Curiosidade mórbida traz riscos
O comportamento humano diante de casos envolvendo crimes noticiados pela imprensa tem instigado a psicóloga Mariliz Vargas, que há mais de 20 anos trabalha com psicoterapia. A reflexão dela parte de quatro questões centrais: o que tanto atrai o ser humano em direção ao grotesco? Por que gostamos tanto de comentar detalhes sórdidos de crimes violentos? Que estranha curiosidade é essa que se esconde em nossas mentes e que é explorada diariamente pelos meios de comunicação? Essa exploração é inofensiva para nós ou nos causa algum prejuízo?
De acordo com a psicóloga, o caso Bruno e seus desdobramentos nos colocaram frente a frente com uma característica singular do ser humano: a curiosidade mórbida. "Nós temos naturalmente tal característica, pois ela está ligada ao desejo pelo desconhecido, está ligada também, e principalmente, ao mistério da morte. Quando estamos imersos no cotidiano e seus compromissos, não nos damos conta da fragilidade da existência", analisa .
Por isso, observa Mariliz, fatos catastróficos chocam tanto, chamam atenção e deixam as pessoas como crianças diante de uma descoberta. É um traço da curiosidade, mas há outras facetas nada inocentes dessa característica. "Trata-se do prazer mórbido, aquele que leva a pessoa a assistir filmes de terror e de matança. É o prazer que dá a vivência da própria morte, e de todos os detalhes envolvidos nessa realidade natural", explica.
A psicóloga explica ainda que deparar-se com situações de conteúdo macabro causa uma reação físico-química no organismo e assim traz à tona a atração por esse tipo de assunto, da mesma forma como a pessoa pode sentir atração por imagens de conteúdo sexual.
Mariliz faz um alerta. "Ao se expor demasiadamente a material violento, você está dando uma munição muito perigosa para sua própria mente. E ela vai descarregar esta munição em cima de você e das pessoas próximas", diz. E quando isso acontece? "Descarrega contra você quando esse excesso de informação sobrecarrega a sua mente. Você alimenta sua mente com um monte de lixo, diariamente, e vai ficando intoxicado", destaca.
A pessoa passa a falar com conhecidos e desconhecidos sobre fatos macabros e terríveis que presencia, sem imaginar que esse tipo de comportamento vai refletir sobre o seu sistema físico e emocional. "Alimentar a curiosidade mórbida tem, sim, um efeito devastador sobre a saúde. Então pare de brincar com a sua natureza humana, pois ela merece da sua parte toda consideração e cuidado que um ser vivo tem direito", aconselha. (MK)
Lição mal-aprendida
Ecos da Escola Base
Um caso que entrou para os anais do Judiciário brasileiro se deu em 1994. Vários órgãos da imprensa publicaram reportagens sobre o abuso sexual de crianças pelos donos e funcionários da Escola Base, em São Paulo. Segundo as denúncias, o perueiro da escola levava os alunos para a casa de um casal, onde os abusos seriam filmados.
Sem verificar a veracidade das denúncias e com base em laudos preliminares, o delegado Edélcio Lemos divulgou as informações à imprensa.
A divulgação levou à depredação e saque da escola. Os donos foram presos. Contudo, o inquérito policial foi arquivado por falta de provas, sem qualquer indício de fundamento. Com o arquivamento do inquérito, os acusados dos abusos deram início à batalha jurídica por indenizações. O governo paulista e alguns órgãos de imprensa foram condenados a pagar indenização.
Há 16 anos, seis acusados de abuso sexual de crianças foram vítimas de linchamento moral. Tudo começou com uma falsa denúncia, agravada pelo erro de um delegado de polícia e amplificada pela precipitação da mídia ao julgar e expor os suspeitos. Os donos e funcionários da Escola Base foram inocentados, não sem antes ter a reputação destruída; o Estado de São Paulo e vários órgãos de comunicação foram condenados a indenizações milionárias (leia mais nesta página). Mas polícia e imprensa não aprenderam com os erros e continuam a pôr em xeque o artigo 5.º da Constituição e a Lei 12.037 ao divulgar a imagem de pessoas suspeitas de cometer um crime.
O caso mais representativo atualmente é o do ex-goleiro do Flamengo Bruno Fernandes. Mesmo sendo pessoa pública, com RG e endereço conhecido, foi fichado e teve sua foto de identificação criminal divulgada pela polícia. Um cidadão com esses requisitos não precisa ser submetido a essa exposição. Ao identificá-lo com placa de números em foto, a polícia infringiu a Lei 12.037. A rigor, nenhum acusado, salvo autorização expressa, pode ser exposto ao público, mesmo sob o rótulo de "acusado", sem antes haver uma sentença penal transitada em julgado. "Os efeitos dessa exposição antecipada são irreparáveis", diz o advogado Robson Zanetti.
