Há pouco mais de um ano publiquei um artigo sobre um tema que está nos holofotes novamente: o herbicida glifosato. O enfoque de meu artigo original era a publicação pela agência de notícias Reuters de uma matéria intitulada “A batalha do glifosato”.
Em função da tentativa de proibição do registro do glifosato no Brasil e da recente decisão de um júri do estado norte-americano da Califórnia, que recomendou que a empresa Monsanto seja forçada a pagar US $ 289 milhões a um homem diagnosticado com linfoma não-Hodgkin, acho necessário e pertinente voltar a discutir o assunto e atualizá-lo.
Em seu excelente artigo de 14/06/2017, a respeitada jornalista Kate Kelland relata a investigação realizada pela Reuters sobre uma reunião da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), que em março de 2015 juntou 17 especialistas para reavaliar a segurança do herbicida glifosato e concluiu após uma semana de discussões que o mesmo seria “provavelmente carcinogênico para humanos”.
O artigo publicado pela Reuters está centrado na figura Aaron Blair, epidemiologista do US National Cancer Institute (NCI), que presidiu o painel realizado pela IARC. Segundo o artigo, durante o painel da IARC, Blair comprovadamente não relatou dados de um grande estudo ao qual teve acesso e que estabelecia firmemente que não há conexão entre glifosato e câncer.
O estudo em questão é um dos maiores e mais respeitados trabalhos sobre os efeitos dos praguicidas na vida real, o Agricultural Health Study (AHS), elaborado por cientistas do US National Cancer Institute (NCI), incluindo o próprio Aaron Blair!
AHS é um estudo observacional de coorte prospectivo que tenta responder à pergunta “quais doenças podem ser causadas por determinados fatores de risco?”, no caso, a exposição a pesticidas. Ao acompanhar 89 mil trabalhadores rurais desde 1993, o estudo monitora os participantes por um período de tempo (às vezes toda a sua vida) para observar que tipos de problemas de saúde desenvolvem-se. Desta forma, é provável que esse grupo caracterize a exposição a pesticidas com mais precisão em comparação com os participantes de outros estudos observacionais de controle de caso.
E por que então o AHS não foi considerado pelo painel IARC? Porque de acordo com as regras da agência, apenas trabalhos publicados em revistas científicas podem ser considerados. Pois é aí que as coisas ficam estranhas, especialmente porque aparentemente a não publicação de Blair de seu próprio trabalho pode ter sido intencional.
Em 2013 Aaron Blair e outros pesquisadores começaram a preparar papers sobre a relação do linfoma não-Hodgkin com glifosato e outros praguicidas, documentos estes nunca publicados. Em 2014 uma revisão dos papers foi publicada, porem ela não incluía os dados sobre o glifosato, algo incomum. Ainda em 2014 um dos coautores do estudo, Michael Alavanja, enviou um e-mail a outro pesquisador da AHS, com cópia para Blair, frisando que “seria irresponsável não publicar os resultados dos estudos da AHS que estavam relacionados aos linfomas não-Hodgkin a tempo de serem levados em consideração pela reavaliação da IARC”.
Questionado pela reportagem da Reuters, Blair reafirmou que os drafts originais nunca foram publicados pois “continham demasiada informação para caber em um paper”. Por sua vez, o NCI também justificou a não publicação por “limitações de espaço”.
No início deste ano, os dados do AHS foram analisados por Andreotti et al. (2018), para verificar possíveis associações entre o glifosato e o câncer, incluindo o linfoma não-Hodgkin. Nessa análise, seria de se esperar que, se houvesse um nexo causal entre o glifosato e o linfoma não-Hodgkin, o aumento da exposição ao herbicida aumentaria também a probabilidade de câncer. Mas essa tendência não foi observada. Este resultado é semelhante a análises anteriores dos dados de AHS, que também não mostraram associação entre o linfoma de glifosato e o não-Hodgkin.
A Reuters, por sua vez, também contatou dois especialistas independentes para dar sua opinião sobre o estudo da AHS. David Spiegelhalter, professor de Public Understanding of Risk da Universidade de Cambridge e Bob Tarone, um estatístico aposentado que trabalhou 28 anos no NCI. Os dois afirmaram que os drafts dos estudos da AHS escritos por Blair e outros cientistas não possuem evidências da relação de qualquer um dos herbicidas analisados com os linfomas não-Hodgkin. Spiegehalter ressalta ainda que o estudo é forte do ponto de vista estatístico e mostra a relação entre outros praguicidas e a doença. Desta forma se esta relação se repetisse com o glifosato também deveria ter aparecido.
Embora o propósito declarado da reunião da IARC tenha sido determinar o potencial carcinogênico do glifosato, a agência pode ter excluído seletivamente dados, de acordo com relatório investigativo da Reuters, o que resultou em um posicionamento final diferente daquele das principais agências reguladoras do mundo – EPA, EFSA, as agências canadense, japonesa e neozelandesa.
O AHS é atualmente o maior conjunto de dados disponíveis sobre os possíveis efeitos dos pesticidas na saúde das pessoas a eles expostas. Desta forma, com base nas evidências científicas disponíveis hoje, a decisão da IARC de 2015 de considerá-lo carcinogênico e a condenação recente da Monsanto pelo júri californiano, continuam me parecendo dissonantes da verdade científica.
* Flavio A. D. Zambrone, MD, PhD, médico toxicologista, ex-professor de Toxicologia na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e presidente do Instituto Brasileiro de Toxicologia (IBTox)
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