Exportação de soja pelo Porto de Paranaguá: em resposta às tarifas impostas por Trump, países como a China devem aumentar compra da commodity do Brasil, em substituição à americana.| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo/Arquivo
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O anúncio das novas tarifas sobre produtos estrangeiros nos Estados Unidos deve dar início a uma grande mudança no tabuleiro do comércio global, e o agronegócio do Brasil pode ser beneficiado nesse novo cenário. A avaliação é praticamente unânime entre analistas de mercado e especialistas do setor.

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Produtores e exportadores brasileiros de alimentos podem se beneficiar em duas frentes.

Uma delas é a retaliação da China aos EUA. O início de uma guerra comercial entre os dois países era esperado desde antes do anúncio de Donald Trump na quarta-feira (2), e se concretizou nesta sexta (4), quando os chineses anunciaram tarifas de 34% sobre todos produtos norte-americanos. A medida abre espaço para a entrada de mais produtos do agro brasileiro no mercado chinês, ocupando o lugar dos concorrentes norte-americanos.

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A outra frente é a possível ampliação de mercados dentro dos próprios Estados Unidos, apesar da nova taxação. À primeira vista, a imposição de uma alíquota mínima de 10% sobre todos os produtos brasileiros que entram no mercado americano parece criar um entrave para as exportações do Brasil. “Digamos que, se é ruim para nós, é, na verdade, pior para os outros, o que tende a abrir uma outra dinâmica competitiva”, diz Daniel Vargas, professor da Escola de Economia de São Paulo (EESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

Isso porque a tarifa sobre as exportações brasileiras representa a taxa mínima imposta pelo governo de Donald Trump na comparação com outros países. A taxação sobre as compras da China será de 34%; da União Europeia, 20%; do Vietnã, 46%; do Camboja, 49%; da África do Sul, 30%; de Israel, 17%; e do Japão, 24%, por exemplo. 

Vargas destaca que, considerando as principais commodities agrícolas que os Estados Unidos importam do Brasil, os países fornecedores concorrentes em geral serão afetados por tarifas mais elevadas. 

No caso do café, o Brasil é hoje o maior exportador global, e os Estados Unidos são o principal destino do grão. O Vietnã, principal concorrente do Brasil na exportação de café para os Estados Unidos, ficou com uma tarifa de 46%. “A tendência é que o café vietnamita tenha um preço mais elevado que o nosso, e isso eventualmente abre o espaço para a gente ganhar mais participação no mercado americano”, diz. 

No caso de produtos florestais, o maior concorrente brasileiro é a Alemanha, que, por fazer parte da União Europeia, será taxada em 20% em suas exportações. O suco de laranja, outro produto com grande participação na pauta de exportações brasileiras para o mercado americano, concorre com o produto tailandês, que terá tarifa de 36%. “A primeira análise é que, em geral, o impacto na nossa competitividade será baixo”, sintetiza Vargas. 

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Apesar das tarifas de Trump, EUA continuarão dependentes de produtos brasileiros 

Felippe Serigati, coordenador do Mestrado Profissional em Agronegócio do FGVAgro, acrescenta que a produção própria dos Estados Unidos não é capaz de suprir a demanda interna, o que torna o país dependente das importações das commodities brasileiras. 

“O grande perdedor, na minha opinião, é o consumidor americano”, diz. No caso da carne bovina, por exemplo, os Estados Unidos estão com o menor rebanho desde 1970, o que tem feito o país aumentar ano a ano a importação da proteína brasileira.

“A demanda não vai mudar. Se encarecer esse produto via barreira de importação, o consumidor americano vai pagar mais caro”, explica Serigati. 

O mesmo vale para o café, uma vez que não há grande produção nos Estados Unidos. “No caso do suco de laranja, já fomos concorrentes da indústria americana, havia uma disputa dos pomares de São Paulo com os da Flórida, que hoje se reduziram muito. Para atender a demanda por suco de laranja hoje eles têm de recorrer ao Brasil. Não tem produção interna que atenda”, afirma. 

Outro importante produto brasileiro que os Estados Unidos importam é o etanol de cana de açúcar – o biocombustível americano é derivado do milho. Mas a maior parte é destinada à Califórnia, que exige metas de redução de emissões de carbono que a produção do etanol de milho não é capaz de atender, o que torna o estado dependente do combustível brasileiro.

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Em retaliação aos EUA, outros países devem importar mais do Brasil – a começar pela China

Para além da relação comercial direta entre Brasil e Estados Unidos, a imposição de tarifas recíprocas pelo governo americano pode beneficiar o agro brasileiro ao alterar as relações entre os demais países. 

Do ponto de vista político, Serigati considera razoável que produtos agropecuários sejam um dos principais alvos da retaliação de Europa e China à nova política comercial americana. “De um lado porque a base eleitoral do Trump é o agro. De outro porque é um mercado em que há outros fornecedores, e o principal concorrente americano nesse setor é justamente o Brasil.” 

