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A época das vacas gordas nas trocas comerciais entre Brasil e China pode estar ameaçada pelos números do PIB do gigante asiático. A previsão do Banco Mundial é de que a China cresça apenas 2,8% neste ano, contra média de 7% entre 2016 e 2020 e acima de 10% entre os anos 90 e o início dos anos 2.000. Estima-se que até 2049 o crescimento do PIB chinês deverá ficar entre 2,7% e 4,2% ao ano. Reportagem desta Gazeta do Povo mostrou que pela primeira vez desde 1980 o PIB brasileiro pode crescer mais do que o PIB chinês.
Sintomático da nova realidade, pela primeira vez o plano quinquenal de desenvolvimento da China, o 14º, referente ao período entre 2021 e 2025, não fala em percentual de crescimento do PIB. “A China que crescia a taxas de dois dígitos não existe mais. O país tem um problema demográfico instalado, com a população predominantemente masculina e taxa de natalidade extremamente baixa. Em segundo lugar, a economia chinesa tem alta dependência do governo para crescer. A taxa de investimento do governo chinês era em média de 40% do PIB. A média de qualquer governo no mundo é de 15%, quando muito 20%. Sabíamos que a economia chinesa ia ter que aterrissar uma hora, a pergunta-chave era quando isso iria acontecer”, sublinha José Carlos de Lima Júnior, especialista em negócios com a China da consultoria Markestrat.
Desde 2009, quando desbancou a posição centenária dos Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil, a China quebrou recorde após recorde nas trocas comerciais com o parceiro sul-americano. O Brasil exporta hoje sessenta vezes mais para a China do que em 2001, quando o país asiático entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC).
De menos de US$ 1,08 bilhão por ano, a conta de pagamento dos chineses chegou em 2021 a US$ 60,1 bilhões, representando mais de 30% de tudo o que é exportado pelo Brasil. No agronegócio, a participação é ainda maior. Sozinha, a China é destino de quase 40% das exportações brasileiras do setor e, em contrapartida, de tudo o que eles compram de alimentos, 20% vêm do Brasil, seu maior fornecedor.
Brasil e China, um casamento histórico e geográfico
“É como se fosse um casamento obrigatório, sem muito direito de escolha. Um casamento que se deu pela história, pelo fato de o Brasil ter feito uma revolução agrícola nos anos 70 e, na mesma época, a China fez uma revolução manufatureira. E foi também um casamento pela geografia, porque eles não têm recurso natural, então, precisam comprar certos produtos”, aponta Marcos Jank, professor de Agronegócio Global do Insper que viveu os últimos quatro anos na Ásia, apoiando a expansão da BRF no continente.
Além de comprar pesadamente, a China também investe forte no Brasil. A China Global Investment Tracker estima que o Brasil, com US$ 46,4 bilhões, foi o país que mais recebeu investimentos chineses no mundo em 2021, 13,6% do total. Na contramão, os investimentos do país asiático nos Estados Unidos caíram 27% e, na Austrália, 70%. De tudo o que os chineses investiram na América do Sul, 48% ficaram no Brasil, seguido pelo Peru (19%), Chile (12%) e Argentina 8%).
É preciso, contudo, ficar de olho nas diretrizes de Pequim. Na “teoria da circulação dual”, as autoridades chinesas pretendem dar atenção especial à circulação interna de bens e serviços, com ênfase na necessidade de autossuficiência em vários setores e reforço das capacidades tecnológicas internas. A circulação externa, contudo, segue estratégica, com ampliação de presença de capital chinês em outros países e conclusão de acordos comerciais, como o da Parceria Econômica Abrangente Regional (RCEP), assinado com 14 economias asiáticas, incluindo o Japão e a Coreia do sul.
Chineses compram do Brasil quase o triplo dos americanos
O cenário ganha relevância devido à sinodependência da economia brasileira. Em 2021, as trocas comerciais com os chineses representaram 67% do superávit da balança, de US$ 61,2 bilhões, que foi um recorde histórico. Os chineses gastam praticamente o triplo em compras do Brasil do que os americanos, que estão em segundo lugar (US$ 84,4 bilhões contra US$ 29,5 bilhões em 2021). Atualmente, quase 70% da soja brasileira tem como destino a China. Os chineses também levam 52% dos embarques de carne bovina, 48% das exportações de carne suína e 15% do frango.
Tanta dependência pode criar situações tensas, como a vivida há um ano no mercado de carne vermelha. Os chineses ficaram quase dois meses sem comprar o produto brasileiro, após casos suspeitos de “mal da vaca louca”. A questão sanitária teria sido uma desculpa para mandar um recado diplomático, de que a China não é dependente do alimento brasileiro e não tolera ataques como os feitos pelo ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, que, entre outras coisas, chamou o coronavírus de “comunavírus”.
