Bolsa de Cereais de Rosário, na Argentina| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo
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Um projeto de lei apresentado por parlamentares do Partido dos Trabalhadores (PT) propõe a criação de um imposto para frear o que seria uma “compulsão exportadora” de alimentos do Brasil em relação a itens como soja, milho, arroz e carnes. Na justificativa, os deputados alegam situação sistêmica de volatibilidade de preços e insuficiência do abastecimento interno desses produtos, e que a política atual do Ministério da Agricultura estaria servindo apenas ao agronegócio exportador, “de costas para o interesse público”.

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Pela proposta, a taxação dos embarques de grãos e carnes aconteceria sempre que houvesse um risco de escassez no mercado interno. Esse risco ficaria configurado quando os estoques públicos de cereais fossem menores do que 10% do previsto para o consumo nacional ou, no caso das carnes, em situações de “ameaças à regularidade do abastecimento interno”. O PL 1586/2022, assinado por 14 deputados do PT, altera um decreto-lei de 1977 que trata de eventual tributação de exportações no país. Enquanto o decreto em vigor não cita nenhum alimento, o projeto de lei elege soja, arroz, milho e carnes (bovina, de frango e suína) como itens destinados à taxação.

Projeto fala em "abuso na exportação de alimentos"

Invocando “a fome crescente e a insegurança alimentar que afeta a maior parte dos brasileiros”, os parlamentares falam em corrigir o que classificam como “abusividade dos volumes de alimentos exportados pelo país”.

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“Tá dando certo na Argentina, né? Vão querer a mesma filosofia por aqui. Vamos passar fome todo mundo, então”, ironiza o engenheiro-agrônomo e consultor de mercados agrícolas Vlamir Brandalizze, referindo-se à política de taxações das exportações que por duas décadas consecutivas tem deprimido o agronegócio do país vizinho.

Atualmente, o produtor argentino de soja, por exemplo, paga a título de retenciones um imposto de exportação de 33%. No setor de proteína animal, para "estimular" a produção e supostamente garantir o abastecimento interno, o governo de Alberto Fernandez proibiu as exportações de sete tipos de corte de carne até o final de 2023. Um estudo da Fundação Agropecuária para o Desenvolvimento da Argentina (Fada), de março deste ano, aponta que de cada 100 pesos de receita gerados no campo, o governo portenho já embolsa 65 em impostos. Em algumas regiões, a pesada carga tributária criou um cenário de terras ociosas. Na Argentina, mais de 70% dos campos são cultivados mediante contratos de arrendamento – ou seja, o empreendedor tem que tirar o imposto, o custo de produção e o valor do arrendamento antes de contabilizar qualquer lucro. Feitas as contas, muitos preferem nem plantar.

Retenciones nunca conseguiram baixar preço dos alimentos

As restrições às exportações, sob justificativa de colocar mais alimento à mesa do consumidor local, são parte de uma política populista argentina que remonta a 1862, sob o governo de Bartolomé Mitre. No século passado, no primeiro mandato de Juan Domingo Perón, o intervencionismo estatal ganhou contornos protecionistas, e paternalistas, mais acentuados. Durante o peronismo, em que pese também os efeitos de uma seca, de 1944 a 1952 a produção de trigo da Argentina encolheu de 6,8 milhões de toneladas para 2,1 milhões de toneladas, enquanto a produção mundial se expandiu quase 40% no mesmo período.

Para a engenheira-agrônoma e analista de commodities da cidade argentina de Rosário Paulina Lescano, o Brasil faria bem se ficasse longe desse modelo. “O objetivo declarado pelo governo era evitar o aumento do preço dos alimentos, mas a verdade é que até agora isso nunca aconteceu. Na Argentina temos uma inflação de quase 60%. O que se conseguiu foi baixar o preço pago ao produtor. E o governo encontrou uma maneira bárbara de arrecadar imposto. É fácil de cobrar, é automático. Vendeu ao exterior, o imposto já é cobrado”, explica Lescano. Ela aponta que a dependência do estado argentino das retenciones chegou a tal ponto que, hoje, 11% de toda a arrecadação federal vêm dos impostos de exportação. Mas isso tem seu preço.

“Nenhum segmento da economia suporta um sócio que chega e tira 33% do faturamento. A Argentina já chegou a plantar 22 milhões de hectares de soja, mas hoje está com 16 milhões. Vai ficando só com as áreas de maior produtividade e onde não tem arrendamento. No passado, o Brasil produzia o equivalente em grãos a uma Argentina e meia. Hoje já produzimos três vezes mais. Se fizermos isso por aqui (retenciones), em duas safras você quebra o segmento. Em cinco anos passaríamos de um gigante de exportação para um importador de alimentos para matar a fome do povo”, argumenta Vlamir Brandalizze.

