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colheita de munição

O país onde agricultores precisam colher restos de armas para plantar amendoim

Para plantar, o agricultor  Patrick Ogik  precisa muitas vezes remover os escombros da guerra que aconteceu em Uganda nas últimas décadas | MEGAN SPECIA/NYT
Para plantar, o agricultor Patrick Ogik precisa muitas vezes remover os escombros da guerra que aconteceu em Uganda nas últimas décadas (Foto: MEGAN SPECIA/NYT)

Logo ao amanhecer, Patrick Ogik colocou a canga de madeira no pescoço de seus dois bois e prendeu um arado de metal atrás deles, atado a cordas desgastadas pelo uso.

O agricultor de 44 anos guiou os bois para um campo que preparava para o plantio de amendoim, um pequeno pedaço de terra de sua propriedade próxima a Paicho, aldeia no norte de Uganda.

Quando o arado de metal cortava o solo, bateu em algo duro. Ogik se abaixou e puxou uma cápsula metálica da munição de um morteiro. Limpou a superfície com a mão.

“Aquela já tinha explodido, embora, às vezes, apareça munição ativa”, explicou ele. Deixou-a de lado e continuou seu trabalho.

Uma guerra brutal já devastou este lugar, e mudou a vida do Ogik. Lembranças da violência estão por toda parte, às vezes logo abaixo da superfície da terra.

O norte de Uganda foi o campo de batalha de um conflito de décadas entre o grupo de rebeldes do Exército de Resistência do Senhor, ou ERS, e o governo de Uganda. A aldeia de Paicho estava no centro dos combates.

O campo de Ogik já abrigou quartéis do Exército nacional, e os restos de construções de tijolos ainda estão de pé. Aqui, o chão está repleto de uniformes que os soldados descartaram quando saíram, há 10 anos. O material acabou sendo engolido pelo mato alto e enterrado.

Ogik achou uma camisa puída e a segurou, o céu azul visível através de seus buracos. Ele riu e a jogou ao lado da cápsula.

“Esta foi uma zona de guerra. Naquela época, não podíamos plantar muito porque só passávamos pouco tempo no campo; não era seguro”, disse ele.

O ERS aterrorizou o norte de Uganda por quase 20 anos, começando na década de 1980. Acredita-se que o grupo armado seja responsável por pelo menos cem mil mortes e o rapto de milhares de outras. Seus combatentes mutilavam civis, cortando seus membros, nariz ou lábios, e sequestravam as mulheres, com quem se casavam, e as crianças, que obrigavam a lutar.

Agricultores como Ogik não conseguiam cuidar de seus campos, pois temiam por suas vidas. Por causa disso, sua família dependia da ajuda alimentar para sobreviver.

De 1997 a 2007, ele viveu em um campo de desabrigados. Naqueles anos, o exército ugandês ordenava que os aldeões de Paicho e das áreas vizinhas fossem para esses acampamentos enquanto as tropas lutavam para acabar com o controle territorial do ERS, que era liderado por Joseph Kony, tido como homem santo.

Ogik, como todos os outros em sua comunidade, ficou sabendo com apenas 48 horas de antecedência que teria que abandonar sua casa.

“Agricultura de Guerra”

Suas lembranças dessa época são fortes. E hoje elas voltam, pois ele trabalha com vários agricultores locais, fornecendo alimentos para outro grupo de vítimas de guerra: um enorme afluxo de refugiados do Sudão do Sul chega ao norte de Uganda, fugindo de guerra em seu país de origem.

“Vivíamos em acampamentos, então sabemos como é a vida lá”, disse Ogik, descrevendo a afinidade que sente com os refugiados nos campos espalhados por todo o norte do país.

A colheita acabara de ser feita, e, algumas semanas antes, Ogik, junto com uma associação de agricultores locais, havia vendido seu milho para o programa mundial de alimentos. Os grãos serão usados para alimentar parte do 1,1 milhão de sul-sudaneses vivendo como refugiados nos campos da região.

A nova população de desabrigados em Uganda é uma das maiores do mundo, criada por conflitos na República Democrática do Congo, a oeste, além do Sudão do Sul, ao norte.

A região está relativamente pacífica desde 2009, quando os militares expulsaram o ERS de Uganda, mas as cicatrizes profundas, físicas e mentais, são difíceis de curar.

E o processo de reconstrução é lento, pois o governo luta para implantar um programa nacional abrangente de justiça e reconciliação.

Violações de direitos

Paicho é um dos lugares especialmente atingidos pelo conflito, disse Okwir Isaac Odiya, líder do Projeto de Justiça e Reconciliação, uma ONG que exige justiça para as vítimas de crimes de guerra e tenta promover a reconciliação na região.

“Há tensões entre comunidades e famílias porque uma culpa a outra pelo assassinato de seu filho ou filha”, disse Odiya.

Grupos de direitos humanos documentaram violações de ambos os lados do conflito. No quartel na fazenda de Ogik, por exemplo, dezenas de prisioneiros, incluindo alguns membros da comunidade local, foram torturadas, de acordo com relatórios da Anistia Internacional e outros grupos.

E muitos dos líderes responsáveis por atrocidades durante a guerra ainda precisam ser responsabilizados. Em 2015, Dominic Ongwen, ex-comandante do ERS, tornou-se o primeiro membro do grupo rebelde a comparecer perante o Tribunal Penal Internacional por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Kony ainda está foragido.

Em 2008, o órgão público Setor de Lei Ordem, estabeleceu um grupo para formular políticas e redigir uma lei nacional de justiça transicional para Uganda após a guerra. Vários projetos foram apresentados ao governo, mas nada foi aprovado.

O último deles prevê processos criminais formais, confissões e programas de reconciliação, indenizações e anistia.

“A falta de vontade política é a razão de tanta demora. Faz quase dez anos que a política está sendo elaborada. Quanto tempo teremos que esperar pela justiça transicional de Uganda?”, disse Odiya sobre o projeto.

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