“Não é muito inteligente ficar chutando seu cliente. A gente tem que negociar sim, duramente, tem que abrir mercado, fazer as coisas baseadas em ciência, conhecimento, previsibilidade, confiança e transparência. Mas a verdade é que se não fosse a China, o agro brasileiro não teria feito o que fez nos últimos vinte anos”, pondera Jank.
Hora de diversificar clientes e diminuir sinodependência
Apesar da “inevitabilidade” do casamento sino-brasileiro, Jank entende que o momento exige iniciativas, tanto do setor público como do privado, para diversificar e agregar valor às exportações para a China e, ao mesmo tempo, diminuir a dependência do país em relação a um único parceiro asiático. E muitas das oportunidades estão naquela mesma região. Algo que já está nos radares do planejamento do governo federal desde 2018, conforme o documento Estratégia de Desenvolvimento Econômico e Social (Endes 2020-2031), que afirma que “o deslocamento do eixo dinâmico da economia global para o leste, prenunciando o que se convencionou chamar de ‘século asiático’ é um fenômeno histórico que o Brasil não pode ignorar. (...) Por conta disso, o Brasil persegue o estreitamento dos laços políticos e econômico-comerciais com os países asiáticos, e também com os países africanos e do Oriente Médio. ”.
As oportunidades estão em países como a Indonésia, com 273 milhões de consumidores, Tailândia, Filipinas, Vietnam e a Índia, que com seus 1,38 bilhão de habitantes, é um caso à parte. As exportações anuais para a Índia, US$ 2,15 bilhões em 2021, ainda são uma pequena fração do montante enviado à China. “A Índia é outro país superpopuloso, com grande potencial de mercado, ainda fechado e que não compra quase nada da gente. Precisamos buscar esses mercados”, afirma Jank.
Lima Júnior também vê potencial nos outros países asiáticos. Nenhum vai substituir o protagonismo da China, mas a balança pode ficar um pouco mais equilibrada. “A Índia com certeza vai ocupar um lugar de destaque na importação de alimentos. Dificilmente ela vai passar por uma revolução agrícola como o Brasil passou, apesar de ter área agricultável. A própria lógica das castas acaba limitando o acesso à terra, ao crescimento do indiano dentro da sociedade, enquanto empresário”, salienta o consultor.
Desafio de se vender, e não apenas "ser comprado"
O desafio ao agro brasileiro, assim, é cada vez ser menos “comprado”, passando ativamente a “se vender” lá fora. Essa mudança de chave já começa a ocorrer, na medida em que as novas gerações vão assumindo a gestão das propriedades. “Eles estão mais preocupados não só em ter um sistema de produção muito mais amigável, em relação ao meio ambiente e à sociedade, mas também em ter um produto que seja bem remunerado. E estão procurando outros mercados, saindo um pouco dessa postura de ser quase sempre demandado, de produzir e ter certeza que a China vem e compra”, argumenta Lima Júnior.
Em outra frente, é preciso ter políticas de Estado bem definidas. “Qual é o horizonte que a gente quer para o agro? É ser produtor de alimentos ou vamos industrializar? Acho que a função do governo é criar uma estrutura jurídica e institucional, que o país decida o que quer ser daqui a 100 anos e crie o ambiente de negócios necessário para o setor privado investir”, salienta o consultor da Markestrat. Essas políticas de Estado deveriam trazer mais previsibilidade e confiança. Ele cita o RenovaBio, criado em 2017 para diminuir o consumo de combustíveis fósseis e fomentar os biocombustíveis. “Em questão de um mês da aprovação, o governo já queria fazer um monte de emendas e penduricalhos”, observa.
Outro exemplo de mudança de regras no meio do jogo está no que aconteceu com a reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Nos anos 70 e 80 o governo incentivou os produtores do Sul do país a subirem o mapa e desenvolver o estado de Roraima. “Mas no início dos anos 2.000 o STF entendeu que a área fosse demarcada como reserva indígena, fazendo desaparecer, da noite para o dia, a maior produção de arroz do Brasil que se desenvolveu em Roraima. Os produtores que foram para lá desenvolver uma área, por chamada do governo, por oportunidade criada, se tornaram ocupadores. Essa instabilidade jurídica joga contra o agro”, enfatiza Lima Júnior.
Forte urbanização garante nível elevado de consumo na China
Estudo do Centro Empresarial Brasil-China (CEBC) aponta que o gigante asiático se encontra à porta da nova economia baseada em conhecimento, após ter se tornado a segunda economia mundial (a primeira em poder de paridade de compra), alcançar status de país de renda média alta (PIB per capita de US$ 10 mil), chegar a uma taxa de urbanização de 59% e ver o setor de serviços ultrapassar a indústria na proporção do PIB.
