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Dólar-soja e retenciones

Contra o caos na economia, Argentina faz de tudo para capturar os dólares do agro

Cotação oficial do dólar na Argentina é quase metade da praticada no câmbio "blue" (Foto: Pixabay)

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Único país do mundo a taxar pesadamente o setor agrícola, a Argentina se acostumou a confiscar dos agricultores um terço do preço de venda da soja, sua principal fonte de divisas internacionais. Nesse ano, contudo, além de estarem sujeitos às retenciones de 33%, os produtores de soja se viram diante de um câmbio oficial que paga metade da cotação de mercado da moeda americana. A situação tem levado muitos a segurar o quanto podem os estoques da última safra, na esperança de um câmbio melhor.

Como ninguém é obrigado a vender, o governo apelou para uma nova estratégia de captura dos dólares da soja.

Precisando juntar até o fim do ano reservas internacionais acima de US$ 5,6 bilhões – compromisso assumido com o FMI – a equipe econômica inventou o tal dólar-soja. Na prática, em vez de aumentar o imposto das retenciones – arriscando começar uma nova guerra com o setor produtivo – a Casa Rosada mudou o enfoque. “Estamos num patamar em que o arrocho aos produtores é tão grande, que um ganho marginal de aumento das retenciones não melhoraria muito o cenário para o governo. Então, o ministro da Economia, Sergio Massa, que não é bobo, que é político, entendeu que seria melhor estimular o produtor a vender a soja, tentando algo pelo lado positivo”, avalia Diego de la Puente, diretor da Nóvitas, uma das principais consultorias do agronegócio na Argentina.

Cotação oficial é metade do dólar-blue, de mercado

Uma tentativa frustrada de implantar o dólar-soja havia sido feita em julho, pela ex-ministra da Economia, Silvana Batakis. Na segunda investida, o ministro Massa aumentou a “atratividade” da cotação exclusiva para os produtores – 200 pesos por dólar em vez do câmbio oficial de 160 pesos por dólar. No mercado aberto, ou dólar blue, a cotação é de 320 pesos por dólar. Em apenas cinco dias, foram vendidas 14 milhões de toneladas, o que representou entrada de US$ 8 bilhões em divisas.

Como o governo segue precisando de dólares, e como ainda existem cerca de 10 milhões de toneladas de soja nas mãos dos produtores, na última semana houve uma segunda rodada do dólar-soja. Desta vez, cotação especial de 230 pesos por dólar. As vendas, no entanto, foram menos expressivas, atingindo no primeiro dia apenas 300 mil toneladas, contra 1 milhão de toneladas do primeiro do Dólar Soja I. “É uma questão de oferta e demanda. Se o produtor vender muita soja, o exportador vai pagar menos em dólares. E se o produtor não vender nada, então vão ter que começar a subir um pouco os valores”, explica De la Puente. A ferramenta do dólar-soja segue em vigor até 30 de dezembro.

A enorme carga tributária imposta ao setor agropecuário argentino levaria qualquer um de seus principais competidores à falência. “Sacam do produtor um terço pelas retenciones de dólares, depois pagam a soja a 165 pesos, um preço ridículo em relação ao que se paga nos Estados Unidos, no Brasil e no Uruguai. Nosso problema é que somos ricos em recursos naturais, então os políticos aproveitam. Sacam, sacam e sacam, e seguimos produzindo”, aponta Sebástian Oliveros, analista-chefe de commodities da StoneX em Buenos Aires. Essa mão estatal pesada tem seu preço. “Seguimos produzindo, mas a produção de soja está estancada, enquanto no Brasil vocês triplicaram nos últimos dez anos. Não crescemos porque não nos dão as condições”, completa Oliveros.

Como no Brasil, soja é o principal cultivo de verão na Argentina (Foto: Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo)

Terras férteis e logística dão resiliência à Argentina

O ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues costuma brincar que Pero Vaz de Caminha mentiu em sua carta ao rei de Portugal, ao dizer que, no Brasil, em se plantando tudo dá. Se não adubar, se não corrigir o solo, as terras brasileiras não produzem essa maravilha toda. Na Argentina, é o contrário. Ela detém as terras mais férteis do continente, próximo a um hub de hidrovias em Rosário, onde também está um dos maiores parques de moagem de soja do mundo. As distâncias percorridas por caminhões e trens que transportam os grãos até as agroindústrias ou portos ficam no máximo a 400km, com média de 200km, contra até 2.000 km no Brasil – distância de Sorriso (MT) até o porto de Santos. Em seus solos mais férteis, a produtividade média argentina chega a 4,4 toneladas de soja por hectare, com picos de 6,6 toneladas, enquanto no Brasil e nos EUA a produtividade média é de 3,5 toneladas por hectare.

