Na última quinta-feira, um filho de imigrantes italianos nascido em Cascavel e apaixonado pela Bíblia assumiu oficialmente o posto de maior autoridade católica em Curitiba. Quando seu nome foi anunciado como novo arcebispo, em 15 de janeiro, dom José Antônio Peruzzo, de 55 anos, era um ilustre desconhecido para a maioria dos fiéis e até membros do clero. A única fama que o precedia era sua afeição pelos textos bíblicos. “Só sei que é um grande conhecedor da Sagrada Escritura”, disse um padre diocesano, tão curioso por conhecer o novo bispo quanto todo o restante da arquidiocese.
A reputação de biblista exemplar veio com o doutorado em Sagrada Escritura, obtida com estudos em Roma e Israel, e nos diversos cursos que ministrou ao logo dos nove anos em que esteve à frente da diocese de Francisco Beltrão e Palmas, no interior do estado, muitos deles direcionados a padres de outras dioceses.
Nesta entrevista, o arcebispo diz não se encaixar nos rótulos de progressista ou conservador e fala de temas controversos dentro da Igreja, como a situação dos divorciados em segunda união e a perda de fiéis.
O senhor está saindo de uma diocese relativamente pequena para assumir uma arquidiocese. A partir do que já conhece de Curitiba, são desafios muito diferentes?
Em parte. A mentalidade urbana não se restringe mais apenas aos centros urbanos. Os meios de comunicação e a internet acabam colocando os assuntos da grande cidade também no campo, então alguns problemas são parecidos, mas sinto que nas grandes cidades as relações são mais impessoais. Tudo é mais multitudinário, a multiplicidade de experiências e de preferências é muito maior. A força da tradição familiar, por exemplo, é mais influente no interior. Nos grandes centros, a individualidade encontra mais trânsito.
Cada vez mais se nota que para evangelizar nas grandes cidades não bastam bons argumentos. Estes não podem faltar, é claro, mas é preciso haver uma força mais persuasiva, originada sobretudo de um testemunho que impressione. Acho que a Palavra ajuda muito nisso. Ajuda a oferecer às pessoas algo que confira sentido às suas vidas, e nas grandes cidades temos muitas pessoas que sofrem com uma interioridade vazia.
Embora a fé católica seja uma só, é sabido que há muita diferença de opiniões entre os bispos. O senhor se vê como pertencente a algum “lado”? Identifica-se com categorias como conservador ou progressista?
Eu percebo que hoje há alguns pendores de um tradicionalismo que gostaria que a Igreja retrocedesse, e parece-me que esta não é uma resposta suficiente para os tempos atuais. A tradição contribui, mas o tradicionalismo não. Tradicionalismo é manter estilos que não falam muito ao nosso tempo, então eu realmente não me classifico assim. Também não me vejo como progressista, se por progressista se quer falar de alguém que adere tudo de novo que se apresenta. Afinal, nem toda novidade renova. Às vezes, apenas repropõe formas que esvaziam a interioridade.
Então, eu não quero que pensem que estou em cima do muro, porque não estou, mas gosto de estabelecer laços entre a cultura que vivemos e aquilo que a Palavra de Deus propõe ao coração humano. Acho que mantenho um pé na tradição e outro na renovação.
Nem toda novidade renova. Às vezes, apenas repropõe formas que esvaziam a interioridade.
Esse é um ano em que a Igreja Católica de todo o mundo falará muito sobre família, por causa do Sínodo em outubro. Uma das discussões mais aguardadas diz respeito ao acesso à comunhão dos divorciados recasados. Qual sua opinião?
Antes de responder à pergunta, voltemos à questão das categorias. Têm-se chamado de “fechados” aqueles que dizem que a comunhão eucarística não pode ser oferecida a quem se divorciou e casou de novo. E aqueles que veem isso como uma possibilidade real seriam os “abertos”. Acho que esse tipo de classificação é perigosa. O que eu penso, baseado em minha especialidade, que é a Sagrada Escritura, é que Jesus Cristo foi explícito em determinada circunstância: “não separe o homem o que Deus uniu”. Nessa discussão uma das palavras vai prevalecer. Ou será a dele ou será a da mentalidade do momento. Eu não me atreveria a mudar aquilo que Cristo disse. Não tenho essa autoridade. Nem a Igreja tem.
