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Na corrida para redução das emissões de gases de efeito estufa, está surgindo rapidamente um novo mercado global, o do Combustível Sustentável para Aviação (SAF, da sigla em inglês), em que os recursos naturais colocam o Brasil numa situação privilegiada, comparável até mesmo ao papel geopolítico atual da Arábia Saudita em relação ao petróleo.
Em um prazo relativamente curto, já em 2027, os aviões não poderão levantar voo entre vários destinos internacionais se não compensarem emissões, comprando créditos de carbono, ou se não forem abastecidos por uma mistura mínima de SAF. Esse biocombustível pode ser produzido tanto à base de resíduos agrícolas e florestais, óleos vegetais, gorduras animais e etanol, ou, ainda, por meio do hidrogênio verde, a partir de fonte de eletricidade renovável.
Ainda que a estratégia de descarbonizar a aviação inclua a substituição de frotas antigas por aeronaves mais novas e mais eficientes, maior eficiência operacional e novas tecnologias de propulsão, "o SAF é o elemento mais decisivo e imediato para remover o carbono da atmosfera" - destaca Landon Loomis, presidente da Boeing para a América Latina e o Caribe.
O compromisso da fabricante de aviões norte-americana é fornecer aeronaves comerciais capazes de voar com combustível 100% renovável até 2030.
Brasil possui terras e know-how para liderar produção de SAF
O Brasil está entre os poucos países que, estrategicamente, têm as melhores condições para produção de SAF, em suas diversas rotas tecnológicas. “A gente possui terras que outros países não têm e matérias-primas que outros países também não têm. Dá para produzir de maneira inovadora, mas precisamos começar, porque o tempo de maturação de um projeto desses é de dois a três anos. Temos tudo para ser a Opep da produção de combustível sustentável de aviação”, avalia Marcela Braga Anselmi, chefe da Assessoria Internacional e de Meio Ambiente da Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC). Ela aponta que somente os resíduos agrícolas e florestais gerados no país já seriam suficientes para produzir todo o SAF demandado por voos nacionais e internacionais que tocarem solo brasileiro, até 2030.
Grandes multinacionais do setor agro, como a Cargill, acompanham atentas o desdobramento deste mercado. “Isso tem grande chance de ser uma commodity global futura em que o Brasil tem tudo para brilhar. Esse SAF pode ser obtido ou através do etanol normal, de milho ou de cana, ou do biodiesel. Em voos com origem nos locais que são capazes de produzir o SAF, como os EUA e o Brasil, a tendência é o uso de 100% do combustível sustentável”, aponta Paulo Sousa, presidente da Cargill no Brasil.
O executivo cita, como exemplo, o caso hipotético da empresa British Airways, em seu objetivo global de redução de emissões. “O custo para reduzir as emissões num voo Londres-Pequim é muito mais alto do que abastecer 100% de SAF um avião que saia do aeroporto JFK em Nova York e vá para Heathrow, em Londres. É muito mais eficiente. E no Brasil, qualquer um que saia daqui, de Guarulhos para o mundo afora, a tendência em poucos anos para tornar mais barato a redução das emissões das companhias aéreas é sair 100% com SAF”, disse Sousa no evento AgroVision, realizado em São Paulo no início deste mês.
Demanda por bioquerosene vai explodir em poucos anos
Uma vantagem importante dos combustíveis sustentáveis de aviação é que eles atendem o conceito drop-in, ou seja, podem ser usados em quaisquer motores e turbinas existentes. "O uso de aeronaves elétricas ou diretamente a hidrogênio exigiria a troca da frota existente, o que seria caro e demorado. Para produzir combustíveis avançados para aviação precisamos de uma matéria-prima de origem biológica – como óleos vegetais, gorduras animais ou etanol – ou precisamos de hidrogênio verde, produzido com eletricidade renovável. Em ambos os casos, o Brasil tem grande competitividade. O grande potencial do Brasil vem justamente dessa disponibilidade de matéria-prima competitiva, qualquer que seja ela”, aponta João Guillaumon, sócio da consultoria McKinsey.