Um levantamento de agosto deste ano feito pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea/Esalq/USP) mostra que o aumento dos custos de produção tem pesado mais na balança do Brasil do que na Argentina e nos Estados Unidos. Cascavel (PR) e Sorriso (MT) tiveram custo operacional médio de soja, nas últimas cinco safras, de US$ 551 por hectare. Na Argentina, o custo foi quase metade (49% menor), fechando em US$ 270 por hectare, contra US$ 508 nos Estados Unidos (8% mais baixo do que no Brasil).

“Abençoados pela natureza”, em um terço de suas áreas de soja os argentinos simplesmente não precisam usar nenhum fertilizante, enquanto no Brasil esta condição está restrita a apenas 2,4% das áreas.

Regra do jogo desrespeitada, investidores afugentados

“A Argentina é o país que tem o menor custo de produção por hectare. É nesse ambiente que há muitos anos eles têm uma política de tarifação sobre as exportações. Eles conseguem ser competitivos, apesar disso. Com todas as tarifas, conseguem ter rentabilidade até maior do que os produtores dos Estados Unidos e do Brasil. Os custos dentro da porteira são bem menores do que os nossos. Com as retenciones que vão subindo de 15% para 18%, 20% e agora 33%, o contexto vai se complicando bastante. Mesmo assim eles conseguem exportar e ter margem. O grande ponto é que as intervenções governamentais acabam reduzindo novos investimentos, geram um contexto de incertezas, por que o governo pode travar a comercialização a qualquer momento, e os agentes vão investindo menos. Toda vez que as regras do jogo vão mudando com o jogo em andamento, certamente os investidores vão se retraindo”, aponta Lucílio Alves, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea/Esalq/USP.

A cobrança de “direitos à exportação” foi inaugurada na Argentina há mais de 150 anos. Entre idas e vindas, retornou com força após a crise econômica do início dos anos 2.000 e se tornou um dos maiores instrumentos arrecadatórios nos governos de Nestor e Cristina Kirchner. No discurso oficial, a cobrança das retenciones, apelido dos “direitos de exportação”, tem como motivação a estratégia desenvolvimentista de estimular a industrialização dos produtos primários, no caso, transformar o grão de soja em óleo e farelo.

De fato, atualmente a Argentina domina as exportações mundiais de farelo e óleo de soja. Neste ano deve exportar 28,2 milhões de toneladas de farelo de soja (contra 18,9 milhões do Brasil, segundo colocado) e 5,7 milhões de toneladas de óleo de soja (contra 2,1 milhões do Brasil, também na segunda colocação).

Argentina também impõe limites à exportação de carne: rebanho vem diminuindo (Foto: Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo)

Retenciones, uma estratégia de industrialização?

Para Federico de Cristo, professor de Macroeconomia da Universidad Austral, até 2010 “tudo foi de vento em popa”, com a elevação das cotações da soja e o desenvolvimento do complexo industrial de moagem dos grãos, o que trouxe mais divisas ao país. A menor disponibilidade de terras férteis, contudo, e a dificuldade de expandir a produção pelo incremento de tecnologias (de 2% a 3% ao ano), teriam feito as exportações estagnarem – segundo De Cristo. Ele não atribui essa estagnação à política de retenciones. “Creio que a estratégia global é gerar incentivo e agregar valor no país, e não frear a exportação. A ferramenta utilizada para este fim é manter o preço interno em algum percentual abaixo do internacional. Até agora, é possível dizer que temos tido êxito”, avalia.

Na leitura do economista, o dólar que não ingressa na venda do grão acabaria sendo internalizado pelas exportações de farelo e óleo de soja. “É uma mescla da intenção de arrecadar mais impostos com incentivar, de forma impositiva, a geração de maior valor agregado às commodities, para exportar produtos processados”, pontua.

A tese é rebatida pelo economista-chefe da Fundação Agropecuária para o Desenvolvimento da Argentina (FADA), David Miazzo. Ele observa que hoje a soja em grão paga retenciones de 33%, contra 31% do óleo e da farinha de soja. Se fosse um incentivo para industrializar, diz ele, a farinha e o óleo poderiam ter taxa zero e, o grão, 5%. E não precisaria começar de um patamar acima dos 30%. Há mais de dez anos, a diferença mínima de taxação vem ocorrendo apenas para não desincentivar o esmagamento da soja. “Como exemplo, imagine que a tonelada do grão vale 100 dólares, e que a indústria agrega 10 dólares, ao transformá-lo em farinha e óleo. Se eu aplico o mesmo direito de exportação ao grão e aos subprodutos, o grão vai pagar 33 dólares e os subprodutos vão pagar 33% também, mas sobre 110 dólares. Acabam pagando 36 dólares. Então, esse diferencial existe hoje apenas para não prejudicar também a indústria, além do produtor”, diz Miazzo.