Thais Italiani, gerente de inteligência de mercado da Hedgepoint Global Markets, lembra que esse movimento já vem acontecendo desde os primeiros sinais de que Trump elevaria as tarifas sobre produtos chineses. “O Brasil já tem aproveitado desse momento da China olhando mais para a soja brasileira e há espaço para a gente exportar ainda mais, até para outros países”, diz. 

Além disso, ela destaca que, em se tratando de commodities, o que dita o fluxo comercial é o preço. “O anúncio de Trump fez enfraquecer a moeda americana e isso pode acabar abrindo espaço para outros países terem um poder de compra maior”, explica. 

A grande oferta de soja brasileira, que tem registrado safra recorde este ano, no entanto, não deve fazer os preços subirem mesmo com o aumento da demanda, o que deve resultar em um aumento significativo no volume de exportações, porém mais contido no valor total. 

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Por outro lado, para um grande consumidor como a China, que depende da importação de soja durante todo o ano, ainda haverá necessidade de compra do produto americano.

“A soja americana e a brasileira são produzidas em momentos distintos. A China vai às compras da soja americana no meio do segundo semestre, entre setembro e outubro, e da soja brasileira no final do nosso verão, em algum momento ao longo do primeiro trimestre, às vezes no início do segundo trimestre”, ressalta. Embora tenha uma boa capacidade de estoque, o país asiático não consegue se livrar da importação americana, explica.

Para ele, um produto brasileiro que deve ganhar ainda mais relevância no comércio global é o algodão. No ano passado, o Brasil superou os Estados Unidos e passou a ser o principal fornecedor mundial da fibra, que tem como maiores consumidores países como China, Índia e Paquistão. 

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Qualidade e estabilidade favorecem o agro brasileiro  

Vargas ressalta que o “tarifaço” americano eleva riscos e incertezas nas dinâmicas comerciais como um todo. “Um dos propósitos do Trump [com as novas tarifas] é atrair indústrias para os Estados Unidos, mas um investimento para instalação de uma fábrica em outro país é um investimento que exige planejamento de anos ou até décadas”, pondera. 

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Para ele, sem uma segurança mínima de que essa reorganização do comércio é uma política de Estado, que transcende o atual mandato, é pouco provável que empresas tomem a decisão de investimentos de longo prazo. 

“Em um ambiente de alta incerteza, a tendência é que haja um olhar mais cauteloso para produtos que são a base da economia e da sociedade, a começar pelo alimento, que muitos identificam como a matriz básica de organização de qualquer economia, em qualquer país”, diz Vargas. 

“É por esse motivo que muitos países do mundo, ainda que não sejam competitivos, subsidiam a produção de alimentos, para diminuir a sua vulnerabilidade no comércio internacional”, acrescenta.

Assim, nesse ambiente de incerteza elevada, a posição estratégica do alimento também tende a se fortalecer, o que dá ao Brasil, um dos maiores exportadores do setor, um poder de negociação significativo. 

“É como se a gente transmitisse a seguinte mensagem ao mundo: ‘podem contar conosco, um país estável, que não tem guerras, que vive seus problemas, mas que tem sido historicamente um produtor e comercializador confiável, que vai garantir na sua mesa uma refeição de qualidade’. Isso pode ser algo que beneficie, no médio prazo, a depender da inteligência e da capacidade do Brasil de saber usar essa virtude a seu favor.” 

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Efeito negativo das tarifas de Trump: máquinas agrícolas podem encarecer produção 

É consenso entre especialistas, no entanto, que os impactos do “tarifaço” não devem ser tão simples ou imediatos. “Ninguém hoje no mundo acha que essas tarifas do Trump são o último capítulo da história das negociações comerciais do planeta, mas, ao contrário, elas vão inaugurar reações de vários países", diz Vargas. 

Um dos efeitos indiretos sobre o agro deve ocorrer no maquinário agrícola. O Brasil importa muitos equipamentos utilizados no campo, em grande parte da China e dos Estados Unidos. E a indústria de máquinas agrícolas americana importa componentes de outros países, que também serão alvo de aumento de tarifas, o que significa que o preço desses equipamentos importados pelo Brasil também pode subir. 

“Esse aumento do custo do maquinário para produção no agro brasileiro também é algo que aumenta os nossos custos e pode ter um impacto na nossa produção. Há uma sequência de interações que precisa ser examinada com cuidado e caso a caso”, complementa o professor da FGV. 

Para além dos fornecedores e dos mercados de destino em si, o ambiente de guerra comercial deve promover uma mudança na maneira como os mercados se conectam.  

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“A conexão deixa de se dar em uma plataforma relativamente aberta e governada pelo preço e passa a se dar a partir de acordos ou de parcerias estratégicas. É o que muitos chamam de uma nova era, de acordos bilateriais ou regionais. Nesse ambiente, os países podem optar por restabelecer parcerias que fechem mercados, fazendo negociações cruzadas”, explica Vargas. “Isso mexe em um campo em que o Brasil sai na frente do mundo inteiro, que é no preço e na qualidade.”