Entre os biólogos, geneticistas e historiadores que usam a comida como instrumento de estudo da diáspora africana, o arroz, em particular, é um poço misterioso e sem fundo. Pouquíssima coisa se sabe sobre como e por que ele foi parar na cozinha de milhões de africanos escravizados.
É por isso que a variedade hill de Trinidade é um achado tão importante.
O grão robusto, originário da África Ocidental, de sabor marcante e casca vermelha e macia era muito popular nas mesas do Sul dos EUA durante grande parte do século XIX. Ao contrário do versátil Carolina Gold, que até a Guerra Civil era a variedade mais cultivada no país, o hill não fez os donos das plantações da região de Lowcountry, na Carolina do Sul, enriquecerem à custa dos escravos.
Ele não precisava ser semeado em campos inundados cercados por diques, o que significava que quem o cultivasse não seria castigado pela malária. Cresce na horta comum, que é como era plantado nas regiões da África Ocidental de onde muitos escravos saíram. Era o arroz de seus ancestrais, o grão que os sustentou e, mais tarde, sustentou cozinheiros sulistas brancos e negros.
Até Thomas Jefferson era fã. Alguns pesquisadores acham que foi ele que ajudou a disseminar a variedade no Sul, presenteando as pessoas com a semente africana que um capitão lhe entregou, em um baú, em 1790. Porém, na época da Primeira Guerra Mundial, o arroz tinha desaparecido, vítima das importações baratas, mais fáceis de cultivar, e da Grande Migração, durante a qual milhões de negros deixaram as fazendas do Sul.
É por isso que B.J. Dennis, chef gullah de Charleston, ficou assombrado ao encontrar o arroz crescendo em Trinidade, no campo de um agricultor descendente de escravos que moraram na Geórgia.
Dennis tinha ouvido falar da variedade hill, também conhecida como arroz barbado vermelho das terras altas ou Moruga Hill, através da organização culinária Slow Food USA e da Fundação do Arroz Carolina Gold, grupo que recuperou a tal cepa no início dos anos 2000. E ouvira as histórias contadas pelos cozinheiros mais antigos de sua comunidade. Como todo mundo, achava que o arroz da diáspora africana tinha se perdido para sempre.
Porém, em uma manhã chuvosa nas colinas de Trinidade, em dezembro de 2016, ele passou por coqueiros e pés de quiabo enormes para chegar às margens de um arrozal cujos pés exibiam os grãos maduros, recobertos por uma casaca avermelhada e com brotos que mais pareciam tufos pontiagudos.
“Lá estava eu, olhando para aqueles grãos e pensando: - Minha nossa! Não é possível! Esse é o arroz que tinha sumido”, conta Dennis.
É difícil descrever o choque dos estudiosos do grão ao saberem que a variedade que julgavam perdida no país tinha sido encontrada e era cultivada no Caribe. Agora, será plantado por horticultores do Instituto Smithsonian, estudado por geneticistas da Universidade de Nova York e catalogado pelo Departamento de Agricultura. Se tudo correr bem, poderá ser comercializado nos EUA e voltar a ser ingrediente básico daqueles que dedicam uma profunda apreciação à culinária negra norte-americana.
“É o grão da diáspora africana de maior significância histórica no Hemisfério Ocidental”, afirma David S. Shields, professor da Universidade da Carolina do Sul e presidente da Fundação do Arroz Carolina Gold, que trabalha com Dennis em projetos culinários históricos e estava com ele naquele dia chuvoso em Trinidade.
Aos 38 anos, ele acredita que a comida é o retrato vivo da história. E se dedica a promover a culinária da nação Gullah-Geechee, composta de descendentes dos africanos ocidentais que viviam ao longo da costa, da Carolina do Norte ao norte da Flórida. Foram seus integrantes que criaram os refogados de amendoim, os purloos com quiabo e os frutos de mar que caracterizam a cozinha da região de Lowcountry.
“O que estou fazendo é estudar a minha cultura através do alimento”, explica.
Mas como o arroz foi parar naquele campo em Trinidade? Shields tem uma teoria.
Começa durante a Guerra Anglo-Americana de 1812, quando os soldados britânicos prometeram terras e liberdade para um pequeno grupo de escravos da África Ocidental na Costa Leste se eles se voltassem contra seus senhores. Foi o que fizeram e cada um ganhou 6,5 hectares de terras não cultivadas no sul de Trinidade. Passaram a se chamar merikins, versão crioula para a palavra “americano”.
