Os Estados Unidos têm o potencial de quadruplicar o volume de exportação de trigo para o Brasil em 2019, graças à decisão de Brasília de liberar uma cota de 750 mil toneladas sem a Tarifa Externa Comum (TEC) de 10%, aplicada à importação de países de fora do Mercosul. A cota foi anunciada após o encontro dos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump, em Washington, há dez dias. Os EUA, em contrapartida, prometeram enviar técnicos para inspecionar frigoríficos brasileiros, antes de autorizar a retomada das exportações de carne bovina para aquele país.
A perspectiva de uma maior presença do trigo americano nos pães e massas dos lares brasileiros incomoda mais os argentinos, que fornecem 87% do trigo importado, mas têm efeito também sobre o ânimo dos agricultores paranaenses, que produzem 63% do trigo nacional.
No ano passado, o Brasil importou apenas 273 mil toneladas dos EUA, e tudo foi direcionado aos moinhos do Nordeste, por causa da proximidade geográfica. Mesmo que esse volume salte para 1 milhão de toneladas, os argentinos continuarão a dominar com folga o fornecimento de trigo ao Brasil, que traz de fora 55% do consumo anual de 12 milhões de toneladas. Em 2018, os hermanos exportaram para cá 5,93 milhões de toneladas, quase 22 vezes mais do que os EUA. O cereal ocupa o segundo lugar na pauta de exportações da Argentina para o Brasil, atrás apenas dos automóveis. As autoridades do país vizinho já avisaram que a criação de uma cota taxa zero, para países de fora do Mercosul, será questionada formalmente.
“Não há nenhuma justificativa para esta medida, que já foi tomada no passado quando a Argentina não tinha saldos exportáveis. Neste ano a colheita foi recorde, em quantidade e qualidade, e a comercialização segue fluida, desde o começo. Estamos fazendo gestões a diversas áreas do governo argentino, como o Ministério da Agroindústria, a fim de que sejam feitas consultas ao governo brasileiro para explicar esta medida unilateral, que deveria ser levada a cabo dentro dos passos exigidos nas regras do Mercosul”, diz Guillermo Garcia, secretário da Associação Argentina do Trigo (Argentrigo).
Do lado de cá da fronteira, a nova cota também não agradou muito aos agricultores paranaenses. “Todos os países têm a agricultura como fator de segurança nacional. Mas aqui não temos esse pensamento. É mais fácil fazer uma cota para os americanos, trocar a linha branca de geladeiras pelo trigo argentino, e o produtor daqui que se vire. Se não quiser plantar, que não plante”, reclama o engenheiro-agrônomo Leandro Bren, consultor de vários produtores de trigo na região de Guarapuava.
Desincentivos
Para Bren, a cota com tarifa zero é apenas mais um elemento de “desincentivo” para o cultivo de trigo no Brasil. “Agronomicamente, o trigo é uma cultura fantástica, pelo adubo que deixa no solo e favorece a soja no verão. Mas a previsão é de que o clima neste ano não será favorável, com um El Niño fraco, ou seja, períodos chuvosos na época da colheita. O custo de produção também é muito alto. Então, o agricultor vai olhar os custos, a tendência climática e agora a entrada do produto externo, e vai enxergar nisso tudo um desestímulo para plantar trigo”.
Até que ponto a cota extra-Mercosul pode mexer com o mercado? “A indústria do trigo diz que o volume não é suficiente para isso, mas temos informações de produtores que estão revendo a intenção de plantio para a próxima safra”, assegura Luiz Eliezer, economista da Federação da Agricultura do Paraná. “As 750 mil toneladas representam 10% do que importamos, não é um valor desprezível. É quase um milhão de toneladas a mais de trigo no mercado brasileiro”, aponta.
O mesmo volume é visto como pouco significativo pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina. “Essa cota representa só 11% das nossas importações de trigo. Isso está colocado à mesa. Os russos podem aproveitar dessa cota, os americanos e canadenses idem. É uma questão de competividade dos preços do trigo que poderão vir nessa cota, que tem tarifa zero, e é muito boa para quem quer exportar trigo para o Brasil”, disse a ministra nesta semana em entrevista à Expedição Safra da Gazeta do Povo. Tereza Cristina fez questão de destacar que a cota não é só para os EUA e que se trata de um compromisso assumido pelo Brasil em 1994, na Rodada Uruguai da Organização Mundial do Comércio, e que nunca havia sido cumprido.