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O analista aponta que é enganoso dizer que o setor agrícola não paga impostos. É só ver o percentual destinado ao Fisco nos insumos adquiridos pelos produtores, como diesel, defensivos químicos e fertilizantes. "No Mato Grosso, a margem média de lucro não chega a 10%. O produtor ganha em escala, porque planta áreas maiores. Se o governo colocar uma taxa de 10%, já inviabiliza uma boa fatia do Centro-Oeste, que teria que trabalhar abaixo do custo".

Vantagens naturais e logísticas dão resiliência aos argentinos

Se o efeito pode ser tão acentuado na economia brasileira, como explicar que os argentinos têm suportado por tanto tempo? “Porque eles estão perto dos portos, o custo de logística é mais baixo que o nosso e os solos são bem melhores. O governo argentino consegue quebrar mais lentamente do que o Brasil”, pontua Brandalizze. Na produção de carnes, o mercado se deprimiu a tal ponto que o país vizinho passou de exportador a importador. "Milhares de produtores acabaram vendendo suas matrizes, porque chega uma hora que não dá lucro. Ninguém vai produzir sem ganhar nada", ressalta o analista.

Na justificativa do projeto de lei, os deputados do PT citam as turbulências da guerra entre Rússia e Ucrânia e sugerem que o Brasil siga o exemplo da Índia, e de outros 23 países, “que determinaram restrições ou proibições de exportações de alimentos em defesa de seus povos”. “De acordo com a FAO, de 1990 a 2020 a participação do Brasil no comércio agrícola mundial saltou de 3.3% para 10%, o que transformou o país em um importante protagonista da segurança alimentar notadamente da população da China, em detrimento da sua própria segurança alimentar interna”, argumentam.

FPA aponta erro nas estatísticas petistas

Logo que o projeto foi protocolado na Câmara, a Frente Parlamentar da Agropecuária emitiu nota apontando equívocos nas premissas adotadas pelos parlamentares e erros estatísticos nos números apresentados. Os deputados petistas afirmam que o Brasil exporta 55% do milho que produz e 35% da carne, enquanto, nos EUA, por exemplo, a proporção seria de 18% e 11%, respectivamente. Os dados estão errados, diz nota da FPA. “A maior parte da produção sempre se destinou ao mercado interno. A título de exemplo, em 2019, a produção de carne bovina destinou 77,3% ao mercado interno e apenas 22,3% foi exportado. Em relação ao mercado de aves, em 2021, 68% da produção se destinou ao mercado interno e no mesmo ano, quanto aos suínos, 76% da produção foi comercializada dentro do país”, esclareceu a FPA, citando estudo da SCOT Consultoria/ Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.

“A problemática apontada”, segundo a Frente Parlamentar da Agropecuária, “não decorre dos níveis de exportação, mas de múltiplos fatores, como o cenário pós-pandêmico, o aumento do dólar, o desabastecimento de insumos e aumentos dos custos de produção e perdas de safras decorrentes de fatores climáticos. De acordo com informações do Ministério da Economia, como regra, o Brasil evita a utilização do Imposto de Exportação, em razão de seus efeitos negativos sobre eficiência econômica, estrutura de incentivos, alocação de recursos e desempenho exportador”.

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No caso do Brasil, um dos principais players da produção de alimentos mundial, adotar medidas populistas contra as leis de mercado é comparado a marcar gol contra as próprias balizas. Sem contar toda a burocracia que seria criada para organizar os estoques, o monitoramento das safras e as intervenções. “Uma lei como essa não ajuda em nada. Se tiver 10% de estoque concentrado no Mato Grosso, por exemplo, e a demanda for para Chapecó, em Santa Catarina, independente da taxação pode ficar mais barato importar o milho por causa do custo do frete. E se você adota imposto para exportar, também terá de taxar o milho americano que entra aqui. Daí acaba virando uma briga na Organização Mundial do Comércio. Não beneficia ninguém, é uma proposta de lei burra”, avalia Glauber Silveira, diretor da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho).

Lei Kandir desonera exportações há 26 anos

Desde 1996, a Lei Kandir isenta a taxação de impostos sobre produtos de exportação no Brasil. No início do ano passado, conforme previsão legal, a União e os estados chegaram a acordo para repasse de R$ 58 bilhões até 2037 a título de compensação pelas perdas estaduais da desoneração das exportações. Paulina Lescano, que foi a primeira mulher a operar na Bolsa de Comércio de Rosário, deixa um conselho aos brasileiros. "O Brasil vem crescendo de forma impressionante em área e em renda. E nós estamos estagnados ou reduzindo a superfície plantada, além de reduzir a tecnologia das lavouras, por causa dos custos. O Brasil deveria seguir com a política que tem hoje, que lhe permite crescer por todo lado".