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Os livros a salvo no leito do hospital

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Há um debate em curso sobre a morte do livro em papel. Os pessimistas já o puseram na UTI, abatido pelo digital. De outro lado, há quem coloque o livro físico no panteão das coisas eternas. Entre eles, talvez o escritor Humberto Eco e o historiador Robert Darnton sejam os maiores defensores dessa imortalidade. Mas quem pode mesmo salvar o livro da morte são os leitores. E eles estão nos lugares os mais inusitados, inclusive onde lutam pela própria vida. Decerto Eco e Darnton teriam orgulho do que vem acontecendo no Hospital do Trabalhador e no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba.

As primeiras incursões de Fabiele Vitória Fortes pelas letras se deu num leito do Hospital Pequeno Príncipe. Ela tinha 4 anos quando começaram as investigações para desvendar a doença desconhecida. A mãe a levava com frequência de ônibus ao hospital, uma viagem de 270 quilômetros de casa, em Sengés, até Curitiba. O primeiro internamento, aos 6 anos, levou-a também ao primeiro contato com os livros. Era um gosto escutar a história do pequeno príncipe de Saint-Exupéry. Brotava a vontade de ler.

Foram mais de 20 internamentos, uns por poucos dias, outros por meses a fio. Ao todo, Fabiele passou quatro dos seus 13 anos de idade num leito de hospital. É natural, portanto, concluir onde ocorreu a alfabetização. Hoje ela está no 9.º ano do ensino fundamental e recebe a atenção de uma equipe do programa de pedagogia hospitalar da Secretaria de Estado da Educação. A professora H. B. passa o conteúdo, faz as provas e avalia os resultados. A aluna está sempre acima da média.

Fabiele tem a síndrome de Hehlers-Danlos, ou síndrome do contorcionismo, doença sem cura que ataca os músculos. Ela já foi submetida a 10 cirurgias: três no coração, três no aparelho digestivo para pôr uma sonda, uma para retirar a vesícula, uma biópsia de pele, uma para retirar um tumor e uma para inserir uma válvula da coluna até a bexiga por causa da hidrocefalia. “Pare de chorar, mãe. Todo mundo vai morrer”, diz com estoicismo diante dos lamentos ao pé da cama.

Muito dessa resiliência vem da leitura, a própria Fabiele reconhece. Ela ainda não foi apresentada a Marcel Proust, mas decerto concordaria com pelo menos uma de suas teses. Em uma aula inaugural há mais de um século no Collège de France, convertido no livro Aula, o escritor francês vaticinava acerca do poder terapêutico da leitura, grande parte em razão de experiência própria.

“A leitura está no limiar da vida espiritual; ela pode nela nos introduzir, mas não a constitui. Há contudo, certos casos patológicos, por assim dizer, de depressão espiritual para os quais a leitura pode tornar-se uma espécie de disciplina curativa e se encarregar, por incitações repetidas, de reintroduzir perpetuamente um espírito preguiçoso na vida do espírito. Os livros desempenham então um papel análogo ao dos psicoterapeutas para certos neurastênicos”, disse Proust.

Fabiele criou uma rotina nas longas permanências no leito de hospital: ao meio-dia, à noite e aos domingos assiste à televisão ou interage com amigos nas redes sociais; e o tempo restante ocupa quase todo com a leitura. Quando as dores no corpo dão uma trégua, chega a ler três livros por mês.

A procura por livros entre os pacientes como Fabiele, e tantos outros de longa permanência, levou o Hospital Pequeno Príncipe a inaugurar no dia 14 de abril a sua própria biblioteca. A unidade precisava de alguém que ajudasse a divulgar os pacientes seus três mil volumes disponíveis para leitura. Não foi por acaso a escolha de Fabiele como embaixadora da biblioteca.

Nem que seja em braile

Há um ano, Fabiele Vitória Fortes sofreu um acidente vascular cerebral isquêmico, mas se recuperou rápido. Quatro dias depois, um novo AVC, desta vez hemorrágico, deixou-a em coma. Acordou 12 dias depois pedindo água com gás. Foram duas as sequelas mais importantes. Uma delas obrigou-a a se locomover apenas com ajuda de andador. A outra sequela foi um estrabismo repentino, do qual resultou um feito surpreendente.

A visão, que já estava bastante reduzida, se reestabeleceu depois de ela tomar uma injeção de botox no olho sem anestesia para corrigir o estrabismo. Antes do AVC, em 2013, a síndrome já a havia cegado. Durante três meses Fabiele não conseguia enxergar nada. A visão se recuperou um pouco, mas a leitura exigia um esforço sobre-humano, com letras tamanho 26 nas apostilas da escola para que ela conseguisse vê-las.

Fabiele até já cogitava aprender braile para não abrir mão do prazer da leitura quando a injeção de botox no olho devolveu-lhe a visão. A persistência de Fabiele tem sido um alento para a mãe, a pedagoga Edicléia Aparecida Carneiro, que há quatro anos largou o emprego em Sengés e se mudou com a filha para Curitiba quando os internamentos passaram a ser mais frequentes e demorados. “Aprendi com ela a viver o hoje. O amanhã só Deus sabe.”

Conteúdo editado em 29/01/2024 para substituir o nome de um dos entrevistados pelas iniciais.

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