Preço melhor, área menor
Um novo levantamento do Departamento de Economia Rural da Secretaria de Agricultura do Paraná aponta que a área plantada com trigo no estado deverá encolher, nesta safra, 60 mil hectares em relação ao ciclo anterior, quando foram cultivados 1,1 milhão de hectares. “O preço da saca de trigo está em R$ 48 na maioria das praças, enquanto no ano passado, nesta mesma época, estava em R$ 37. Pode ser que esta redução de área esteja mais em função de o produtor olhar para o passado do que para o futuro. É que no ano passado teve quebra e no ano retrasado também”, destaca Godinho.
Parte da área perdida pelo trigo deve ser absorvida pelo milho safrinha. A previsão do Deral é de que o Paraná cultive no inverno 2,28 milhões de hectares de milho e 1,04 milhão de trigo. “Se somar as duas áreas juntas não dá a área de soja no verão, que é de 5,4 milhões de hectares. Espaço para as duas culturas existe, mas acaba sendo uma opção do agricultor não produzir”, diz o analista. Ele observa que devido às limitações geoclimáticas, o milho segunda safra só pode ser produzido em cerca de metade do Paraná, mas o trigo poderia estar no estado inteiro. “Onde se planta soja, poderia ser plantado o trigo. Até numa época mais adequada que o milho, mas, como envolve mais riscos, essa cultura acaba sendo preterida”.
Para Luiz Eliezer, da FAEP, dentro da cota de tarifa zero o trigo americano poderá chegar ao mercado brasileiro com o melhor preço da praça. Atualmente, o trigo produzido localmente custa R$ 900 a tonelada. O trigo argentino entra num valor de R$ 849 e, o americano, a R$ 890. Isso sem a isenção da tarifa de 10%. “De repente, o trigo dos EUA pode até ficar mais barato. Eles têm diversas reduções de impostos, a infraestrutura e a logística são muito boas. O nosso gargalo logístico é bem diferente da realidade americana”.
Leandro Bren entende que o trigo deveria ser tratado de forma mais estratégica. “É preciso uma política pública para o trigo. O governo deveria garantir um preço mínimo, que pelo menos fechasse os custos de produção. É uma cultura de alto risco, pode chover na colheita, gear no florescimento ou no início do enchimento de grãos. O produtor corre todos esses riscos, colhe muitas vezes um produto de qualidade, mas não tem preço”.
Apoio da indústria
O Sindicato da Indústria do Trigo do Paraná, que representa os moinhos, apoia as medidas orientadas para um mercado livre. Na região Sul estão 75% dos 200 moinhos brasileiros. “Por ter esse grau elevado de consumo, a gente realmente tem dado liquidez ao trigo do Paraná. Olhando nacionalmente, o mercado livre seria o melhor caminho para o consumidor. No curto prazo, a cota pode ter algum impacto, mas no médio-longo prazo, a tendência é de se ajustar”, afirma Daniel Kümmel, presidente do Sinditrigo-PR.
Godinho, do Deral, concorda em parte. “Tem o lado positivo, para o consumidor. O preço das massas e dos pães podem ficar não digo menores, mas estáveis por mais tempo. Isso ajuda. Mas para o produtor, que acaba desistindo da cultura, fica pior a longo prazo”.
Desistir do trigo não está na lista de opções do produtor Gibran Thives Araújo, que cultiva 840 hectares em Candói, na região de Guarapuava. Ele diz que vê o cereal como parte de um sistema de produção, para ratear custos de mão de obra e maquinário, gastos com adubação e controle químico das lavouras. “Por mais que financeiramente o trigo dê zero a zero, eu não sigo o mercado, eu sigo uma questão técnica de rotação de culturas e administração da fazenda. Faço um planejamento de médio e longo prazo”.
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