Um dos grupos foi a 4ª Companhia Marítima Britânica, de Sea Islands, na costa da Geórgia. O arroz, que Shields acredita fazer parte do barril de sementes de Jefferson, estava entre as variedades que o grupo levou consigo para Trinidade.
A peça que faltava no quebra-cabeça nunca teria sido encontrada se não fosse pelo etnobotânico trinitário Francis Morean, de ascendência merikin, que gravou entrevistas com mais de 60 pessoas que continuam cultivando o arroz na ilha.
Morean tinha viajado para o Sul dos EUA em setembro de 2015, como parte de sua exploração da cozinha da diáspora africana. Ouvira falar a respeito de Dennis, mas não conseguira encontrá-lo. Então, alguns meses depois, foi Dennis que entrou em contato com ele no Facebook, e os dois se aproximaram graças ao interesse comum no uso da agricultura para manter viva a herança cultural comum.
Até aí, ninguém ainda tinha feito a ligação entre o arroz de Trinidade e a versão que desaparecera do Sul; a maioria dos estudantes da culinária Gullah-Geechee, inclusive, achava que o Carolina Gold era a única variedade que os escravos africanos no litoral meridional preparavam.
Morean organizou um pequeno simpósio sobre o tema em Trinidade, em 2016, e pediu a Shields que falasse um pouco sobre o arroz hill da ilha. Entre os convidados estavam Dennis e Queen Quet Marquetta L. Goodwine, o líder eleito e a porta-voz oficial da Nação Gullah-Geechee, que geralmente contrata Dennis para cozinhar em eventos especiais.
Shields, que faz parte de uma empreitada internacional para descobrir novas técnicas de cultivo de arroz em terreno seco, começou a pesquisa e percebeu que a variedade hill de Trinidade podia estar ligada ao arroz norte-americano desaparecido que, por sua vez, poderia estar ligado aos arrozais da África Ocidental.
Naquela manhã úmida em Moruga, ele obteve a resposta que procurava.
“Quando saí do carro, fui caminhando em direção ao arrozal e vi os pés prestes a serem colhidos, soube que era o que procurava. Vi a história se concretizando ali na minha frente. De repente, o que era uma possibilidade abstrata e remota se tornou realidade.”
Glenn Roberts, fundador da Anson Mills, imediatamente se prontificou a fazer parte do projeto. Não há ninguém mais fanático em relação aos grãos originais do Sul do que ele, dono de uma empresa na Carolina do Sul que liderou o renascimento do Carolina Gold e vários outros grãos da região.
Roberts conseguiu que 36 quilos do arroz de Trinidade fossem enviados para os EUA, sendo que alguns foram para Edouardo Jordan, que abriu o restaurante Junebaby, em Seattle, em 2016. O chef preparou o arroz e adorou.
A variedade tem um comportamento bem diferente do Carolina Gold, que funciona melhor em receitas cremosas ou úmidas, como Hoppin’ John ou risoto. O hill é melhor seco, acompanhado de quiabo refogado ou salteado com chutney por cima.
Jordan ficou tão apaixonado que está tentando encontrar agricultores no noroeste dispostos a cultivá-lo, assim que a semente for aprovada pelo Departamento de Agricultura.
“Se pudermos recuperá-lo, sua história pode aprofundar o desenvolvimento da comida da diáspora africana dos EUA e ajudar a contar melhor a verdadeira história da culinária do Sul.”
Por enquanto, ninguém está produzindo a cepa em escala comercial, mas Shields e Roberts torcem para que seja adotado pelos agricultores gullah e se dissemine a partir daí. Enquanto isso, eles esperam encontrar um caminho econômico para importá-lo de Trinidade.
Para Dennis, o chef, um fornecimento constante daria a seus purloos, como o prato com arroz e quiabo chamado Limpin- Susan (geralmente considerada prima ou mulher do Hoppin- John), uma nova dimensão.
Ele também espera que o arroz chegue a ser vendido a um preço que a maioria possa comprar e que os negros passem a encará-lo, assim como outros pratos tradicionais, como alternativa saudável para a percepção popular da chamada “soul food”.
“A gente ficou condicionado a pensar só no macarrão com queijo e na verdura refogada”, afirma.
A culinária negra, pelo menos como a definida na região de Lowcountry, tem também guisados de ervilhas e legumes, além de variedades específicas de arroz.
“Em termos culturais, o hill é uma história oculta da narrativa negra e escrava dos EUA. Muitos de nossos ancestrais eram analfabetos e, por isso, várias histórias deixaram de ser contadas – mas podemos preparar esse arroz, o que, no fundo, não deixa de ser a mesma coisa”, conclui.
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