O agro brasileiro precisa urgentemente abraçar uma campanha de comunicação. Simples e direta. O tema: “Somos o agro mais sustentável do mundo”. Ponto. E acabou.
Calma, a reportagem não acabou ainda. A declaração acima, e sugestão de campanha contundente, é de Nizan Guanaes, um dos maiores nomes da publicidade do país, que já foi eleito um dos cinco brasileiros mais influentes do mundo pelo jornal britânico Financial Times e que, além de empresário, atua como embaixador da Boa Vontade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (UNESCO). Nesta semana Guanaes foi um dos palestrantes convidados do AgroVision, primeiro grande evento do banco Itaú BBA voltado ao agronegócio, que reuniu o empresariado e lideranças do setor em São Paulo.
Dentre as peças dessa campanha de marketing internacional, diz Guanaes (seria em tom de brincadeira?), por que não mudar a cor do escrete canarinho. “Vamos mudar a camisa da seleção brasileira de amarelo para verde. Aonde a seleção brasileira for, nós vamos, seja em Doha, no Catar, onde for. Somos players e, no mundo ESG, a bola caiu no pé do agro brasileiro. Então, o que temos que fazer agora é separar o agronegócio do ogronegócio”, enfatiza o publicitário.
Agro precisa enfrentar guerra de narrativas
O embaralhamento dos 99% que fazem a coisa certa com 1% de “pebas”, segundo Guanaes, apenas alimenta a incompreensão da realidade brasileira e a retaliação de outros países. Para o publicitário, o problema do agro é se comportar como inocente, que de fato é. “Um criminalista amigo meu disse que odeia inocente, porque o culpado faz tudinho o que ele pede. O inocente tenta se defender do jeito dele, é um inferno. E o agro é inocente. E como faz tudo direito, não se preocupa em se defender. Comunicação não é o que a gente diz, é o que os outros entendem. A agricultura brasileira precisa enfrentar de vez a guerra de narrativas”, enfatiza.
A provocação de Guanaes tem como pano de fundo um discurso, tanto doméstico como internacional, que projeta uma imagem ruim do agronegócio do país. Lá fora o Brasil é visto como vilão, corrobora o professor do Insper, ex-presidente da União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Única) e ex-diretor da BRF na Ásia, Marcos Jank. O principal motivo seria o aumento do desmatamento, de cerca de 300 mil hectares por ano para mais de 1 milhão. “Já reduzimos esse desmatamento em 80% em uma década. Podemos fazer isso novamente. Mas não basta ter polícia e exército punindo, temos que ir às causas. É preciso implementar o Código Florestal e fazer a regularização fundiária. Se não implantar, não vai dar certo”, aponta Jank.
E o que a regularização fundiária tem a ver com isso? Nas regiões Norte e Nordeste do país há milhares de pessoas que estão há décadas em cima de imóveis não titulados. Apenas com documentos de posse. Gente que, no caso da Amazônia, foi atraída pelo governo para desenvolver a região nos anos 70 e 80. Apenas nos escaninhos do Incra estariam aguardando avaliação mais de 100 mil processos de regularização fundiária no bioma amazônico em que, inclusive, já foi feito georreferenciamento.
Não titulação das terras "é mãe da irregularidade ambiental"
Cria-se uma zona cinzenta, que confunde o legal e o ilegal, o proprietário legítimo com o grileiro de terras. “A mãe da irregularidade ambiental é a falta de regularidade fundiária. Os proprietários rurais não tem escritura e não conseguem levar aos cartórios de registros de imóveis as suas posses porque as demarcações das datas, que são as áreas administrativas, não foram concluídas pelo Judiciário, ou sequer foram feitas no passado pelos institutos de terra de cada estado. E como se nós estivéssemos nas sesmarias ainda”, relata André Pessoa, da Agroconsult. Sem título de propriedade, os agricultores não conseguem acessos a linhas de crédito, financiamentos ou requisição de aposentadoria.
O atual governo fez uma ofensiva na titulação de terras dos assentamentos da reforma agrária, entregando em 3,5 anos mais do que o que foi entregue em 14 anos de governos do PT. A titulação das terras nos assentamentos, como mostrou reportagem desta Gazeta do Povo, nunca interessou à esquerda e aos movimentos sociais, porque funciona, na prática, como uma alforria aos assentados. No entanto, permanece o problema histórico da titulação das terras no Norte e Nordeste do país.