“A China tem hoje não somente a maior população de idosos do mundo, mas também é a sociedade que passa por um dos mais rápidos processos de envelhecimento. Há, contudo, tendências em curso que podem mitigar o problema do envelhecimento: a adoção da inteligência artificial poderá substituir 280 milhões de trabalhadores; a urbanização, partindo de 59% em 2018 para 80% em 2049, pode garantir crescimento contínuo do consumo, já que a renda per capita nas cidades é o dobro daquela nas áreas rurais”, diz trecho do estudo do CEBC, assinado pela economista Tatiana Rosito, que foi ministra-conselheira e encarregada de negócios na Embaixada do Brasil em Pequim, e representante da Petrobras na China.
Na análise da economista, tão importante quanto o que o Brasil pode exportar para a China, é o que importa ou pode importar, e como construir canais estáveis e eficientes para absorver novas tecnologias em que a China oferece liderança crescente. “A China desponta cada vez menos como competidora e ameaça e cada vez mais como referência e oportunidade, inclusive de como a ação governamental concertada pode estimular a transformação estrutural e a diversificação econômica”, aponta Rosito.
Diversificar exportações depende do Brasil
O aumento da renda do consumidor chinês, e a sofisticação de seus hábitos, abre oportunidades para produtos com maior valor agregado do Brasil. Mas isso não deve ocorrer sem esforço e estratégia assertiva. “Não será por decisão do governo chinês ou das operadoras econômicas chinesas que nós diversificaremos as nossas exportações, isso depende de nós. São muitas as oportunidades, mas não são laranjas maduras na beira da estrada. Nós temos que fazer um esforço”, afirmou o embaixador do Brasil na China, Paulo Estivallet de Mesquista, durante a última conferência anual do CEBC.
A conferência concluiu que os setores de agronegócio e as commodities minerais e energéticas, em que o Brasil tradicionalmente compete com grande eficiência, continuarão a ter um grande mercado na China. No entanto, a "servicificação" da economia chinesa deverá criar oportunidades para outros países em desenvolvimento. Documento do FMI, de três anos atrás, já previa este cenário: "Se a China for capaz de começar a próxima fase de transformação estrutural, de um país industrial para pós-industrial, uma economia baseada em serviços modernos, sem cair na armadilha da renda média, isso permitirá que outros países menores preencham o espaço deixado na manufatura. O processo poderá se beneficiar se outros países, como o Brasil, forem capazes de se livrar da armadilha da renda média em que caíram". *Armadilha da renda média é a estagnação de um país num nível intermediário de desenvolvimento.
30 anos de parceria estratégica com a China
Em 2023 se comemorarão os 30 anos da parceria estratégica Brasil-China, estabelecida em 1993 durante visita ao Brasil do então secretário-geral do Partido Comunista Chinês, Jiang Zemin. Para Tatiana Rosito, a fraca presença comercial e de investimentos brasileiros na China e no seu entorno é um fator de preocupação. Além disso, em artigo publicado na revista Interesse Nacional, a economista avalia que a intenção chinesa de aumentar a autossuficiência e a segurança alimentar e energética “deveria servir de incentivo para a negociação de acordos comerciais e regulatórios bilaterais que consolidem e ampliem os mercados conquistados, evitando retrocessos”.
Assim, o Brasil precisa se esforçar para não ser apenas um fornecedor, mas alcançar reconhecimento de suas marcas, da qualidade e sustentabilidade de seus produtos diante dos afluentes consumidores chineses e asiáticos. “No momento em que a China volta todas as suas energias para a inovação tecnológica com o objetivo de alcançar segurança e liderança em setores-chaves – em alguns dos quais o Brasil tem relevância global, como em alimentos, novas energias e florestas –, é importante dinamizar a parceria e ampliar trocas e contatos. Uma estratégia para a Ásia é tão importante quanto uma estratégia para a China. O Brasil já tem portas importantes na região, não somente bilaterais, mas também com a Asean e através dos Brics. No ano em que a parceria estratégica Brasil-China completará 30 anos, caberá ao governo eleito no Brasil avaliar mudanças e continuidades na definição do interesse nacional”, conclui Rosito.
No curto prazo, as crises geopolíticas no Leste Europeu e na Ásia, devido à Guerra da Ucrânia e os problemas da China com Taiwan, acabaram criando oportunidades para o Brasil. Em 2023, os chineses devem aumentar as compras de milho brasileiro e americano, por exemplo, já que os tradicionais fornecedores, Ucrânia e Rússia, estão se digladiando. O milho importado será necessário dentro do programa de substituição das criações suínas de fundo de quintal - dizimadas pela peste suína africana - por granjas modernas. "Granja moderna usa milho e soja, não usa restos de cozinha na alimentação", aponta Marcos Jank.
O especialista em Ásia resume o cenário: “Para onde vai hoje o investimento no mundo? Tenho certeza que o pessoal está muito mais cauteloso com Rússia, com Leste Europeu e com a China. Se a gente se mostrar bastante confiável, e no agro somos bastante confiáveis, podermos sair desse processo com grandes oportunidades”.