Na corrida global para neutralizar as emissões de carbono e substituir o petróleo, o hidrogênio desponta como um dos combustíveis do futuro, por ser o elemento que compõe cerca de 75% da massa do universo, capaz de armazenar grandes quantidades de energia.
Ele já é utilizado para impulsionar foguetes e gerar calor nas indústrias pesadas, mas ainda tem um “calcanhar de Aquiles” por depender do gás natural, emissor de CO2, no processo de reforma a vapor para desprender seus átomos das moléculas na natureza.
Para transformar o hidrogênio “cinza”, que deixa pegadas de carbono, em hidrogênio “verde”, carbono neutro, a rota de produção mais divulgada na Europa envolve a eletrólise da água, que separa o hidrogênio gasoso (H2) do oxigênio (O) usando energia de usinas solares e eólicas. Apesar de bem mais caro do que o processo convencional, de reforma do petróleo, é nesse caminho que multinacionais têm apostado bilhões de dólares, inclusive petrolíferas como a britânica BP e a francesa TotalEnergies, que têm metas de descarbonização de 50% e 40%, respectivamente, até 2030.
Nordeste concentra investimentos no hidrogênio verde
No Brasil, a maior movimentação em torno do novo combustível ocorre no Nordeste, devido ao potencial solar e eólico e à proximidade da Europa e Estados Unidos, que favorece a exportação. A primeira usina de hidrogênio verde do país está sendo construída no Polo Industrial de Camaçari (BA) pela Unigel, fabricante de fertilizantes nitrogenados, com investimento inicial de R$ 650 milhões. A eletrólise da água será feita com tecnologia do grupo alemão thyssenkrupp nucera.
Mais acima no mapa, o complexo portuário do Pecém, no Ceará, decidiu se tornar um hub internacional de H2. O porto já assinou 20 memorandos de entendimento com multinacionais para instalação de projetos de hidrogênio verde na área da Zona de Processamento de Exportação (ZPE). A australiana Fortescue Metals Group, do setor de minério de ferro, assinou em junho pré-contrato para investir US$ 6 bilhões numa usina que vai gerar 3.300 empregos.
Pecém tem a seu favor uma parceria estratégica com o Porto de Roterdã, principal hub de hidrogênio na Europa, que também é acionista do terminal cearense, ao lado do governo estadual. Os investidores miram ainda em oportunidades de negócios com China, Japão e Coreia do Sul, que já definiram planos de descarbonização da matriz energética e uso do hidrogênio verde.
Produção do hidrogênio verde ainda é cara
Assim, a rota de produção do hidrogênio verde combinando as energias do sol, do vento e da água atrai grandes apostas. Um estudo da consultoria Mckinsey aponta que no Brasil o hidrogênio verde demandará US$ 200 bilhões em investimentos, incluindo 180 GW de capacidade de geração de eletricidade renovável adicional— o que é mais do que a capacidade de geração instalada no país atualmente. Em 2040, o mercado doméstico anual deverá ficar entre US$ 10-12 bilhões, com destaque para o transporte de carga por caminhões, a siderurgia e outros usos energéticos industriais. Outros US$ 4-6 bilhões devem vir das exportações de derivados de hidrogênio verde para a Europa e EUA.
Pesquisadores do setor sucroalcooleiro não discordam do potencial do mercado do hidrogênio verde, mas levantam questionamentos sobre os caminhos tecnológicos para se obter este elemento, que não existe em estado puro na natureza, mas está sempre associado a outras moléculas. E uma das melhores moléculas portadoras de hidrogênio já é amplamente conhecida dos brasileiros: o etanol.
“Estamos trazendo pra gente problemas que não são nossos. Resolveram chamar a eletrólise da água erroneamente de hidrogênio verde, por utilizar energia eólica e solar. Só que é um processo caríssimo, sete a dez vezes mais caro do que o hidrogênio que vem do petróleo”, pondera Gonçalo Pereira, chefe do laboratório de Genômica e Bioenergia da Unicamp. Ele aponta interesse comercial de outros países em vender para o Brasil eletrolisadores e placas solares. O selo 'hidrogênio verde' para o produto resultado da eletrólise, ressalva, é questionável quando não se leva em conta todo o ciclo de vida das matérias-primas utilizadas. Como foram obtidas, em que condições, com que tipo de energia. “Hoje o lixo das placas solares descartadas na China é um problema gigantesco, assim como as pás das turbinas eólicas. Quando não se sabe o ciclo de vida completo, todos os gatos são pardos”, sustenta.
Se há bilhões de reais anunciados em projetos para o hidrogênio por eletrólise/energia solar/eólica, há também muito dinheiro em rotas tecnológicas mais simples para se chegar à substância ou em projetos que miram outros combustíveis estocáveis, como o etanol e o biometano.
