Diz a sabedoria popular que leva-se anos para construir a confiança, poucos segundos para quebrá-la, e uma eternidade para reconquistá-la. No comércio internacional, a confiança é tudo, principalmente quando se trata de produtos alimentícios.
Um dos maiores desafios de países populosos, que dependem da importação de alimentos, é garantir a segurança alimentar, tanto no suprimento quanto na qualidade e na sanidade dos produtos agropecuários. Qualquer problema com o fornecimento ou a sanidade dos alimentos pode ter graves consequências, causando descontentamento e tensões sociais.
Na China, na Rússia e na Índia, por exemplo, a segurança alimentar é prioridade para as políticas governamentais. Esses países contam com sofisticados sistemas de regulamentação sanitária e fitossanitária e de inspeção de importações, para assegurar que o alimento que chega às suas populações atenda padrões de qualidade exigidos.
Conforme previsto no Acordo sobre Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias assinado pelos países membros da Organização Mundial de Comércio, cada nação tem plena liberdade de estabelecer seus requisitos, desde que estes sejam embasados em critérios técnico-científicos e não configurem subterfúgio para proteger os produtores locais. Dada essa liberdade, é evidente que existem diferenças, por vezes substanciais, entre os requisitos impostos pelos diversos países.
Para conseguir exportar para vários países, o Brasil negocia protocolos e certificados sanitários e fitossanitários com cada um deles, de forma a atender os requisitos específicos impostos pelos importadores. Produtos agropecuários só podem ingressar um país estrangeiro se acompanhados de certificados sanitários (no caso de produtos de origem animal), fitossanitários (plantas, vegetais etc.) ou zoossanitários (animais vivos), que atestam o cumprimento dos requisitos daquele país.
A negociação desses protocolos e certificados, que abrem a porta para as exportações de produtos agropecuários, é feita bilateralmente, e fica a cargo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
O sucesso das negociações sanitárias e fitossanitárias depende de três fatores fundamentais: da continuidade (tanto nos relacionamentos quanto em relação aos compromissos assumidos), da confiança (quanto às garantias de cumprimento de requisitos sanitários e fitossanitários do país importador) e da reciprocidade (uma vez que o comércio exterior é uma via de mão dupla).
Uma questão de confiança
A continuidade do cumprimento dos compromissos assumidos e a confiança estão intimamente relacionadas. Se o Brasil acordou com um país que não exportará produtos contendo um defensivo específico, por exemplo, é essencial que se fiscalize os produtores locais, para que nenhum deles adicione o defensivo em questão. Essa fiscalização não cabe somente às autoridades – os próprios produtores, diretamente ou por meio de suas associações de classe, deveriam exercer uma fiscalização suplementar, porque se apenas um exportador descumpre o requisito, quebra-se a confiança entre os dois países e todas as exportações brasileiras ao país destinatário podem acabar suspensas.
O custo do descumprimento de protocolos sanitários e fitossanitários é altíssimo. No ano passado, alguns países restringiram as importações de produtos brasileiros de origem animal, alegando preocupações sanitárias. Dentre esses países está a Rússia, um dos maiores importadores mundiais de alimentos, que suspendeu as compras de carnes bovina e suína brasileiras a partir do dia 1º de dezembro de 2017.
As autoridades russas alegaram a presença, nas carnes brasileiras, da ractopamina, um promotor de crescimento. Essa substância é proibida na Rússia, na União Europeia e em alguns outros países. A retomada das exportações brasileiras para a Rússia vai necessariamente envolver os três eixos mencionadas acima: o reestabelecimento da confiança, a comprovação de que daremos continuidade ao que foi acordado, e a reciprocidade.
A partir de agosto de 2014, quando a Rússia impôs sanções contra o Ocidente, o Brasil ganhou um espaço muito importante no fornecimento de alimentos, principalmente de carnes, para o mercado russo. Desde aquele momento, a Rússia proíbe importações de carnes, peixes, frutas, lácteos e de alguns outros produtos alimentícios provenientes dos EUA, União Europeia, Austrália e Noruega em resposta às sanções desses países contra a anexação da Crimeia e ao conflito no Leste da Ucrânia.
A confiança estabelecida a partir das negociações entre os ministérios da agricultura dos dois países em 2015 era tão grande que a Rússia adotou em relação ao Brasil o mecanismo de pre-listing (lista pré-autorizada de estabelecimentos exportadores) para todos os produtos de origem animal. Assim, a Rússia autorizava os estabelecimentos brasileiros sem uma inspeção prévia, conforme a lista fornecida pelo Brasil. Entretanto, pela falta de continuidade nas tratativas, a confiança foi rompida. Em 2016, a Rússia cancelou o pre-listing e, no final de 2017, suspendeu as importações.
Principal fornecedor
Conforme dados da Associação Nacional de Carnes da Rússia, no período de janeiro a setembro de 2017 o Brasil chegou a ser responsável por mais de 90% das importações russas de carne suína e por 60-65% das importações de carne bovina de fora da União Econômica Euroasiática.
A Rússia também representou uma parcela importante das exportações de carnes brasileiras: no mesmo período de 9 primeiros meses de 2017, aquele país foi responsável por mais de 45% das receitas provenientes das vendas externas de carne suína e por quase 9% da carne bovina. Do início de 2017 até o momento da proibição, o Brasil vendeu para a Rússia US$ 1,14 bilhão em carne bovina e suína. Essa receita vai fazer falta em 2018.
Apesar da crescente produção local de carnes, a Rússia vai continuar dependendo das importações. As sanções russas que proibiram carnes europeias, norte-americanas e australianas foram prorrogadas até o final de 2018. O Brasil tem tudo para retomar as exportações de carnes para a Rússia: reestabelecer a confiança, assegurando o cumprimento dos requisitos sanitários russos e dando continuidade aos acordos feitos. Em tratativas anteriores, por exemplo, o Brasil comprometeu-se a agilizar a liberação das importações de trigo e de pescados russos, dando mais equilíbrio ao comércio bilateral, o que até hoje foi atendido só em parte.
A intensificação das negociações sanitárias e fitossanitárias com mercados importadores é essencial para assegurar a ampliação das exportações brasileiras de produtos agropecuários. A venda no mercado internacional remunera bem e amplia consideravelmente o número de consumidores. Mesmo contando com um mercado interno de 200 milhões de pessoas, através do comércio internacional podemos acessar 7,6 bilhões de consumidores.
O Brasil tem todo o potencial para aumentar a sua presença internacional, principalmente em produtos do agronegócio. As carnes têm destaque especial nesse contexto, já que o consumo de proteínas ao redor do mundo está crescendo.
Conforme os dados do Banco Mundial, em 1960, a participação das exportações no Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil era de 7,1%. Em 2015, essa participação aumentou para 12,5%. Mesmo assim, é um número muito modesto, considerando que a média mundial no mesmo período chegou a quase 30%.
Para garantir o crescimento sustentável do PIB brasileiro, é muito importante focar na expansão das vendas externas. As excelentes safras de grãos dos últimos anos contribuam para a consolidação da produção agropecuária brasileira. Retomar a confiança e reconstruir o relacionamento duradouro com os principais mercados importadores será uma das tarefas mais importantes em 2018. Ganhar a Copa da Rússia seria ótimo, mas retomar o mercado russo de carnes é fundamental!
(*) Tatiana Palermo foi Secretária de Relações Internacionais do Agronegócio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2015-2016).
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