouvidor Candido Ladislau Japi-Assú. Este odiava especialmente Badaró, por tê-lo lançado no ridículo ao induzi-lo a revelar seu ignorante conservadorismo, censurando peças teatrais que não existiam.
Os redutos liberais eram formados por alguns cidadãos que compunham a pequena burguesia, pelos estudantes da ainda incipiente Faculdade de Direito e pela maioria da Câmara Municipal, que chegou a requerer ao governador em exercício que tomasse providências diante do "procedimento anticonstitucional, arbitrário e tirânico do ouvidor". Apreensivos, seus amigos cuidavam para que não andasse só. Mas foi só que ele voltou para casa naquela noite de 20 de novembro de 1830.
Crime aconteceu na rua que hoje leva seu nome
Líbero Badaró se aproximava de sua casa entre 10 e meia e 11 horas da noite de 20 de novembro de 1830, quando viu dois homens sentados nas proximidades. Na rua escura, iluminada apenas pela lua cheia, perguntaram-lhe se era o dr. João Baptista Badaró. Diante da resposta afirmativa, disseram que vinham de parte do ouvidor. Badaró mal teve tempo de dizer que não era amigo de Japi-Assú quando sentiu no ventre o impacto do tiro de pistola. A bala causou ferimentos internos incuráveis que lhe provocaram uma agonia dolorosa por quase 24 horas, tempo suficiente para que, na presença de testemunhas respeitadas na cidade, fosse interrogado pelo juiz José da Silva Merciana, cujos "autos da devassa" detalhadamente elaborados permitiram à polícia capturar alguns suspeitos.
Ao juiz, Badaró declarou que não conhecia os atacantes, mas pelo sotaque sabia que eram alemães e, indagado se tinha suspeita de quem eram os responsáveis, não hesitou em apontar como mandante o desembargador-ouvidor Japi-Assú. Era mais do que uma suspeita, pois até o escrivão da Ouvidoria, Amaro José Vieira, em seu depoimento posterior ao crime, disse tê-lo advertido diversas vezes que escutara de seu chefe afirmações de que pretendia matá-lo. O que o jornalista não sabia era que seu assassinato foi cuidadosamente planejado e sua execução segundo pesquisa de Argimiro da Silveira, publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo em 1890 , começou numa chácara da Freguezia do Braz, quando ao tenente Carlos José da Costa, vindo do Rio para matá-lo, foi indicado o alemão Henrique Stock para acompanhá-lo, identificar e executar a vítima. Badaró faleceu em consequência de hemorragia interna, às 10 horas de 21 de novembro.
A notícia do atentado a Badaró se espalhou rapidamente e a pequena capital da Província de São Paulo viveu dias agitados, com grupos armados percorrendo as ruas exigindo a prisão dos autores e mandantes do crime. Stock e outro alemão logo foram presos, mas o ouvidor se refugiou na casa do comandante militar, de onde só saiu depois de uma negociação com o bispo-governador interino com a participação de outros membros do Conselho e Governo da Província, entre os quais se destacou o mais tarde regente, padre Diogo Antônio Feijó. A pretexto de protegê-lo da ira popular e sob a alegação de que o acusado gozava de foro privilegiado, foi decidido que Japi-Assú seria conduzido ao Rio de Janeiro, não preso, mas sob escolta, para lá ser julgado.
Carlos Alves Müller é assessor da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB)