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Desenvolvimento sustentável

Cultivo de grãos esgota a água do Cerrado? Justamente o contrário, mostra pesquisa

O senso comum diz que o cultivo de grãos esgota a água do Cerrado. Mas pesquisa mostra que, na verdade, agricultura ajuda na recarga de lençóis freáticos. (Foto: Wenderson Araujo/Divulgação CNA)

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Uma das metas do Roteiro do Setor Agrícola 1,5ºC, lançado por gigantes das commodities agrícolas durante a Cop-27, no ano passado, prevê a partir de 2025 um boicote total à compra de produtos agropecuários de novas áreas do Cerrado em que houver conversão do uso do solo. O bioma cobre 25% do território brasileiro, incluindo grande parte do Centro-Oeste, maior região produtora de grãos do país.

Uma das justificativas recorrentes dos que defendem esse “congelamento” de uso das terras é que a agricultura contribuiria para aumento da escassez hídrica, com risco de desertificação de uma região de solos predominantemente arenosos, com baixa capacidade de retenção de água. Uma narrativa que não se sustenta, segundo o pesquisador Lineu Rodrigues, chefe-adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Cerrados.

“A agricultura, na verdade, contribui para reciclar a água de boa qualidade. Não tem nenhuma relação entre agricultura e escassez hídrica ou falta de água”, assegura Rodrigues, que é pós-doutor em Engenharia de Irrigação e Manejo de Água pela Universidade de Nebraska.

Um estudo de Rodrigues e de Arnaldo José Cambraia Neto, mestrando de Engenharia Agrícola da Universidade de Viçosa, mostra que se todo o bioma Cerrado fosse convertido para cultivo de soja, a recarga da água da chuva nos lençóis freáticos seria de 46,4% das precipitações (contra 46,3% dos níveis atuais). Em contrapartida, se todo o bioma voltasse à sua cobertura nativa, predominantemente de espécies arbustivas esparsas, o índice de recarga seria de apenas 26%.

Isso não quer dizer que todo o Cerrado deva dar lugar à agricultura, ressalva Rodrigues, até em função da importância da vegetação natural para a biodiversidade da região. O que não é possível é insistir no mito da agricultura como predadora dos recursos hídricos.

O estudo de Rodrigues e Cambraia Neto – "Impacto do uso e ocupação da terra na recarga potencial de água subterrânea em uma bacia hidrográfica do Cerrado brasileiro" – foi publicado no livro "Águas subterrâneas: recentes avanços no conhecimento interdisciplinar”, editado pela Associação Internacional de Recursos Hídricos (IWRA).

Compreender a ciclagem da água e como se dá a recarga dos estoques subterrâneos está em linha com uma diretriz da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que ressaltou, em relatório de 2022, que “em termos de adaptação climática, a capacidade dos sistemas aquíferos em armazenar excedentes de água pode ser explorada para melhorar a disponibilidade de água doce durante todo o ano”.

Leia a seguir a entrevista do pesquisador Lineu Rodrigues à Gazeta do Povo.

Lineu Rodrigues, pesquisador da Embrapa Cerrados (Foto: Arquivo pessoal )

Muita gente ainda associa a atividade agrícola como algo que tende a esgotar os recursos hídricos. Isso faz sentido?

Primeiro que a água do mundo é constante, ela não muda, ela cicla. Faz parte do ciclo ecológico. Então, existem lugares em que a água apresenta essa variação temporal e espacial. Esse lugar, que é a bacia hidrográfica, detém uma capacidade de suportar as atividades ali dentro. Se as atividades econômicas crescerem muito, independente se é agricultura, se é indústria ou se é um banco, acaba faltando água. Mas não é que a água esteja acabando. Isso não tem como, porque a água circula, sua quantidade na natureza é finita, mas é enorme, mais do que suficiente para atender aos vários usos. Estou falando de água doce. E quando a gente fala de água subterrânea, é outro mundo a ser explorado. Nesse estudo a gente fez a avaliação justamente na recarga – que é importante principalmente para a água que aparece no período seco –, como é que essa recarga se comportou.

É um erro clássico de seus amigos jornalistas, principalmente, falar que a agricultura está secando os barramentos. No rio Araguaia, em Goiás, não existe período de escassez hídrica. O que tem é problema de infraestrutura. Chove muito agora e a água vai embora, 85%, 86% vai para o mar. E a gente queria ter mais essa água aqui em cima. A agricultura, na verdade, contribui para reciclar a água de boa qualidade. Não tem nenhuma relação entre agricultura e escassez hídrica.

O Araguaia é um rio que é a paixão dos goianos, tem muita gente que vive ali como turismo. Quem tem casa na beira do rio – e isso é para quem muito dinheiro – qualquer coisinha que eles veem, eles entram na Justiça reclamando. É o conflito clássico. E como tem agricultura, eles põem a culpa na agricultura. Assim como o Araguaia, existem várias outras regiões. O que a gente tem que fazer, em termos de recursos hídricos, é organizar os rios, fazer uma boa gestão de água, ter uma boa estratégia de infraestrutura. Os barramentos são uma forma excelente de segurar a água e depois perenizar os rios. É preciso trabalhar nessas questões. E definir os usos prioritários. Acho que produzir alimentos é um bom uso da água.

O estudo de vocês comparou duas situações hipotéticas. Todo o Cerrado de volta à sua cobertura nativa e todo o Cerrado cultivado com soja. A recarga de água nos lençóis freáticos seria maior com o cultivo da soja?