A imprensa não acusa formalmente ninguém de ter cometido um crime, mas a cobertura jornalística tem efeito destrutivo quando condena moralmente o acusado de forma antecipada, gerando um pré-convencimento da população de que ele deve mesmo ser condenado. "Embora a mídia utilize o termo 'acusado', o efeito prático é de uma quase condenação", diz Zanetti. O termo "quase", pondera o advogado, deve ser visto como um juízo de probabilidade, pois para quem toma conhecimento da informação pela mídia forma um preconvencimento de que a pessoa cometeu o crime, ou seja, se está sendo acusada é porque fez. O caso de Bruno não é o único.
Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, Icushiro e Maria Aparecida Shimada, Paulo Delci Unfried e Paulo Estevão de Lima são alguns nomes que ficaram conhecidos antes de serem condenados ou absolvidos. Ainda na condição de acusados, foram expostos à exaustão na mídia. O casal Nardoni acabou condenado pela morte de Izabela, os Shimada foram absolvidos no caso da Escola Base, Paulo Unfried foi inocentado da acusação de molestar Monik Pegorari e matar Osíris Del Corso. Agora, Paulo Estevão de Lima foi apresentado pela polícia do Paraná e exposto pela imprensa ao público como suspeito de ter matado a psicóloga Telma Fontoura.
Direitos e obstáculos
Especialista em Direito Penal, o secretário-geral da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Paraná (OAB-PR), Juliano José Breda, divide a questão de duas maneiras: uma delas diz respeito ao trabalho da polícia, outra trata dos direitos individuais. Para Breda, a superexposição do acusado e das ações policiais cria obstáculos à investigação porque outros investigados e testemunhas acabam acompanhando na imprensa os rumos do trabalho policial e podem forjar evidências ou impedir que novas provas sejam colhidas. O segundo problema é que a exposição nunca é feita de forma a resguardar a imagem do acusado, nem equiparar a versão do investigado sobre os fatos em questão.
Breda observa que em geral o suspeito é apresentado ao público como autor do crime, o que conspira contra a presunção de inocência e a defesa. Pela Constituição, ninguém será considerado culpado antes de sentença penal transitada em julgado, e a todos é assegurado o direito à ampla defesa. Mas a superexposição midiática acaba impedindo que a defesa seja feita no sentido de equilibrar a impressão que se tem do acusado e o dano à sua imagem. Em muitos casos, mesmo a absolvição não tem força para diminuir o dano ao nome e à imagem a que foi exposto na investigação. "O suspeito é tido e havido como autor do delito", diz.
A má conduta dos agentes públicos também pode comprometer as investigações, e eles precisam ser punidos por isso. "A pretexto de combater o crime, o estado não pode usar de meios imorais, ilegítimos para produzir provas", diz Breda. No caso Bruno, por exemplo, as delegadas Alessandra Wilke e Ana Maria Santos foram afastadas temporariamente das investigações por deixarem vazar para a Rede Globo um vídeo em que goleiro comenta de maneira informal o sumiço de Eliza Samúdio. No vídeo, Bruno insinua que o amigo Macarrão teria sido o responsável pelo desaparecimento.
A intervenção da polícia ou da imprensa no curso natural da investigação pode trazer reflexos diretos no resultado final. Quando se trata de crime doloso, que vai ao tribunal do júri, a superexposição do caso pode levar o grupo de jurados a não conseguir separar conscientemente o que é prova processual e o que são resíduos da cobertura da mídia que ficou na memória. "É ainda mais danoso porque os jurados têm dificuldade de fazer essa separação", observa Breda. Assim, as pessoas escolhidas para julgar o acusado vão ao tribunal com opinião formada. E, não raro, fica no inconsciente coletivo a ideia de que o acusado cometeu o crime.
Limite e liberdade
Para o advogado Rodrigo Xavier Leonardo, doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, o limite entre a liberdade de comunicação e o direito de personalidade é construído conforme a estrutura jurídica do momento. Não é assunto com soluções fixas. E entre um extremo e outro há ainda o direito difuso à comunicação, ou seja, a prerrogativa da população de ser informada. Diante desse conflito entre liberdade de expressão e direito à imagem, deve-se considerar que quem estabelece o fato não é a imprensa. "O fato ocorre na vida da sociedade. O trabalho da imprensa é o de avaliar a maneira como esse fato será abordado", diz Xavier.
No caso do goleiro Bruno, a acusação de homicídio é um fato. E isso é notícia. Agora, os meios de comunicação podem tratar desse fato levando as informações ao público de forma isenta ou fazendo acusações. Xavier pondera que nem sempre é possível divulgar suficientemente um assunto sem usar a imagem dos envolvidos. Nesse caso, o jornalista deve analisar em que medida vale a exposição para comunicar a notícia. "E, sobretudo, na mesma medida da gravidade com que se acusa, deve ser o trabalho investigativo da veracidade daquilo que se está comunicando", observa. O problema, conclui, é que nem todos os setores da mídia conseguiram chegar a esse nível de reflexão.
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