Os números ilustram a oportunidade para o Brasil. A substituição da matriz fóssil tem caráter mandatório pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), devendo representar pelo menos 65% do consumo global das aeronaves até 2050, o que permitirá ao setor atingir a meta de carbono zero. Atualmente, no entanto, a produção de SAF atinge apenas 3,5% do consumo dos aviões. São 14 bilhões de litros num universo de 390 bilhões. Em 2050, quando o SAF se tornar o combustível-padrão, serão necessários 450 bilhões de litros.
Assim, a demanda está dada. O desafio é conseguir elevar a produção de maneira exponencial, ao mesmo tempo em que se buscar baixar os custos, que são até 5 vezes mais altos do que os do querosene de aviação. Instalar uma usina pode demorar de três a cinco anos. "Na hora em que você ganha escala e melhora a tecnologia de produção, a tendência é que os preços vão caindo. Daí a importância da pesquisa e do desenvolvimento, de os principais stake-holders estarem juntos, as associações de empresas, universidades e centros de pesquisas. O modelo do etanol é exemplo para ser replicado”, diz Carolina Grassi, gerente de políticas públicas e inovações da Roundtable on Sustainable Biofuels (RSB), certificadora internacional de biocombustíveis que reúne mais de 100 organizações dos setores público e privado e que orienta a conformidade para as indústrias.
Marco regulatório do SAF aguarda novo governo e Congresso
Estabelecer uma cadeia industrial de SAF depende, também, da regulamentação e de políticas públicas de cada país. Na Europa, discute-se obrigar as companhias a usar pelo menos 2% de mistura SAF a partir de 2025, enquanto, nos EUA, desde o ano passado existe um programa de incentivos para atingir produção de 3 bilhões de galões de SAF por ano até 2030. A meta é abastecer 100% da aviação americana até 2050, o que demandaria 35 bilhões de galões anuais.
No Brasil, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) instituiu em 2021 o Programa Combustível do Futuro, para incrementar o uso de combustíveis sustentáveis e de baixa intensidade de carbono. Desde então, o Ministério das Minas e Energia promoveu uma série de reuniões de trabalho com os principais stake-holders do mercado da aviação para subsidiar um projeto de lei que tratará, dentre outras diretrizes, da criação de um Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (PROBIOQAV). A proposta é começar com redução mínima obrigatória das emissões de dióxido de carbono em 1% por parte dos operadores aéreos, a partir de janeiro de 2027, percentual que poderá ser elevado pelo CNPE para até 10% nos dez anos seguintes.
O esboço do projeto de lei está pronto e deve ser discutido com o Congresso no início da próxima legislatura. Em vez de estabelecer uma mistura mínima de SAF ao querosene de aviação, como prevê outro projeto, o PL 1873/2021, do deputado Ricardo Barros, o executivo optou por metas de redução de emissões pelo uso de SAF. Na prática, isso evitaria que todos os aeroportos fossem obrigados a instalar pontos de mistura física do combustível. Em vez disso, haveria locais de abastecimento estratégicos, com melhor custo-benefício.
Fase mandatória para uso de SAF começa em 2027
O ano de 2027 será um divisor de águas para o combustível sustentável de aviação. Antes dessa data, os países cumprem metas voluntárias dentro do Sistema de Compensação e Redução de Carbono para a Aviação Internacional (CORSIA). Depois, começa a fase mandatória. Todos os países com participação acima de 0,5% nas rotas internacionais deverão ter SAF para abastecer seus aviões. Na prática, a rota São Paulo-Miami, por exemplo, será obrigada a usar combustível renovável, porque os dois pontos interligados se enquadram na regra dos 0,5%. Isso não se aplicaria, num primeiro momento, à rota São Paulo-Buenos Aires, porque, diferente do Brasil, a Argentina não tem participação acima de 0,5% nos voos internacionais.