Enquanto o Brasil não encaminha a resolução de seus problemas fundiários e ambientais – há projetos de regularização fundiária sendo apreciados pelo Congresso – o cerco continua apertando. Nesta semana, a União Europeia chegou a um consenso para aprovar uma lei que impede a compra de produtos de áreas desmatadas ou degradadas depois de dezembro de 2020. A iniciativa pode atingir vários produtos de exportação, como soja, carne e café.
Alguém pode contestar, alegando que os europeus já não são tão relevantes no mercado de exportações brasileiro, representando apenas 8% do destino dos embarques de commodities agrícolas, contra 72%, por exemplo, que vão para a China. As matrizes das principais empresas globais de alimentos, como Unilever e Nestlé, contudo, estão no velho continente. E elas pressionam as grandes tradings, como ADM, Bunge e Cargill.
“Essas empresas, todos grandes clientes nossos, têm um papel conosco, assim como nós temos com o produtor rural. Eles estão tendo a pressão do consumidor deles na gôndola do supermercado, e vêm para nós. Cargill, olha, eu quero vender o sabonete Dove aqui na Alemanha e o meu consumidor alemão quer ter certeza que o óleo de palma que vou colocar no sabonete não está queimando gorila na Indonésia”, exemplifica Paulo Sousa, presidente da Cargill no Brasil.
“A União Europeia é que dita as tendências para o mundo. Até cinco anos atrás os Estados Unidos não davam a mínima para algumas dessas questões relativas à agricultura sustentável, ou às práticas de emissões mais baixas de carbono. Hoje todo mundo já sabe as oportunidades que estão surgindo nos Estados Unidos em relação à agricultura regenerativa, porque o consumidor americano também está pedindo". Sousa aponta que, na Europa, os governos fazem um "esforço brutal" e gastam bilhões do orçamento, arriscando seu crescimento econômico, colocando datas-limite, depois das quais motores a combustão não poderão mais ser fabricados. "São coisas graves, que mostram o tamanho do compromisso para redução de emissão de carbono. Daí você liga a televisão na TV5 na França à noite e vai ver lá fogo na floresta amazônica, entrevista de ribeirinho falando que está perdendo terra para grileiro. Você acha que vai levar isso numa boa? Não vai”, afirma o executivo da Cargill.
Clientes lá fora desconhecem fundamentos do agro brasileiro
Cientificamente, não há como contestar que o Brasil tem as matrizes mais sustentáveis do mundo, que preserva 66% de seu território com vegetação nativa, pratica uma agricultura tropical de duas a três safras por ano e gera 57% de sua energia por fontes renováveis. Muitos clientes lá fora, no entanto, não sabem disso. Aí estaria a razão de o desmatamento da Amazônia interferir até no comércio do suco de laranja de São Paulo, que fica a dois mil quilômetros de distância.
“Temos um potencial grande, mas precisamos mudar essa imagem muito ruim. Precisamos conversar com a comunidade europeia, dar urgência a isso. O desmatamento, no fundo, é o poder público ausente no combate à ilegalidade”, sublinha Sousa, da Cargill, acrescentando que a medida dos europeus é “um aperitivo do que virá pela frente”, que, acredita, ainda poderá ser revertida.
A preocupação do executivo de uma das maiores tradings de grãos que operam no país está um pouco à frente, num futuro breve. No começo esses embargos envolvem apenas áreas de floresta, mas, depois de um ano, vão atingir também o Cerrado. “Como será o grau de rastreamento que vão exigir? Carga a carga? É difícil. No bioma amazônico, onde já temos a moratória da soja, eu não estou preocupado. Mas no Cerrado é bem mais complicado. Tem a questão da originação secundária. Quando compramos direto do produtor rural, que entrega em nosso armazém, é mais fácil. Mas quando compramos de uma cooperativa, um cerealista que está agrupando produtores, é um desafio gigante. Não sabemos como fazer ainda”, confessa Sousa.
