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Crise

Zika, corrupção e desemprego põem fim à versão brasileira do sonho americano

Germana Soares, com seu filho Guilherme, bebê com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes. | Maurício Lima/The New York Times
Germana Soares, com seu filho Guilherme, bebê com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes. (Foto: Maurício Lima/The New York Times)

Eles eram jovens e viviam a versão brasileira do sonho americano: planejavam comprar um carro, se filiar a uma igreja, começar uma família. Como milhões de outros, haviam chegado à classe média em expansão do país. Haviam até se mudado para Califórnia, um bairro dos trabalhadores que haviam deixado a cidade grande e empobrecida ali perto.

“Era aquele momento mágico em que tudo parecia possível”, disse Germana Soares, de 24 anos.

Então, no sexto mês de sua gravidez, o casal descobriu com que rapidez sua sorte – e a de seu país – poderia mudar. Um exame de rotina mostrou que o filho pesava muito menos do que deveria. Os médicos estavam preocupados com o fato de que, como centenas de outros bebês brasileiros nascidos nos últimos meses, ele tivesse microcefalia, uma doença incurável em que as crianças nascem com a cabeça anormalmente pequena.

E lhe fizeram inúmeras perguntas sobre o vírus zika, que ela havia contraído no início da gestação. O marido, Glecion Amorim, 27 anos, ficou extremamente preocupado. Germana se fez de corajosa e rezou, tentando permanecer positiva.

Logo depois, outro choque: Amorim, soldador que se beneficiou da entrada do Brasil nas fileiras dos grandes produtores mundiais de petróleo, foi despedido com centenas de outros. O enorme estaleiro onde ele trabalhava, construindo petroleiros, oscilava junto com a indústria petrolífera brasileira, dominada por escândalos.

No espaço de algumas semanas, a trajetória de vida do casal mudara. Todos os acontecimentos que se abateram sobre o Brasil – a corrupção, a pior crise econômica em décadas, a queda de milhões de pessoas da classe média para a pobreza, a epidemia de zika e o aumento dos casos de microcefalia no nordeste – de repente batiam à porta de sua casinha de dois quartos.

“Pensei que seria maravilhoso conhecer o Havaí”, disse Soares, listando os sonhos recentes do casal. “Todos esses planos são coisa do passado. Minha prioridade agora é cuidar do meu menino especial.”

Sua luta mostra a realidade de milhares de famílias brasileiras que agora têm que enfrentar a perspectiva de criar uma criança com deficiência na pobreza, após a epidemia de zika.

Os pesquisadores ainda não podem dizer com certeza que o vírus provoca microcefalia, mas pelo menos 641 brasileiros nasceram com essa doença desde outubro – um aumento acentuado, detectado pelos médicos nos últimos meses – e as autoridades estão investigando 4.222 outros casos, a maioria aqui na região Nordeste, mais pobre.

Nova segurança

Germana e Amorim pensaram que finalmente tinham escapado das dificuldades da vida em Recife quando se mudaram para Califórnia, no início dessa década. Aqueles foram anos de crescimento, quando dezenas de milhares de trabalhadores lotavam o Porto de Suape, uma imensa área industrial construída para ajudar a impulsionar o Brasil a chegar à elite mundial das nações produtoras de petróleo.

A descoberta de grandes reservas de petróleo em águas profundas e a ampliação da fronteira agrícola na Floresta Amazônica puseram o Brasil no palco mundial, e o país satisfazia a necessidade chinesa por commodities. Autoridades brasileiras construíram canais de concretos no sertão atingido pela seca, estradas de ferro cortando o interior do país e luxuosos estádios para a Copa do Mundo da Fifa.

A demanda por trabalhadores era tão intensa que os empregadores de Amorim lhe ofereceram uma casa de dois quartos, uma das quase 800 unidades em projetos habitacionais da companhia nesta cidade.

“A certa altura, havia mil ônibus por dia transportando trabalhadores aqui. Foi um crescimento que deveria se estender por décadas”, disse Aldo Amaral, 44 anos, presidente do sindicato que representa os trabalhadores do complexo portuário.