Taxas como incentivo à agregação de valor: "balela"

Os defensores das retenciones dizem elas funcionam como um incentivo à produção de outros alimentos essenciais, que, ou não são tarifados, ou recebem alíquotas menores, como o trigo e o milho, que pagam 12%. Seria uma forma de evirar a monocultura da soja. De novo, Miazzo rebate: “Do ponto de vista da eficiência econômica, isso é totalmente ineficiente, porque o governo, através de um imposto, está incentivado um cultivo que tem menor rentabilidade do que a soja. Se for pensar como país, é preferível produzir mais soja e importar algum outro cultivo. Se a soja, que é o cultivo mais competitivo na Argentina, não é rentável em determinada região, muito dificilmente outros cultivos vão compensar o custo de transporte, a falta de chuvas ou os solos menos aptos”.

O suposto objetivo de incentivo à agregação de valor, pelo esmagamento da soja, também não convence Daniele Siqueira, analista de grãos da AgRural, com sede em Curitiba. “É balela. Trata-se de uma indústria tão primária, que você só esmaga a soja numa prensa e parte vira farelo e outra vira óleo. Não há uma grande agregação de valor nem gera muito emprego e renda”, destaca. A título de exemplo, a Agrural calculou a margem que o esmagamento acrescenta à soja brasileira, em comparação com a venda em grão. De US$ 559 por tonelada, como grão, para US$ 580 a tonelada como óleo e farelo. Apenas US$ 25 a mais. Em períodos de menor demanda, ou mais concorrência de outras origens e outros farelos e óleos substitutos, a margem pode ficar negativa, tornando mais vantajoso exportar soja em grão do que esmagá-la para fazer óleo e farelo.

Na prática, as retenciones viraram uma espécie de âncora do Tesouro argentino, financiando os crescentes gastos com o funcionalismo público, os programas de assistência social e os subsídios ao gás e à energia elétrica. O cenário de inflação e de elevada dívida externa fez que a Argentina renegociasse os empréstimos junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que prevê, entre outras medidas, que o país tem metas de reservas internacionais em dólar. “O governo está comprometido a cumprir o acordo com o FMI, porque sabe que, se não cumprir, está arriscando provocar o caos da desvalorização da moeda e da  inflação”, diz o economista Federico de Cristo, da Universidad Austral.

Dólar-Soja: remendo numa situação insustentável

A quebra da safra de trigo devido à seca dificultou a vida do governo de Alberto Fernández. O dinheiro das retenciones do trigo – 12% sobre o preço de venda – já não terá o volume esperado, segundo Daniele Siqueira. Daí a razão do lançamento do Dólar-Soja II. “Os produtores sabem que é só um remendo do governo para uma situação que, em determinado momento, poderá ficar insustentável. Cada hora é um remendo para emendar outro remendo. Não há estímulo para aumentar a área plantada, apenas incerteza. É uma gambiarra”. Miazzo, da Fundação FADA, vai na mesma linha: "O governo implementa o dólar-soja porque não tem reservas. Tomar emprestado não dá, porque ninguém empresta à Argentina. Isso só dá um fôlego de 30 ou 45 dias, nada mais".

Daniele Siqueira , analista do mercado de grãos da AgRural (Foto: Divul)

No âmbito das relações internacionais, o dólar-soja pode ser um tiro no pé. Daniele acredita que caberia até uma queixa do Brasil ou dos Estados Unidos junto à Organização Mundial do Comércio. “Eles usam um câmbio especial para um produto específico. É um subsídio para a exportação. Isso tira mercado dos Estados Unidos, que são grandes exportadores nesse momento, e tira também do Brasil, que poderia exportar um pouco mais. Se continuarem com essa política, estarão prejudicando os outros players do mercado”.

Cenário geopolítico cria oportunidades para Brasil e Argentina

Apesar de tantas turbulências, o cenário internacional “conspira” a favor do cone Sul. Diego de la Puente, da Nóvitas, aponta que após a guerra na Ucrânia, e as instabilidades entre China e Taiwan, houve uma mudança na geopolítica mundial, reabilitando uma região que “andava escanteada no mundo”. “A Europa aprendeu que não pode confiar nunca mais numa país como a Rússia”, diz De la Puente. A única região apta para substituir este provedor seria a América do Sul. “O mundo está mudando, alimentos e energia passam a ser prioritários. Se conseguirmos reforçar o Mercosul, teremos a oportunidade de nos projetar adiante como uma região muito mais importante na produção de alimentos”, afirma.

Para aproveitar esse reordenamento da ordem mundial, no entanto, será preciso mudar a visão dos governantes abaixo da linha do Equador. “Estamos vendo mais pessoas que atuavam no setor privado passando a se envolver na política, e por aí pode vir a mudança. Que não seja qualquer um a ser presidente, deputado ou senador, mas que tenhamos mais equilíbrio, com mais gente do setor privado. Gente que paga imposto, que sofre com uma visão política em que o único interesse é capturar mais dinheiro das empresas. Começou agora, mas até mudar, pode levar anos”, conclui.

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