O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal, relançado na quarta-feira (22) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tem um histórico marcado por fraudes, que viraram caso de polícia, e “situações esdrúxulas” apontadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em que milhares de toneladas de alimentos foram doadas a poucas pessoas.
No governo de Dilma Rousseff (PT), houve casos de 1.455 kg de banana distribuídos por pessoa, numa ação social na Bahia, e de 1.184 kg de milho por beneficiário, em Presidente Prudente (SP). Ainda que a gestão alardeie que já distribuiu R$ 8 bilhões a 500 mil agricultores familiares desde 2003, a auditoria do TCU, em 2016, mostrou que intermediários abocanhavam 70% dos recursos.
Alguns desvios deram causa a operações da Polícia Federal, como a Schistosoma, em 2012, em Araraquara e região (SP), e a Pesticida, em 2019, em cidades do Mato Grosso do Sul. As fraudes envolviam servidores da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), de cooperativas e prefeituras, e culminaram com prisões, denúncia por formação de quadrilha e estelionato contra a União.
Nesta nova fase do programa, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome informou que vai priorizar "mulheres, negros, indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária". O montante inicial de repasses deve ser de R$ 500 milhões.
Uma leitura atenta da auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União em 2016 evidencia que um mal crônico do programa sob administração petista, à parte má-fé e corrupção de alguns, estava na desorganização administrativa e falta de cuidados mínimos de governança.
Volumes exorbitantes de banana, milho, pepino...
Os volumes gigantes de banana e milho para meia dúzia de beneficiários do PAA foram apenas os mais expressivos dentre vários outros hortifrútis – como cenoura, inhame, pimenta, pepino, melancia, quiabo e abóbora – que registraram distribuição per capita muito superior à média de consumo anual calculada pelo IBGE. No inhame, a distribuição chegou a ser 113.828% mais alta que a média.
As distorções passaram praticamente despercebidas à época dos fatos, entre 2012 e 2014, mas foram constatadas em auditoria operacional do TCU no Programa de Aquisição de Alimentos, em 2016. Em acórdão de 2017, o TCU determinou uma série de medidas corretivas no PAA, modalidade compra com doação simultânea, operado pela Conab em âmbito nacional. O processo segue em andamento e a única peça pública disponível, no momento, é o Acórdão de relação 3293/2020 - Plenário.
Chamou atenção dos fiscais do TCU a compra, sem licitação, de 72.782 kg de banana para a Pastoral da Criança na Bahia, para atender 50 beneficiários. Ao dividirem a quantidade de alimento pelo número de beneficiados, os técnicos concluíram ter encontrado uma “situação esdrúxula”: 1.455 kg de banana por pessoa, contra uma média de consumo anual de 6,9 kg por pessoa, segundo o IBGE.
Outro item que também destoou na casa das toneladas foi o volume de milho de outro contrato, desta vez com a Mitra Diocesana de Presidente Prudente: 90 mil kg entregues para benefício de 76 pessoas. Na média, 1.184 kg de milho por beneficiário.
“Os cálculos foram utilizados como se os alimentos fossem entregues para consumo durante um ano, no entanto o resultado seria igualmente expressivo caso fosse utilizado o consumo das pessoas pela vigência máxima das CPRs (de dois anos)”, destacava a auditoria, apontando ainda as dificuldades para armazenar esses produtos.
Dentre outros itens básicos também fornecidos em quantidades pantagruélicas, vale mencionar ainda o pepino (29.764 kg para 51 beneficiários, ou 583 kg por pessoa), a pimenta (15 mil kg para 350 beneficiários, ou 42,8 kg por pessoa), a melancia (32.140 kg para 52 beneficiários, ou 618 kg por pessoa) e o quiabo (5.480 kg para 20 beneficiários, ou 274 kg por pessoa).
Números apontam para desorganização gerencial
Tanto alimento entregue de uma única vez, teoricamente para poucas pessoas, não quer dizer necessariamente que líderes religiosos ou de ONGs tenham se locupletado com bananas, quiabo, pepino e pimenta. É razoável, e factível, entender que o problema estava muito mais ligado à desorganização administrativa e contábil do Programa de Aquisição de Alimentos do que à má-fé de beneficiários.
À época, os próprios técnicos do Tribunal de Contas da União foram parcimoniosos, e preferiram não tirar conclusões imediatas, apenas em função dos números. Mas também não descartaram a possibilidade de desmandos.
