Um dos maiores impulsos à profissionalização da pecuária brasileira nos últimos anos não veio da assistência técnica nem de qualquer programa de governo, mas do fator Boi China, padrão exigido pelo país destino de 60% de nossas exportações de carne bovina.
Para evitar riscos sanitários associados a animais mais velhos, e para garantir uma carne mais macia, os chineses passaram a pagar um preço diferenciado pelo produto que atendesse determinados padrões de qualidade. Na prática, o Boi China acabou melhorando também a qualidade do bife servido à mesa dos brasileiros.
Durante a pandemia de Covid 19, o prêmio do padrão chinês chegou ao dobro do preço do mercado doméstico, atingindo mais de US$ 7 mil a tonelada. Em consequência, houve uma corrida de pecuaristas e frigoríficos para atender a demanda e elevar o faturamento.
O tal do Boi China, basicamente, nada mais é do que a carne de um animal abatido ainda jovem, com no máximo 30 meses, apenas quatro dentes incisivos e sem nenhuma evidência de febre aftosa, tuberculose ou brucelose. Além de ser rastreável, o boi não pode ter consumido nenhum suplemento ou medicamento proibido na China ou no Brasil.
“Essas exigências facilitaram muito o trabalho da extensão rural, que sempre foi em defesa da precocidade, de terminar o bovino mais cedo. Quando eu termino um bovino precocemente, eu emito menos gases de efeito estufa e entro em harmonia com o que o mundo inteiro está pedindo", destaca Alcides Torres, analista de mercado da Scot Consultoria.
Impulso ao confinamento, mas com 80% do tempo ainda no pasto
"Quando eu produzo um bovino com 30 meses para baixo, também produzo uma carne muito mais macia. A exigência chinesa, cujo principal objetivo era não ter no abate alguma vaca doente, serviu realmente para modernizar a produção pecuária brasileira”, diz o analista.
Para atender a demanda asiática, os criadores recorreram ao confinamento na fase final de engorda. De 3,8 milhões de cabeças confinadas em 2016, o número de animais terminados após confinamento chegou a 7 milhões no ano passado. A intensificação é parcial, gera retorno econômico e ambiental, mas não compromete o diferencial "verde" do boi brasileiro, que durante maior parte da vida é alimentado a pasto.
Em pouco tempo, o Boi China se tornou praticamente o “novo normal” da carne brasileira. Com isso, o diferencial de preço foi se tornando cada vez menor, atualmente entre R$ 5 e R$ 7 a arroba.
O fato é que a influência chinesa sobre a pecuária bovina brasileira está longe de acabar ou diminuir. Não só por levarem 70% de toda nossa exportação, mas por que, dentre todas as carnes, a vermelha é a que os asiáticos têm mais dificuldade de produzir.
Em carnes, "China não tem parceiro melhor do que o Brasil"
A empresa Nutripura, de Rondonópolis (MT), comanda a comercialização de 200 mil toneladas de carne bovina por ano, dentro de um pool com mais de 60 produtores. Em visita recente à China, o veterinário Luciano Resende, diretor técnico da companhia, se convenceu de que há ainda muito a conquistar no mercado chinês.
“Eles comem de 5 a 7 kg de carne bovina por pessoa, por ano. Se aumentar apenas um quilo, já será 1,4 bilhão de quilos a mais de carne. Eles se preocupam muito também com a segurança alimentar. E não têm hoje um parceiro melhor no mundo que não seja o Brasil”, sublinha.
Para o empresário, é natural que o Brasil, por ser o maior exportador global, siga fornecendo carne commodity em grandes quantidades. Mas há nichos: “A gente mira onde vai a carne. Conseguimos fazer tanto a carne commodity como a carne gourmet. Quando a gente fala que produz carne sustentável, em que 80% do tempo o animal fica no pasto, para eles é algo quase impossível. E é algo que eles valorizam”.
Cooperação científica Brazil-China Beef Tech Hub
Para estreitar ainda mais a relação com os clientes chineses, a Nutripura assinou neste mês uma parceria técnica com a Universidade de Agricultura da China (CAU), de Pequim. A ideia do núcleo de pesquisa batizado de Brazil-China Beef Tech Hub é reforçar o conhecimento e a confiança mútua, de olho em relações comerciais duradouras.
