Entre 2010 e 2014, a jornalista paulistana Suzana Singer ocupou um cargo que lhe garantiu uma sala com secretária, estagiária, caixa de e-mail lotada e um telefone apitando feito uma chaleira. “Uma solidão”, diz, sobre o período em que ocupou o posto de ombudsman do jornal Folha de S. Paulo. O isolamento era uma exigência da tarefa de “representante do cidadão” dentro de um grande veículo de imprensa. Saíram os ruidosos colegas de mesa na redação – movidos a notícias – entraram os militantes, representantes de governos, os leitores comuns e seus problemas –, todos vivas vozes para os ouvidos de Suzana. “Cheguei a me sentir num CVV (Centro de Valorização da Vida)”, brinca.
A experiência (que nos bastidores da imprensa muitos consideram “suicida”) lhe valeu, reconhece a hoje editora de Treinamento da Folha. Sua sala em separado funcionou como um mirante para analisar os jornais e suas cambalhotas, algumas ladeira abaixo. Não ficou a salvo das misérias que acompanham o setor, mas cimentou algumas convicções: 1) é urgente que surja um modelo de negócio que garanta jornalismo de qualidade; 2) a tara por audiência deve ser substituída por observações maduras sobre o comportamento do leitor; 3) não vale tudo em nome do humor. Não, Suzana Singer não publicaria as charges do jornal satírico Charlie Hebdo.
“Sei que mediar é o contrário do que propõe internet, mas com o anonimato as pessoas deixam o pior delas na rede “
No mais, não faz o tipo que vê internet como um bicho-papão. Teve lá suas crises com esse suporte que alterou o eixo da Terra, mas hoje consegue admitir sem trauma que os impressos um dia vão desaparecer – ou virar um nicho. “Uma pena, pois é um barato escolher a foto, bolar o título...” Pena, também, se sumirem as grandes redações, “um dos encantos do nosso ofício”, disse, em conversa com a Gazeta do Povo. Confira trechos da entrevista.
O ombudsman não é propriamente amado pelos colegas de redação. O que você fazia para lidar com a rejeição? Ioga? (risos)
O mais difícil foi a solidão. O ombudsman fica na redação, mas num andar à parte. É você, uma secretária e um estagiário. O trabalho de jornalista sempre acontece em equipe, a não ser que seja um correspondente internacional. Mas o ombudsman é sozinho, você com você mesmo. Quanto às críticas dos colegas, eu nunca citava o nome de ninguém na coluna. Até porque, em geral, os problemas são coletivos, raro ser individual, como o caso Jayson Blair (repórter do The New York Times que plagiava reportagens e fraudava dados). Como a Folha tem esse cargo faz muito tempo, correu tudo com respeito. Exceto uma vez, quando um colega disse “não me cumprimente mais...” (risos). Aí eu parei de cumprimentá-lo, né.
A maior pressão era a interna ou a externa?
Poucas vezes recebi ligações de governos, por exemplo, e nunca sofri pressão da direção do jornal. A pressão é muito mais externa. Vem em especial da militância política. E a militância faz campanha. Há uma militância organizada, muitas vezes paga, para desconstruir o discurso da imprensa. Em alguma medida é legítimo, porque muitas vezes a imprensa erra. Mas tem quem esteja ali para jogar no meio da confusão, soltando mentira. Fala de “mídia golpista”...
“O pior cenário é não existir mais um modelo de negócio que sustente um jornalismo investigativo de qualidade. Que a falta de dinheiro desestuture as redações”
Carlos Drummond de Andrade teria dito que quem escreve para o jornal é porque não tem namorada. É isso mesmo?
(risos) Não acho. Mas tem alguns que parecem. Havia um que me ligava sistematicamente... Relacionar-se com o público é o primeiro passo da função. Tem de entender o que aquela pessoa quer dizer. O ombudsman acaba funcionando como um consultório sentimental. O leitor desabafa, começa a contar coisas pessoais. Às vezes, é um pouco CVV (Centro de Valorização da Vida).
Qual foi a maior saia-justa que você enfrentou – a invasão de privacidade, quando o jornal citou um suposto aborto feito por Mônica Serra (2010); a edição desastrada de uma foto do ex-terrorista Cesare Battisti no litoral de São Paulo (2011); a polêmica charge de João Montanaro sobre o tsunami no Japão (2011)...
... quando o Zé Dirceu foi condenado. O jornal deu uma foto gigante dele escrito “culpado”. Achei que aquele tratamento não era a cara da Folha. Foi um momento tenso, pois já existia o Fla-Flu, que dizia que o jornal perseguia o PT.
Hoje, se você fosse ombudsman e tivesse que se posicionar sobre o caso do Charlie Hebdo, o que escreveria?
Pensei muito sobre o Charlie Hebdo. Essa questão me incomoda bastante. Lá na França tem tudo a ver, mas não publicaria uma charge como aquela (de Maomé). Acho extremamente ofensiva. Não sou do partido de que no humor vale tudo. Lá pode qualquer coisa. Respeito muito quem pensa diferente, mas num jornal de grande circulação, numa emissora de televisão, não.
A Folha faz graça com religião, com um monte de coisa. Temos liberdade, mas mesmo assim, não se publica algumas coisas. Lembro de ter de aprovar a coluna do Zé Simão e de, uma ou duas vezes, ligar para ele e sugerir mudanças.
Vamos falar de imprensa? O melhor cenário e o pior cenário...