O que me parece insuficiente, no entanto, é classificar exclusivamente em critérios jurídicos o permitido e o proibido. Acho que essa fórmula precisa de uma revisão. Não para empobrecer o princípio que origina a lei, mas para salvaguardar o que diz a Palavra. No conteúdo da fé não se mexe, porque a Igreja não pode mudar, mas é preciso ter coragem para buscar caminhos que não afrouxem os sacramentos e ao mesmo tempo não apresente Deus como alguém implacável numa questão tão delicada quanto a vida matrimonial.
Outro debate comum sobre a Igreja Católica no Brasil é a constante perda de fiéis, principalmente para igrejas evangélicas pentecostais. O senhor vê esse fenômeno como um problema? Se sim, como pretende resolvê-lo?
Já faz bastante tempo que se fala da perda de fiéis, mas nossas igrejas não estão com menos frequentadores. Olhe para as missas e você vai ver que não tem menos gente. Ao contrário, há até mais do que em outros tempos. Então, na realidade, não é uma perda de fiéis, é uma perda daqueles que não foram fiéis.
O problema que ocorre hoje é que tudo tende a ser mercantilizado. Você praticamente pode procurar no empório das religiões aquela que mais lhe convém ou agrada. Cada um procura aquilo que parece mais atender à sua demanda subjetiva. Essa mentalidade se difundiu bastante. As pessoas confundem uma experiência religiosa com uma experiência de fé. Só que na experiência religiosa eu procuro o sagrado que me satisfaz. A experiência de fé, no entanto, é um conjunto de valores que eu professo, nos quais modelo a minha vida.
Agora, sobre o que fazer, é evidente que nós não podemos continuar como já fomos. Imaginar que basta ficar na Igreja e que venham até nós os interessados. Nós precisamos ser mais criativos na arte de apresentar Jesus Cristo como alguém que dá sentido à vida.
A história do Brasil mostra que alguns bispos se tornam uma referência social e até política para toda a cidade, não apenas para os católicos. Como será o seu relacionamento com outros segmentos da sociedade, como autoridades civis ou instituições não religiosas?
Ninguém pode viver em uma redoma. Nem a Igreja. Aqui eu quero recordar o Concílio Vaticano II, quando diz que o mundo não foi enviado à Igreja, mas a Igreja é que foi enviada ao mundo. No sudoeste do Paraná eu tinha um relacionamento bastante intenso com as autoridades políticas, o judiciário, os centros universitários, os ambientes de ciência. Enfim, eu não seria fiel à minha missão se me limitasse apenas ao ambiente de sacristia.
Já mantenho um relacionamento com autoridades estaduais desde tempos passados, mas havendo convites e a agenda permitindo, eu gostaria de dialogar com todas as diferenças que me enriquecem e enriquecem a Igreja. Isso é mostrar que a Igreja é dialógica.
O Brasil vive hoje um momento de tensão política bastante forte. Qual sua opinião sobre as recentes manifestações populares?
Vejo as manifestações com muitos bons olhos. Não apenas a de domingo, mas a anterior também. Essas manifestações estão aflorando agora mais do que em outras épocas porque se tem mais notícias, mais informações sobre o que está acontecendo e então o povo reage. Acho que nossa política precisa de uma revisão muito séria porque a atual estrutura como favorece mais embates entre grupos do que a soberania do eleitorado.
Parece-me claro que a reforma política é urgente. Eu não tenho o conhecimento técnico para dizer qual seria o melhor modelo de reforma, mas é certo que ela tem de ser profunda, transformadora e não apenas uma resposta impulsiva para abrandar a fúria da população. Como cidadão, não como bispo, defendo o fim da reeleição. Alternância de poder é importante e o recurso da reeleição não ajuda o nosso futuro.