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Vida severina

Sem chuva nem água do Velho Chico, produtores do Semiárido cultivam resiliência

Antonio e Marineide (à frente) com o filho e os netos na propriedade da família em Petrolina (PE). Seca castiga produtores da região do semiárido pernambucano. (Foto: Rogério Machado/Gazeta do Povo)

Quando o caminhão-pipa do Exército aponta na estrada de terra que dá acesso à fazenda da família Souza, em Petrolina, sudoeste de Pernambuco, os 6 mil litros de água que carrega representam mais do que um alívio para Marineide e Antonio Souza. Ainda assim, a carga mensal do precioso líquido, compartilhado pelo casal, o filho e dois netos, não chega a ser suficiente para aplacar a sede de uma estiagem que já faz aniversário.

Por sorte a família tem um poço artesiano, que mesmo fornecendo uma água salobra ajuda a abastecer a criação de galinhas caipiras, o tanque de tilápias e irrigar a plantação de acerola da propriedade. A água também é compartilhada com alguns vizinhos que não tiveram a mesma sorte. A água do caminhão-pipa serve apenas para o abastecimento das casas e, na maioria das vezes, não é suficiente. É preciso comprar um pipa extra, particular (R$ 130), para complementar a cisterna todo o mês.

“A falta de água é o que mais traz problema aqui. Muita gente não recebe o caminhão. Às vezes ficamos três ou quatro meses sem receber. No caso da criação, quem não tem poço artesiano está ferrado. Algumas casas nem cisterna têm”, afirma Marineide, que é presidente da Associação do Sítio Curral Novo Pau Ferro e representa 36 produtores familiares da região. “Aqui, se o cabra não tiver um coração duro e uma cabeça boa ele fica louco”, sentencia Antonio. O homem de linhas de expressão profundas carrega no DNA a resiliência dos bisavôs que já cultivavam no solo pedregoso do semiárido pernambucano.

Mas ao contrário dos antepassados, Antonio conta que hoje é impossível cultivar abóbora, mandioca e outros legumes no solo da região. “Minha fé é que chova até janeiro. Só temos três meses de chuva no ano e se não tivermos jogo de cintura não sobrevivemos. Temos que ter a mesma fé que nossos pais tiveram”, afirma. Somente na região de Petrolina vivem 1.850 produtores familiares, de acordo com o cadastro do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA). A maior parte deles vive em condições semelhantes às de Antonio e Marineide.

Em Pernambuco, segundo o Censo do IBGE, há 232,6 mil estabelecimentos agrícolas familiares, que ocupam uma área somada de 2,3 milhões de hectares – é o estado brasileiro com maior ocupação territorial pela agricultura familiar (52%), enquanto a média geral do país é de 23%.

Retrato do semiárido

A Caatinga e sua paisagem típica chama a atenção no povoado de Pau Ferro em Petrolina (PE), onde a água é o bem mais precioso. Foto: Rogério Machado/Gazeta do Povo

No caso dos Souza, a família explica que chegou a ter 3 mil galinhas, mas tiveram de reduzir a produção drasticamente. Isso porque não é mais permitido abater os animais na própria fazenda, então é preciso levá-los a um frigorífico para fazer o abate. Por causa disso, o custo do frete, que é bancado pela família, tornou a avicultura de corte um negócio pouco rentável.

A carne é vendida a R$ 12 o quilo para o governo e abastece escolas, creches, programas de assistência social e presídios. Mas é pouco para o sustento da família, que viu na tilápia uma alternativa de renda. Os peixes são comercializados diretamente ao consumidor e servidos como tira-gosto no barzinho/mercearia que os Souza montaram na sede da propriedade. “O peixe tem um custo menor, mas isso não quer dizer que o lucro com ele seja maior, pois o custo da ração é mais alto”, observa Marineide.

Entretanto, as 30 galinhas matrizes que a família tem hoje devem se transformar em 200 animais no próximo ano. O receio é com o custo do milho, que duplicou por causa do fim do subsídio que o governo dava ao cereal. Em relação à água, Marineide afirma que nem a pressão da associação de produtores parece mobilizar as autoridades a melhorarem as condições de abastecimento.

