O que mais parece uma lista contemporânea de compras de supermercado é, na verdade, o resumo da revolução agrícola que estava acontecendo na Amazônia há cerca de 9 mil anos.
Mandioca, feijão, abóbora, goiaba, castanha-do-pará: esses produtos foram encontrados em um sítio arqueológico perto de Porto Velho (RO), onde pesquisadores acharam uma série de pistas sobre as primeiras formas de cultivo de plantas em solo brasileiro.
Algumas das datações obtidas pela equipe estão entre as mais recuadas de toda a América do Sul, perdendo apenas para os Andes.
Os indícios vão além do plantio propriamente dito: o grupo também encontrou exemplos antigos da terra preta de índio, um solo antropogênico (ou seja, gerado pela ação humana), resultado da acumulação e do manejo de resíduos orgânicos numa escala considerável de tempo.
“Para mim, os habitantes dessa área eram pescadores sedentários vivendo às margens de um dos lugares mais piscosos da Amazônia, usando seus quintais para fazer experimentos com cultivo e manejo de plantas”, diz Eduardo Neves, do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP).
Neves e a britânica Jennifer Watling, também do MAE-USP, estão entre os autores do artigo que descreve as descobertas na revista Plos One.
Atividade agrícola milenar
Os dados vêm das vizinhanças da chamada Cachoeira do Teotônio, no rio Madeira, local que, antes da construção da usina hidrelétrica de Santo Antônio, em 2013, abrigava uma vila de pescadores.
Trabalhos na região já indicaram que a formação da terra preta ali era um fenômeno muito antigo --possível atividade agrícola há milhares de anos.
Ademais, não é de hoje que o sudoeste amazônico (onde fica Rondônia) é considerado grande candidato a berço pré-histórico da agricultura --em posição não muito diferente do Crescente Fértil, no Oriente Médio, ou os vales dos grandes rios da China.
Quem estuda a diversidade genética de importantes espécies cultivadas hoje, como a própria mandioca, o amendoim e a pupunha, costuma apontar o sudoeste da Amazônia e arredores como centros de origem desses cultivos.
É possível inferir isso com base na distribuição de variedades e parentes selvagens das plantas domesticadas (regiões com a maior diversidade genética natural dos vegetais costumam corresponder aos centros de origem).
Mas, apesar de essa inferência ser bastante lógica, evidências diretas de práticas agrícolas antigas na região são escassas.
Dificuldades no cultivo
Parte do problema é a relativa falta de estudos arqueológicos de longo prazo e grande escala --algo que tem mudado nas últimas décadas, graças ao grupo da USP e a outros cientistas. As condições climáticas e de solo também não ajudam na preservação da matéria orgânica.
Watling e Neves resolveram a segunda parte do problema por meio de um pente-fino no material que escavaram, com métodos para peneirar cuidadosamente amostras de solo e extrair resíduos microscópicos de vegetais que tinham ficado grudados em instrumentos de pedra (usados para cortar ou ralar plantas).
Entre os resquícios, destacam-se grãos de amido produzidos pelas plantas e ainda os fitólitos, estruturas microscópicas feitas de sílica (essencialmente o mesmo material dos grãos de areia) presentes no organismo vegetal.
Tanto fitólitos quanto grãos de amido possuem formatos específicos dependendo do tipo de planta que os produz, o que permite identificar a presença de uma espécie mesmo após sua decomposição --e também há diferenças entre esses elementos quando se comparam as formas selvagem e domesticada da planta.
Além desses elementos, os pesquisadores também conseguiram identificar alguns restos macroscópicos de plantas, como cascas, sementes e fragmentos de tubérculos e raízes. E o que eles viram foi o que parece ser a progressiva intensificação do uso de recursos vegetais e a incorporação de vários componentes de um pacote agrícola.
Nos níveis mais antigos do sítio arqueológico, com idade a partir de 9 mil anos, ainda não há a presença de terra preta. Mas os cientistas identificaram fitólitos que, ao que tudo indica, são de ariá (Calathea allouia), uma das mais antigas plantas domesticadas nas Américas, cujos tubérculos, comparados a batatas, têm gosto que lembra o de variedades de milho cozido.
“Os dados confirmam a importância de tubérculos como alvos iniciais para domesticação nos trópicos. São excelente complemento a uma dieta baseada em proteína animal, no caso, a pesca”, afirma Neves. “Têm sempre uma grande capacidade de armazenamento no próprio solo, o que é um fator crítico para contextos quentes e úmidos. Essas plantas também podem se reproduzir por crescimento vegetativo, o que confere a elas uma baita versatilidade.”
De quebra, essa fase do sítio tem restos macroscópicos de castanha-do-pará, goiaba e pequiá, fruta típica da Amazônia.
No começo, esses frutos eram coletados, mas o seu uso constante pelas pessoas provocou uma redistribuição dos indivíduos dessas espécies pela região e alterou a composição da floresta, “domesticando” o próprio ambiente. As goiabeiras, por exemplo, preferem ambientes perturbados pela ação humana.
A prática agrícola parece se firmar em torno de 6.000 anos atrás, época na qual aparecem fitólitos de mandioca e abóbora e grãos de amido derivados de feijão.
Segundo os cientistas, a mandioca pode ter sido domesticada na própria região (alguns tubérculos carbonizados sem identificação precisa da fase anterior podem corresponder à planta). A abóbora e o feijão podem ser originários de outras áreas, tendo chegado à atual Rondônia por rotas de comércio.
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