“Importante destacar que esses casos não se tratam necessariamente de fraude ou desvio, mas revelam descontrole e falta de planejamento entre as aquisições efetuadas pela Conab e a quantidade demandada pelas organizações recebedoras nos processos do PAA/CDS. Como efeito dessa situação nota-se que a falta de planejamento para a conciliação entre a oferta de alimentos da agricultura familiar e a demanda das unidades recebedoras pode resultar em desperdício, fraudes e atendimento a pessoas que não estejam incluídas no público alvo da política pública, causando inclusive prejuízos financeiros”, disse o relatório.
Todas as compras citadas no relatório, assim como as novas compras que o governo Lula pretende fazer no PAA, tiveram dispensa de licitação. A modalidade Cédula de Produto Rural - Doação (CPR Doação), onde foram apontadas as distorções, está de volta.
Por esse instrumento, os fornecedores entregam alimentos a uma organização ou associação, que faz remessa dos produtos às instituições beneficiadas. Essas instituições fazem a entrega ao consumidor final e precisam confirmar o fechamento do ciclo à Conab. Só então a Conab quita as compras junto aos fornecedores.
Mortos e políticos entre beneficiários do PAA
No período fiscalizado, de dois anos, o TCU encontrou 15.951 beneficiários que apresentaram indícios de não cumprimento dos requisitos do programa. Dentre eles, 548 mortos, 2.182 proprietários de imóvel rural com área superior a quatro módulos fiscais (limite para participação no PAA) e 2.331 pessoas que possuíam ocupação em período integral em outro estado da federação, diferente daquele em que a compra foi efetuada.
Foram enquadradas ainda como “situações de risco” quanto ao perfil dos beneficiários 49 pessoas com mandato eletivo, 2.181 detentores de cargos públicos e 65 mil sem vínculo com imóvel rural no Sistema Nacional de Cadastro Rural.
A desorganização administrativa era regra no período auditado. Das fiscalizações do PAA/CDS realizadas pela Sufis/Conab, entre 2012 e julho de 2015, apenas 16% das atividades foram consideradas regulares.
Da maneira como as CPRs eram executadas, concluiu o relatório do TCU, “o que se percebe é que parcela significativa da renda fica em poder dos intermediários empreendedores – cooperativas e empresas beneficiadoras – muitas das vezes se utilizando de um frágil vínculo com os agricultores familiares para legitimar suas propostas de participação”.
Deste modo, concluiu a auditoria, “aproveitam-se de recursos públicos para obtenção de vantagem comercial sobre os demais agentes de mercado. Nota-se que o beneficiário fornecedor, que é a quem o Programa tem por objetivo apoiar, recebe apenas trinta por cento do valor do produto entregue à unidade recebedora e todo o restante é dividido entre a cooperativa e a indústria terceirizada”.
Programa voltado ao MST e assemelhados
Para o economista José Pio Martins, que já dirigiu uma cooperativa em Londrina (PR), o volume de recursos do Programa de Aquisição de Alimentos – R$ 500 milhões anunciados pelo ministro Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário – pode ser pouco para combater a fome, mas, em contrapartida, é significativo no benefício da militância.
“É como dizer ‘eu tenho aqui mil pães aqui e vou lançar um programa de distribuição de pães’ para alimentar 54 milhões de pobres do cadastro social. É dar um tiro de canhão para matar um grilo", diz. "A impressão é que o programa pretende ajudar o MST e alguns agricultores familiares. Mesmo a agricultura familiar no Brasil é muito maior do que R$ 500 milhões".
Na avaliação do jurista Romeu Bacellar Filho, que já foi presidente da Associação Iberoamericana de Direito Administrativo, a melhor forma de coibir desvios em programas sociais que envolvem gastos públicos sem licitação é a permanente fiscalização da sociedade civil organizada.
“Falta participação popular. Recrutar gente de entidades de classe, associações de moradores, de donas de casa para fazer parte deste processo. Já que não há licitação, que se faça um edital comunicando que o governo vai fazer compra de alimentos para ser distribuídos, e convidando entidades e pessoas com interesse de participar. Não precisa nem participar, é só fiscalizar”, aponta.
A reportagem contatou o TCU e a Conab para saber se houve efetivamente correções no programa, após as recomendações da auditoria. O TCU informou que o monitoramento das correções sugeridas está em curso e podem ser conferidas parcialmente no acórdão de relação 3293/2020. A Conab ainda não se manifestou. Também foram contatadas a Pastoral da Criança de Salvador e a Mitra Diocesana de Presidente Prudente, onde ocorreram os dois casos mais expressivos de distribuição de alimentos per capta fora dos padrões. Também se aguarda retorno e o espaço segue aberto para manifestações.
No discurso de relançamento do Programa de Aquisição de Alimentos, em Pernambuco, Lula prometeu: “Nós já fizemos isso uma vez, e agora vamos fazer com muito mais competência, com muito mais disposição e muito mais rapidez”.
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