Se por um lado a China investe pesado para ser cada vez mais autossuficiente na produção de carne de aves e suínos, para o boi há barreiras econômicas quase intransponíveis. O Brasil teria vantagens únicas nesse mercado.
“Lá eles vendem o boi hoje a aproximadamente 90 dólares a arroba, estão num momento histórico péssimo para o produtor. Nós estamos vendendo o nosso próximo de 40 dólares, também estamos numa fase péssima. Mas olha só, é de 40 para 90. É muito difícil eles conseguirem ser competitivos como nós. Justamente por que a gente consegue baixar nosso custo usando o pasto, a integração, e eles não têm essa possibilidade”, afirma Resende.
Pecuária precisa de sistema de prêmios e punições
Não há quase dúvidas, no meio pecuário, de que o fator Boi China ajudou a tornar o boi brasileiro ainda mais verde e sustentável, porque animais jovens e um pasto bem manejado resultam, no fim das contas, em menos emissões de gás metano. Mas ainda há muita tarefa de casa a ser feita, segundo Marcos Jank, coordenador do Centro Insper Agro Global.
“Acho que a gente tem que uniformizar mais a pecuária. Você pega dez agricultores que fazem soja, e eles são mais ou menos parecidos. Quando você pega dez produtores de boi, eles são muito diferentes. A gente precisaria de um sistema que premiasse quem é mais produtivo e quem é mais amigável ao meio ambiente”, sublinha Jank.
Isso não seria uma tarefa do governo, mas da própria iniciativa privada. Criar formas de diferenciar e premiar a carne produzida com menos emissões e mais captura de carbono.
“Em economia, a gente sempre fala do chamado ‘stick and carrot’, que é o chicote e a cenoura. Vejo que o que está acontecendo na área do carbono é muito mais chicote do que cenoura. É preciso um diálogo entre produtores, frigoríficos e varejistas muito mais intenso do que se tem hoje. A impressão é que cada um está tentando resolver o problema à sua maneira, enquanto a coordenação da cadeia ainda é muito precária”, insiste.
Ouvir mais os principais clientes
Nesse esforço para organizar a cadeia produtiva, o principal interlocutor na arena internacional deve ser a China, segundo Jank.
“São eles que estão comprando a nossa carne, não é a Europa. Não adianta ficar ouvindo os europeus como se eles fossem os ditadores das regras do jogo. Não são eles. Precisamos organizar a cadeia muito melhor. Não pode ser só punição, e também nunca será só incentivo. Vai ter que existir as duas coisas. É separar o joio do trigo”, insiste.
Ouvir mais os asiáticos, e não somente os europeus, também é uma posição defendida por Lygia Pimentel, estrategista-chefe da consultoria Agrifatto. “Eles (os europeus) estão tentando enfiar tudo goela abaixo e mandatório. O efeito disso é que, se é obrigatório, você tende a perder o prêmio, já que todo mundo está fazendo a mesma coisa por obrigação. A régua é levantada pelos programas desde que haja financiamento para a mudança. A turbinada que o Boi China deu foi em decorrência da remuneração que se criou em torno dele. Houve um financiamento desse abate mais precoce”, destaca.
Boi China, Boi Japão, Boi Indonésia...
Dar mais atenção ao mercado asiático não significa descuidar de outros nichos importantes, como a própria Europa. Alcides Torres, da Scot Consultoria, lembra que a União Europeia paga até 15 mil dólares por tonelada de cortes de traseiro. A Indonésia, maior país muçulmano do mundo, acaba de abrir o mercado à carne bovina brasileira.
Assim, o país teria condições de oferecer não apenas um Boi China, mas um Boi Europa, Boi Indonésia, Boi Chile, Boi Japão e assim por diante. "Nós somos bons tanto na produção rural como na ciência da alimentação. Nossa carne tem vida de prateleira maior, a gente sabe fazer as coisas. Isso não foi por acaso, levou meio século, não foi loteria, mas resultado de um esforço continuado", destaca Torres.
"O bem-estar animal é intrínseco na produção brasileira, em função do sistema de bovino a pasto. Nos EUA a arroba da carne está beirando 100 dólares, enquanto aqui no Brasil é metade do preço. Nós produzimos 6 milhões de cabeças confinadas e 28 milhões de cabeças em pasto. Não tem quem consiga competir conosco", assegura.
*O jornalista viajou para o 11º Simpósio Nutripura, em Rondonópolis (MT), a convite dos organizadores
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