Germana e Amorim entrarem nisso de cabeça.

“Tínhamos até seguro de saúde com acesso aos hospitais privados. Era o momento perfeito para termos um bebê”, disse ela, lamentando sua atual dependência do sistema de saúde pública do Brasil.

Um golpe repentino

Quando Germana ficou grávida, o casal ofereceu um “chá de revelação” para contar a amigos e parentes que estavam esperando um menino. Tentaram manter a esperança mesmo depois que os médicos levantaram a possibilidade de a criança ter microcefalia. Pensaram em abrir uma loja para vender roupas de bebê com a indenização modesta que Amorim havia recebido quando perdeu seu emprego no estaleiro.

Então, no dia 27 de novembro, Guilherme nasceu. A princípio, os médicos disseram que o bebê parecia estar bem. A notícia provocou gritos de alegria entre os parentes na sala de espera.

Mas uma enfermeira retornou com mais notícias. Algo parecia estar errado quando mediram a cabeça de Guilherme. A circunferência tinha 32 centímetros, o limite para classificação de microcefalia na época. O silêncio se instalou no quarto do hospital, quando todos começaram a pesquisar por “microcefalia” nos mecanismos de busca de seus smartphones.

“Quando ouvi o número 32, comecei a chorar”, disse Amorim.

Os médicos mantiveram Germana e Guilherme hospitalizados durante uma semana para realizar testes – e os exames confirmaram que o menino tinha danos cerebrais associados à microcefalia.

O golpe levou o casal a repensar tudo. Germana tinha ficado tão alegre quando soube que estava grávida que deixou seu emprego como corretora imobiliária, planejando se dedicar à criação dos filhos com o salário do marido, mas depois que ele perdeu o emprego, os dois se viram em meio ao turbilhão da crise econômica brasileira.

Amorim investiu em algo acessível: um buggy nas dunas. Todos os dias, ele vai para Porto de Galinhas, uma área próxima com vários resorts, onde tenta atrair turistas para passeios pela praia. Em um bom mês, consegue ganhar uns US$625. No total, disse, a família terá sorte se sua renda anual chegar a US$7 mil.

“Tenho que manter o sorriso no rosto e ser simpático, apesar de todos os pensamentos rodando na minha mente. Sou o único que ganha dinheiro agora e é minha responsabilidade colocar comida na mesa todos os dias.”

Germana disse que aos poucos vai percebendo que nunca seria capaz de manter um emprego normal novamente, dado o tempo necessário para cuidar de uma criança com microcefalia, que frequentemente pode desenvolver problemas de fala, perda auditiva e dificuldade de aprendizado. Segundo ela, Guilherme já começou a ter espasmos musculares, o que os médicos dizem que é um precursor de convulsões no futuro.

“Ele chora tanto e precisa de tanto amor que não posso deixá-lo com outra pessoa”, disse ela.

Seguindo em frente

Amorim diz que está muito ocupado tentando ganhar a vida, por isso não pensa na sua infelicidade. Quando chega em casa do trabalho, navega pela internet em busca de emprego de soldador e se pergunta se seria bom se candidatar a um emprego em Moçambique, país de língua portuguesa no sul da África.

Apesar das conclusões de dezenas de exames médicos, ele disse que ainda tem esperança de que Guilherme não tenha microcefalia, apontando que sua circunferência craniana está no limite superior que determina a condição.

“Não é que eu não o aceite, mas na minha mente, ele é normal”, disse.

Além de se adaptar aos desafios e aos custos da criação de Guilherme, o casal também tenta evitar o despejo. O estaleiro quer a casa de volta, alegando que Amorim não trabalhou tempo suficiente para ter a posse definitiva da propriedade. O casal se juntou a dezenas de outras famílias em uma ação judicial, alegando que as leis de imóveis no Brasil permitem que fiquem em suas casas.

Da sua varanda, Germana e Amorim conseguem ver o brilho da labareda que queima na refinaria de petróleo no Porto de Suape, que custou quase US$ 20 bilhões para ser construído, cerca de oito vezes as estimativas originais. Como tantos outros projetos ambiciosos que começaram durante o boom, ele nunca foi concluído.