Célula-combustível de etanol é alternativa ao hidrogênio
A Volkswagen, por exemplo, tem parceria com a Unicamp para criar um carro elétrico movido a etanol. Só que em vez de ser queimado, o etanol passa por uma célula de combustível para quebrar suas moléculas e retirar o hidrogênio, este sim, propulsor do motor elétrico. Ou seja, um carro elétrico carbono zero, sem bateria, sem tanque de hidrogênio, sem recarga na tomada e que pode ser abastecido em qualquer posto do país. "Essa deveria ser nossa obsessão nacional: miniaturizar essas células-combustível e embarcar”, defende o professor da Unicamp.
Outra montadora de automóveis, a japonesa Nissan, há seis anos vem desenvolvendo um protótipo de carro elétrico movido a hidrogênio também extraído do etanol brasileiro. O automóvel já roda 600 km com 30 litros de etanol. O combustível é reformado “on board” para mover o motor elétrico, dispensando bateria e abastecimento na tomada. O processo gera mais energia elétrica a partir de uma mesma quantidade de combustível. Na semana passada, durante o Innovation Week, a Nissan confirmou que vai lançar o sistema chamado de e-Power na América do Sul no ano que vem. No Brasil, o primeiro modelo a carregar a tecnologia de reforma embarcada do etanol em hidrogênio será o SUV compacto Kicks.
"Até hoje o etanol, que é uma bateria de CO2, nós descarregamos queimando. Só que agora a gente consegue pegar os elétrons do etanol e converter em corrente elétrica. Então, temos que fazer um carro elétrico utilizando o etanol. Esse é o hidrogênio realmente verde, porque veio da fotossíntese", afirma Pereira. Ele defende que os modelos híbridos não são de transição, mas, sim, soluções definitivas. "Os carros mais avançados hoje são os híbridos flex da Toyota. Têm menor emissão e maior eficiência energética. Carro elétrico não pode ser sinônimo de bateria", diz.
O carro elétrico convencional, à bateria, segundo o professor da Unicamp, "é um tiro na cabeça" para o mercado brasileiro porque não resolve o problema das emissões e elimina massivamente empregos da indústria nacional. Se optar por esse caminho, diz o pesquisador, o Brasil verá mais e mais indústrias fazerem como a Ford, que deixou o país e centralizou as operações nos EUA, para, de lá, exportar carros elétricos. "O Pablo di Si, CEO da Volkswagen no Brasil, realmente mudou o rumo das coisas. Em vez de fechar operações, ele decidiu investir no país. São R$ 7 bilhões na América Latina, a maior parte no Brasil e boa parte para desenvolvimento desses veículos (movidos a etanol)", afirma Gonçalo Pereira.
Nessa corrida tecnológica, quem também pede passagem é o biometano, gás obtido a partir de resíduos de culturas agrícolas, da pecuária e do saneamento. As sobras da cana-de-açúcar – vinhaça, palha e torta de filtro – respondem por 50% do potencial de biometano no Brasil, um ativo energético que nenhum outro país possui em tamanha quantidade.
Numa pesquisa em parceria com a Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR), a empresa Geo Biogás, de Londrina, conseguiu o feito inédito de produzir hidrogênio verde pela reforma a vapor do biometano.
Plantas de biometano vão se espalhar pelas usinas do país
A quebra dessa barreira tecnológica levou a Raízen a se associar à Geo Biogás para instalar usinas de biometano em todas as suas 35 unidades sucroalcooleiras nos próximos dez anos. A primeira planta dedicada à comercialização da molécula do biometano está em construção em Piracicaba, um investimento de R$ 300 milhões. Em 2023 a unidade fornecerá hidrogênio para a Yara produzir amônia verde, que será utilizada como combustível não-poluente em navios cargueiros.
Segundo a Associação Brasileira de Biogás (ABiogás), o Brasil tem potencial para produzir 20 mil toneladas por dia de hidrogênio verde a partir de biometano, ou sete milhões de toneladas por ano. Hoje, menos de 4% desse potencial é aproveitado.
Além de insumo para produção de hidrogênio verde, o biometano avança como combustível competitivo, por si só. Scania e New Holland já produzem veículos movidos a biometano. O grupo sucroalcooleiro Cocal testa os caminhões 'verdes' da Scania numa usina em Narandiba (SP). A meta é substituir totalmente o óleo diesel usado pelos maquinários e ainda vender o gás excedente para Presidente Prudente e região.
“A gente já tem no biometano um combustível armazenável e descarbonizado. O hidrogênio precisaria ter uma outra utilização em que realmente fosse necessário, para fazer sentido. O biometano já pode ser utilizado como combustível nos veículos leves e pesados. O sistema está pronto”, aponta Tamar Roitman, gerente-executiva da ABiogás.