O pior cenário é não existir mais um modelo de negócio que sustente um jornalismo investigativo de qualidade. Que a falta de dinheiro seja de tal ordem que desestruture as redações. O melhor cenário é que ainda existam grupos de comunicação fortes e inúmeras iniciativas editoriais diferentes, com gente disposta a buscar dinheiro em outros lugares. Espero que a internet sirva para isso, para fomentar uma variedade de propostas.
A sociedade brasileira está consciente do valor da imprensa para a democracia?
Não saberia dizer se as pessoas não valorizam a imprensa ou se a gente dá créditos demais para os críticos. Talvez eu esteja sendo otimista, mas a imprensa brasileira tem uma imagem boa. É reconhecida. Muita coisa não teria acontecido no Brasil sem uma imprensa de qualidade.
Dizem que aprendemos muito com a crise dos veículos impressos. O que a nova ordem ainda pode nos ensinar?
A ter uma ambição menor. Queríamos cobrir o mundo inteiro, mas não dá mais, não tem pessoal para tudo isso. A internet tornou mais fácil ter o termômetro do público, mas ainda há muito a entender sobre a audiência online. Escutamos que um assunto teve milhares de pageviews, sei lá, 10 milhões, mas qual a qualidade dessa leitura? O cara ficou quanto tempo no site – 15 segundos? Quem é o que a gente quer atingir? Acho que vamos passar a época dos milhões de pageviews, da tara por audiência, para a época de medir o tempo de permanência na matéria e o comportamento do leitor.
No ensaio A desintegração dos jornais, Leão Serva fala que a nova ordem da imprensa vai acabar com proletarização do jornalista. Seremos todos profissionais liberais. Sem redação, quais serão nossos fóruns?
É uma perda enorme. A riqueza da nossa profissão é a redação. É estar ali, trocando informação, ideias, discutindo, formando consensos. Numa redação, raramente se toma uma decisão sozinho – é o que me encanta. Um monte de jornalistas atomizados não rende um projeto bom... (pausa) Não sei dizer se a gente vai encontrar outros fóruns de discussão.
Uma das teses do Serva é de que o erro foi a integração das redações online e de impresso. Ele defende que se juntou um modelo velho com um modelo novo. Qual é o teu sentimento – a de que ele deveria ter dito isso 15 anos atrás?
(risos) Não acho que foi um erro ter integrado online e impresso. Não tinha saída. Tudo se caminhou para a imprensa trabalhar em plataformas diferentes. Não havia mais como sustentar duas redações. Discordo que trouxemos para o online o que havia de pior no impresso. Também não acho que um meio necessariamente contamina o outro para pior, deixando os dois modelos ruins.
O pesquisador norte-americano Paul Starr escreveu que não existe cidade próspera no mundo que não tenha um jornal impresso, pela contaminação de informações que esse suporte permite. Essa ideia envelheceu?
Infelizmente. Acho que no futuro vai dar para não ter um jornal impresso. Pode ser que nunca acabe mesmo, mas será um negócio de nicho. Está caminhando para isso. Dá pena. O impresso tem uma nobreza, aquela rotina de escolher a foto, bolar um título. De qualquer modo, o que sabemos é que não dá para viver numa democracia sem uma imprensa decente.
Temos o modelo do The Guardian – uma fundação; o do Washington Post – que tem negócios afins, como uma editora de livros. A imprensa brasileira chegou tarde à discussão sobre um modelo para o futuro?
Risco de sumir, a imprensa não corre. A toda hora surgem vozes diferentes, sites, grupos, inovações. Os grandes é que vão ser poucos. Já são poucos no Brasil. Pô, mas o Warren Buffett está comprando jornal... Esses caras não são de jogar dinheiro fora. Venderam o Financial Times por uma fortuna. Não acho que seja um negócio que nem fazer charrete. “Daí, chega o carro e quem tem charrete vende logo” (risos). A única coisa que sabemos é que nunca mais será lucrativo como antes.
As pessoas reclamam do turbilhão de informação na internet. Por que não recorrem ao jornal para facilitar essa escolha? A hierarquia da informação não dá mais conta das necessidades do leitor?
Mesmo sendo o online, a edição precisa de alguém para fazer uma curadoria das notícias. Mas o que estamos vendo no momento é que os leitores abandonam as homes (capas na internet) e entram nas notícias pelo que os amigos indicam no Facebook. Quem dita a hierarquia da notícia, em alguns casos, não são jornalistas, mas as redes sociais. Não consigo ver essa ordem como um sinal do futuro. Seria um caos. Noticiário sem hierarquia é loucura...
Falamos em rede social, das informações pipocando o tempo todo. O que você acha dos comentários no Facebook?
Mudei de opinião sobre isso. Antes, eu achava que devia deixar correr solto. Querem se xingar, que se xinguem. Ninguém é obrigado a ler, pronto. Hoje penso que o comentário online é um pouco como o “Painel do Leitor” (seção da Folha). Não se pode deixar aquilo lá. É uma contradição.
Sei que mediar é o contrário do que propõe internet, na qual quanto mais gente falando, melhor. Mas com o anonimato as pessoas deixam o pior delas na rede. Descobri no Facebook como tenho amigo preconceituoso (risos). Na maioria das vezes, o comentário é um descarrego. A gente clica, bah!, não sei se soma. O sujeito vai lá e escreve “olhe que besteira vocês publicaram”, e vai trabalhar. O leitor que se mobiliza para mandar um e-mail é uma minoria, uma elite. Esse sim, é crítico, ajuda a sentir a temperatura das coisas. Por esse vale – quando o comentário faz sentido, ganhamos um dado a mais...
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