O estaleiro adjacente, onde Amorim já trabalhou, está lutando para não fechar. Seus proprietários estão enfrentando escândalos de corrupção e a queda da indústria petrolífera brasileira.

“É como se estivéssemos isolados aqui agora. Nunca imaginei que Guilherme fosse nascer com a gente vivendo assim”, disse Amorim.

Aline da Silva Ferreira, de 15 anos, com o seu filho de quatro meses de idade, Luis Guilherme, que nasceu com microcefalia. Eles moram num sítio nas redondezas de Vertentes, no Pernambuco. Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres. | Mauricio Lima/NYT

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Aline da Silva Ferreira, de 15 anos, com o seu filho de quatro meses de idade, Luis Guilherme, que nasceu com microcefalia. Eles moram num sítio nas redondezas de Vertentes, no Pernambuco. Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres.

Um médico do centro de reabilitação de Recife, Pernambuco, usa a luz de um celular e um copo de plástico para estimular a visão de Sophya Vitoria da Silva, uma bebê de dois meses de idade que nasceu com microcefalia.Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres. | Mauricio Lima/NYT

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Um médico do centro de reabilitação de Recife, Pernambuco, usa a luz de um celular e um copo de plástico para estimular a visão de Sophya Vitoria da Silva, uma bebê de dois meses de idade que nasceu com microcefalia.Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres.

No canto direito, Vanessa de Assis Lins acompanha os resultados do encefalograma de sua filha de cinco meses de idade, Vitória. Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres. | Mauricio Lima/NYT

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No canto direito, Vanessa de Assis Lins acompanha os resultados do encefalograma de sua filha de cinco meses de idade, Vitória. Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres.

Mulheres e suas crianças, todas nascidas com microcefalia, no centro de reabilitação de Recife, Pernambuco. Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres. | Mauricio Lima/NYT

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Mulheres e suas crianças, todas nascidas com microcefalia, no centro de reabilitação de Recife, Pernambuco. Com a epidemia de zika, o Nordeste brasileiros está vivendo um aumento no número de crianças com deficiências e pobres.

Germana Soares e o filho Guilherme, com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. Eles moram em Ipojuca, Pernambuco. | Mauricio Lima/NYT

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Germana Soares e o filho Guilherme, com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. Eles moram em Ipojuca, Pernambuco.

Germana Soares e o filho Guilherme, com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. | Mauricio Lima NYT

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Germana Soares e o filho Guilherme, com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora.

Germana Soares, ao lado do marido Glecion Amorim, que segura o filho Guilherme, com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. Eles moram em Ipojuca, Pernambuco. | Mauricio Lima/NYT

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Germana Soares, ao lado do marido Glecion Amorim, que segura o filho Guilherme, com microcefalia. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. Eles moram em Ipojuca, Pernambuco.

Germana Soares, o lado do marido Glecion Amorim e o filho Guilherme, com microcefalia, no quintal de casa. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. Eles moram em Ipojuca, Pernambuco. | Mauricio Lima/NYT

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Germana Soares, o lado do marido Glecion Amorim e o filho Guilherme, com microcefalia, no quintal de casa. Rotina é de cuidados constantes, desafiadora. Eles moram em Ipojuca, Pernambuco.

Um soldado do Exército inspeciona caixas d’água em uma casa, em Recife Pernambuco. Combate ao mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika vírus, é o único modo, no momento, no Brasil de se combater a doença. | Mauricio Lima/NYT

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Um soldado do Exército inspeciona caixas d’água em uma casa, em Recife Pernambuco. Combate ao mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika vírus, é o único modo, no momento, no Brasil de se combater a doença.

Um agente municipal de Recife, Pernambuco, inspeciona um terreno. Combate ao mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika vírus, é o único modo, no momento, no Brasil de se combater a doença. | Mauricio Lima/NYT

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Um agente municipal de Recife, Pernambuco, inspeciona um terreno. Combate ao mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika vírus, é o único modo, no momento, no Brasil de se combater a doença.

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