Em outubro, associações de biocombustíveis da América do Sul assinaram um manifesto pedindo que os governos de Argentina, Brasil, Colômbia, Paraguai e Uruguai promovam, de forma abrangente, uma estratégia de transição energética pelo desenvolvimento do setor, tanto para o transporte veicular, quanto para o aéreo, fluvial e marítimo. O manifesto sublinha a importância de marcos regulatórios que garantam os investimentos em biocombustíveis e em pesquisas científicas e tecnológicas, "de forma que os países sul-americanos aproveitem as capacidades de suas cadeias agrícola e pecuária, tanto para cumprir os compromissos de descarbonização assumidos no Acordo de Paris, como para liderarem globalmente a produção de energia limpa e renovável".
Grupo brasileiro vai produzir SAF no Paraguai
Enquanto a regulamentação não sai, o empresário brasileiro Erasmo Battistella, do ECB Group, investe no Paraguai. O complexo Omega Green, apoiado pelo governo paraguaio num regime de Zona Franca, receberá investimento de R$ 5 bilhões, e é a primeira planta de biocombustíveis avançados do hemisfério sul. Vai produzir o chamado "diesel verde" HVO, SAF a partir de óleos vegetais e nafta verde. Cerca de 90% da capacidade inicial, de 20 mil barris/dia de biocombustível, já está contratada pela Shell e pela British Petroleum (BP). Os principais clientes estão nos EUA, Canadá e na União Europeia. O mesmo grupo ECB investe ainda R$ 556 milhões numa fábrica de etanol de trigo em Passo Fundo (RS).
Em outra frente, a Raízen, maior produtora de etanol de cana-de-açúcar do mundo (joint-venture entre a Cosan e a Shell), firmou acordo com a Embraer para desenvolver a cadeia de produção de SAF. A meta da fabricante de aviões é chegar a 2030 com toda sua linha de produção apta a operar 100% com combustível sustentável.
Etanol é o biocombustível com menor pegada de carbono no mundo
O pioneirismo do Brasil no uso de motores movidos a etanol, que remonta à década de 70, será um know-how importante nas parcerias com empresas aéreas. Mateus Lopes, diretor de Transição Energética da Raízen, destaca ainda a sustentabilidade e a possibilidade de o etanol ser produzido em grande volume. "Em geral, o etanol é o biocombustível com menor pegada de carbono do mundo e o Brasil é o segundo maior produtor global deste produto, atrás apenas dos Estados Unidos. É uma das fontes mais eficientes na conversão de energia solar em biomassa, a base do nosso negócio e um dos recursos mais importantes do Brasil. Apesar de não descartar outras possibilidades e tecnologias, hoje nós vemos o etanol como a nossa maior aposta para a transição de baixo carbono e como a melhor fonte para alcançar a nossa meta de redefinir o futuro da energia", sublinha Lopes.
No espaço aéreo brasileiro, a Gol informou que já tem em andamento um processo de troca de aeronaves, mais eficientes e com menor consumo de combustível, como seria o caso do Boeing 737 MAX8. A maior parcela da descarbonização, contudo, segundo nota da empresa enviada à Gazeta, “virá certamente da utilização do SAF, mas para que isto aconteça, é necessário o estabelecimento de políticas públicas que permitam a ampliação do mercado, hoje praticamente inexistente". "Este é um caminho sem volta, mas que certamente ensejará ações de toda a sociedade para que se dê com o menor impacto possível”, diz a Gol.
A demanda pelo SAF já está criada e só tende a crescer. A Latam informou ter assumido compromisso de utilizar até 5% de SAF em suas operações até 2030, o que equivale a 300 milhões de litros, dando prioridade à produção na América do Sul. ”É importante ressaltar que, em busca da descarbonização do setor, o custo do voo não pode aumentar a ponto de inibir o acesso da população ao transporte aéreo. Diante disso, estamos participando ativamente das discussões que envolvem a criação de uma política pública no País em relação aos combustíveis sustentáveis de aviação para que haja as condições habilitantes para o seu desenvolvimento”, diz nota da Latam.