"Complexo de vira-lata" pode prejudicar energias renováveis com DNA nacional
As soluções brasileiras de energias renováveis só não são mais conhecidas e divulgadas, segundo Gonçalo Pereira, da Unicamp, devido ao célebre “complexo de vira-lata”, que não valoriza o que não vem de fora. “O etanol é esta molécula maravilhosa, que tem quantidade incrível de hidrogênio. Deveria ser a molécula do mundo. Só não é porque em países temperados você não consegue produzir. Ela é renovável, líquida e tem alta concentração energética”, assegura o pesquisador, para quem o biometano segue na mesma linha.
As diferentes fontes renováveis vão coexistir, segundo Roitman, da ABiogás, conforme a logística de cada região do País. “Não é todo estado que consegue produzir energia solar e eólica. E o biometano também não está em todo lugar, vai depender da viabilidade técnica do empreendimento”, sublinha.
O setor do etanol, no entanto, entende que, na prática, é como se o país já tivesse resolvido o desafio da distribuição do hidrogênio. “Nós já estamos na era do hidrogênio. Por que existem quase 42 mil postos de combustíveis distribuindo hidrogênio no Brasil, de forma econômica, eficiente e segura através do etanol”, argumenta Plínio Nastari, presidente da consultoria Datagro.
Se a opção for por um carro movido a puro hidrogênio, além do já mencionado protótipo da Nissan, a empresa brasileira Hytron, comprada em 2020 pela multinacional alemã Neuman & Esser (NEA), desenvolveu tecnologia para que os postos de combustíveis disponham de terminais de reforma de etanol em contêineres, possibilitando injetar diretamente o gás nos automóveis. Isso dispensa a necessidade de transportar o hidrogênio em carretas pelo país afora.
Etanol já transporta grande quantidade de hidrogênio
Nas contas de Nastari, da Datagro, o etanol é uma das melhores formas de levar o hidrogênio de um lado para outro. Uma carreta de 45 mil litros de etanol leva 7.700 kg de hidrogênio, enquanto, se fosse hidrogênio comprimido, levaria apenas 1.500 kg.
“O etanol é a forma de você capturar, armazenar e distribuir hidrogênio de maneira econômica e segura. Sem precisar pegar a energia eólica, depois fazer linhão para transferir essa energia para uma planta de hidrogênio, daí gastar um monte de energia elétrica para produzir o hidrogênio. Depois, tem que guardar o hidrogênio num tanque de alta pressão, distribui-lo em um monte de lugar espalhado pelo país inteiro, em tanques criogênicos de titânio, caríssimos e arriscados. É muito mais fácil, econômico e seguro fazer a distribuição de etanol. Isso já existe”, resume Nastari.
As críticas ao modelo de obtenção de hidrogênio pela eletrólise da água, usando energia eólica e solar, são rebatidas pela Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica). Sua presidente, Elbia Gannoum, diz que "quando se olha para o mapa da energia renovável no mundo, o que se vê são as energias eólica e solar". "O mundo todo vai se desenvolver em torno dessas fontes, que vão ganhar cada vez mais escala e competitividade. É a matriz global. Acho que pode até ser relevante para o Brasil usar o etanol, e aproveitar muito dele, mas daí a dizer que o país não deveria seguir outra rota, eu acho absurdo", enfatiza.
Fontes energéticas devem coexistir de forma estratégica
Já Camila Ramos, vice-presidente da Associação Brasileira de Energia Solar (Absolar), cita estudos que apontam que algo entre 12% e 22% da demanda global de energia deverá vir do hidrogênio, até 2050. "É normal quererem puxar a brasa para o lado da sardinha deles. Todas as renováveis são muito limpas e devem coexistir. Grandes empresas estão investindo na produção de hidrogênio verde em regiões portuárias do Nordeste. Ali você tem o consumo perto do porto, as indústrias, e a exportação também. São exercícios que as empresas estão fazendo para entender essa viabilidade", aponta.
Para Gannoum, da Abeeólica, é saudável manter as rotas de produção diversificadas, à escolha do mercado. "Os países estão vendo que nesse campo é importante ter independência, ninguém vai fechar em torno de apenas uma rota de produção de energia. É só olhar para o que está em discussão hoje, devido ao conflito entre Ucrânia e Rússia".
A ideia está em linha com a política do Ministério de Minas e Energia. No momento, cinco câmaras técnicas setoriais levantam dados para subsidiar um plano do comitê gestor do hidrogênio dentro do ministério. Segundo Agnes da Costa, chefe da Assessoria Especial em Assuntos Regulatórios, "seria muito ruim a gente promover um trancamento tecnológico, escolher uma rota em detrimento da outra". "No final, a gente entende que os processos com menor pegada de carbono tendem a se tornar mais competitivos. Independentemente da rota tecnológica, o hidrogênio será muito promissor", conclui.
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