Brasil como solução global alimentar, energética e climática
Apesar do contexto de endurecimento no comércio internacional por questões ambientais – reportagem desta Gazeta do Povo já mostrou que as próprias tradings pretendem implantar restrições mais severas do que a lei nacional – a percepção dos analistas do agronegócio brasileiro é de que ainda é possível mudar o jogo. Melhorando sua comunicação e atuando para coibir o desmatamento ilegal, que, como diz o nome, é caso de polícia. “Estamos colocados diante de uma oportunidade extraordinária, talvez a maior oportunidade que a história tenha colocado em nosso colo. Somos um país do ocidente pendurado na Ásia. Isso cria para nós uma curiosa situação: podemos ser malvistos ou amados, por um ou por outro. Mas podemos ser a solução de segurança alimentar, energética e climática para o mundo. A oportunidade é oferecida, mas não é dada. Temos que conquistar”, destaca Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura e coordenador do Centro de Agronegócio da FGV.
Para aproveitar o que seria a oportunidade única de uma geração, será preciso sair o quanto antes deste paradoxo, de ser potência do agro e, ao mesmo tempo, “ser vilanizado pela Amazônia”. É a avaliação que faz o sócio-diretor do fundo de investimento GK Ventures, Eduardo Mufarej. Ele acredita que o país poderá ser o primeiro do mundo a conquistar o status de carbono neutro, devido a suas condições únicas, como áreas florestadas, fontes energéticas renováveis, Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF) e plantio direto.
“Isso nenhuma outra nação consegue. Falam da Austrália, mas, só para contextualizar, ela é hoje o maior emissor per capita do mundo. Esse lugar de protagonismo é essencial. Mas se a Amazônia não for resolvida, ela vai nos tragar. Esperar que o governo vá fazer isso sozinho é um equívoco. O setor privado, com sua relevância, tem que ter protagonismo e mão firme, porque se não tiver contundência, vamos perder a oportunidade e pagar um preço caro”, avalia Mufarej.
Mercado da Indonésia poderia estar aberto há mais tempo
Mesmo que ataque seus problemas ambientais, o Brasil não conquistará mercados como num passe de mágica. João Sampaio, diretor de Relações Institucionais do frigorífico Minerva Foods, lembra que a empresa levou anos tentando abrir o mercado gigante da Indonésia para a carne brasileira, sem ajuda da burocracia estatal. Só para responder um questionário do governo indonésio, o governo levou seis meses. No Uruguai, a mesma Minerva Foods conseguiu abrir o mercado do Japão para miúdos após o governo uruguaio responder em apenas oito dias um questionário japonês. “Quando a Tereza Cristina assumiu (o ministério da Agricultura), ela foi lá e abrimos o mercado da Indonésia em um dia. É a forma de agir que precisa mudar”, diz Sampaio, que aponta ainda a falta de “pegada comercial” dos embaixadores brasileiros.
Se as restrições e embargos fazem parte do jogo internacional, é preciso reagir com estratégia e inteligência. E aí retorna-se à provocação do publicitário Nizan Guanaes, que abriu o texto, propondo uma atuação mais agressiva na defesa dos fundamentos do agro brasileiro. Sem esquecer que haverá oposição.
País paga o preço de ser líder e de incomodar
“Você não pode querer ser líder e ser amado. Isso não existe. Você acha que a Austrália vai dizer: olha eu quero muito agradecer que você está entrando em nosso mercado. Ou os produtores da França vão dizer: olha, temos uma relação afetiva com vocês, que estão inundando de produtos a Europa. Claro que não. Por que alguns setores da economia brasileira não sofrem esse problema? Por que eles não são líderes”, destaca Guanaes. Essa defesa do agro não deve ser ação deste ou daquele governo, conforme o viés ideológico. “É um problema setorial contínuo, de décadas. Não é um problema de governo, é problema de estado. É o agro mais sustentável do mundo e tem que ficar todo se explicando? Eu digo que o agro brasileiro é um George Clooney com fama de feio. Temos que resolver isso”.
A propósito, em setembro último George Clooney foi apontado por Brad Pitt, respondendo a uma pergunta da revista Vogue, como o homem mais bonito do mundo. Sem modéstia, como o agro brasileiro deveria se comportar, Clooney comentou: “Vamos ser honestos, ele está certo”. A fama de feio não condiz com o agro brasileiro. E, como disse Guanaes, é isso. Ponto. Acabou.
*O jornalista viajou a São Paulo para o AgroVision a convite da organização do evento.
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