“Aqui, se o cabra não tiver um coração duro e uma cabeça boa ele fica louco”, diz o produtor Antonio Alves de Souza sobre as dificuldades com a falta de chuvas no sertão de Pernambuco. Foto: Rogério Machado/Gazeta do Povo

A esperança é um canal de irrigação com água oriunda da transposição do Rio São Francisco que está sendo construído na região, mas as obras que levariam as águas do Velho Chico até os produtores atualmente estão paralisadas. Enquanto isso, eles se viram como podem. Os Souza passaram a cultivar acerola e enxames de abelhas sem ferrão com o propósito de diversificar a renda. Mas esses projetos ainda estão em fase inicial.

Para Ramon Bezerra, engenheiro agrônomo e extensionista rural do IPA, o problema do semiárido não é a seca, mas a falta de infraestrutura. “Os investimentos, infelizmente, ficam concentrados na região de Petrolina”, pontua, referindo-se ao centro do extenso município. Mas ele reconhece que as chuvas no sertão têm diminuído de intensidade também. “Elas ficaram mais esparsas e o volume reduziu no período chuvoso.”

No sertão da Bahia, a situação não é muito diferente

Na área rural de Juazeiro (BA), na divisa com Pernambuco, os produtores também se viram como podem para driblar a estiagem prolongada. José Lindomar Nunes Pereira, que cria caprinos e ovinos em meio à Caatinga, utiliza a água de dois poços artesianos para matar a sede do rebanho e irrigar o pasto. A propriedade dele fica dentro da área coletiva da Associação Comunitária Agropastoril de Cipó, que tem 1.240 ha e onde vivem 35 famílias de produtores.

Na propriedade de José Lindomar Nunes Pereira, em Juazeiro (BA), a solução para driblar as dificuldades foi apostar no melhoramento genético das cabras para manter uma boa média de produção de leite. Foto: Rogério Machado/Gazeta do Povo

Nos 2 ha que cabem aos Pereira são criadas 50 cabras para produção de carne e leite e 30 ovelhas para fornecimento de carne. No caso das cabras, a família ainda beneficia o leite para produzir queijos e doces. Segundo o IBGE, na Bahia existem 593,4 mil estabelecimentos familiares, que ocupam uma área de 9 milhões de ha. Os condomínios de produtores ao todo agregam 166 mil agricultores no estado, ocupando uma área total de 2,5 milhões de ha.

Para driblar a falta de chuvas e apoio do governo, Pereira apostou no melhoramento genético do rebanho para manter uma produção média de 30 litros/dia. “Quando chove aqui é a época do trabalho pra gente. É quando fazemos o feno para a alimentação animal, que cresce no período chuvoso e vira alimento para a época de seca”, conta.

Jorge do Nascimento Souza, técnico agropecuário da Coapseri, uma cooperativa de consultores técnicos que presta apoio aos produtores, comenta essa falta de extensionistas na região. “Os produtores necessitam de assistência técnica, porque com a seca eles já convivem. O que eles precisam é de orientação sobre como fazer uma boa alimentação para o rebanho”, pontua.

Rebanho de cabras passeando na área coletiva da Associação Comunitária Agropastoril de Cipó, que tem 1.240 ha e onde vivem 35 famílias de produtores em Juazeiro (BA). Foto: Rogério Machado/Gazeta do Povo

Pereira, por sua vez, acredita que a falta de chuvas deve pressionar cada vez mais os produtores. “Estamos usando as águas futuras. Temos 15 poços artesianos na comunidade e as antigas cacimbas que existiam já estão secas. Um poço que dava água com 72 metros de profundidade hoje precisa ser escavado até os 100 metros para verter água. E a vazão deles que antes era boa, hoje é pouca”, finaliza.

Leia mais sobre agricultura familiar em www.agrifamiliar.com.br

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