Sim, maior. E isso é importante ser bem explicado. Existem dois tipos de água. Água azul e água verde. Água azul é aquela água que está no rio, que é utilizada pela irrigação, pelo centro urbano, pela indústria. E água verde é água que chove e fica no solo para ser utilizada pelas plantas. Basicamente a vegetação nativa utiliza o grosso dessa água verde. E a vegetação nativa tem um sistema radicular profundo, estou falando de seis, de sete metros de raiz. Essa raiz está usando a água, então o solo fica mais seco e quando vem a chuva, a tendência da chuva é recarregar esse perfil do solo. A água fica retida ali.

No caso da agricultura, o sistema é mais raso, e quando ainda é irrigado, o solo geralmente está úmido. Vem a chuva e essa água acaba infiltrando e vai para os aquíferos recarregar os nossos rios no período da seca. Isso é o que acontece em termos físicos. A vegetação nativa, por ter um sistema radicular mais profundo, acaba utilizando mais água do sistema quando comparada a uma cultura agrícola.

Áreas de cultivo agrícola teriam efeito de elevar os índices de reposição da água nos lençóis freáticos (Foto: Wenderson Araujo / Divulgação CNA)

Então em termos de reposição, a agricultura não rouba água do sistema?

Não. Existem dois tipos de agricultura: a de sequeiro, que depende muito da água verde, água da chuva, e a agricultura irrigada. Na irrigada, quando falta a água da chuva, você complementa com a água do rio, a água azul. Então, a agricultura, na verdade, quando é bem feita, com bom trabalho de conservação de solo principalmente, ela contribui para o ciclo hidrológico. Não tem essa competição, esse roubar, esse esgotar. Se a agricultura não usar, quem vai usar? A vegetação nativa. E se a vegetação nativa não usar, quem vai usar? Vai escoar para o mar.

E no mar ela vai evaporar. 86% da chuva do mundo é água evaporada do mar. A água vai evaporar, vai ciclar de toda forma. A não ser que esteja numa geleira, onde pode ficar parada 2 milhões de anos, ou num aquífero profundo, onde pode ficar parada por dez mil anos.

No Cerrado, a partir de abril não chove mais. Mas os rios continuam tendo água. Essa água é do aquífero, fruto da recarga. Recarga de onde? Grande parte de nossas áreas agrícolas

Essa maior recarga possibilitada pela lavoura em comparação com a cobertura nativa, ela de alguma forma contribui para o bioma da região?

Contribui sim. E contribui 100% se aumentou a recarga, se aumentou a disponibilidade para a época da seca. Porque a água vai infiltrar. Toda prática que você fizer, que melhorar a infiltração da água no solo, ela aumenta a recarga. E a agricultura bem feita é você ter um bom trabalho de conservação de solo que favorece essa água a infiltrar. Então, a água infiltra. Ela faz um movimento no sentido horizontal muito lento. Quando ela infiltra então, ela vai movimentar lentamente na horizontal e vai chegar no rio no período da seca, quando você precisa dela.

Os rios em geral não secam por quê? Por que tem água do aquífero que está chegando no rio. Porque se não tivesse, tinha acabado, porque tem chovido menos. Aqui no Cerrado, onde fizemos nossos estudos, a partir de abril não chove mais. Mas os rios continuam tendo água. Essa água é de aquífero, fruto de recarga. Recarga de onde? Grande parte de nossas áreas agrícolas.

O que dizer sobre a crítica de alguns de que a agricultura brasileira exporta água na forma de grãos?

Esse é o discurso mais bobo que eu vejo. Tudo o que você faz, a água vai ser devolvida com uma qualidade inferior. A não ser na agricultura, que ela tem uma qualidade auxiliar às vezes e até que consegue melhorar. Não existe essa questão de exportar água. O produto que é produzido aqui vai com certa quantidade de água, mas essa água, depois que for consumida por animal ou humano, é devolvida ao sistema. Não é um produto que acaba, ela fica ciclando. Essa discussão de exportar água é infrutífera na gestão de recursos hídricos. Se essa água não for usada, ela vai para o mar. E o mar vai levar para o mundo depois, pelas correntes marítimas, e vai evaporar. Um pouco de água também é exportado de lá para cá, via produtos industrializados, que demandaram água lá para produzir. Então, qual é o balanço? É positivo? É negativo? Como isso impacta na gestão hídrica de um país? Não é algo que possa ser colocado de forma aleatória, tem que ser respaldado e se mostrar a conexão.

As pesquisas da Embrapa já demonstraram, ao longo dos anos, que o solo do Cerrado é naturalmente mais fraco. E que os produtores construíram a fertilidade safra após safra, com calcário, adubação, matéria orgânica, cobertura verde. Assim, dá para afirmar que o trabalho agrícola tem contribuído para o equilíbrio do bioma e enriquecimento desses solos?

Com certeza, se você pensar em produção de alimentos, a equação matemática hoje não fecha sem o Brasil. O Brasil é peça fundamental. Veja a Ucrânia, que brigou com a Rússia e o mundo entrou em crise. Se tirar o Brasil, o mundo morre de fome. E dentro do país, você tem que pensar no Cerrado. Essa região é estratégica. Esses solos nossos não produziam nada nos anos de 1970. Estou falando de 30, 40, 50 anos atrás. Não produziam nada. E foi graças a esse trabalho de reconstrução do solo, principalmente com calcário e gesso, corrigindo a acidez, que permitiu à gente ter essa agricultura forte, com solos bem conservados em vez de pastagem degradada. Hoje temos no Cerrado solos altamente férteis produzindo pastagens de alta qualidade e todo tipo de cultura que você pensar. E isso favorece muito a questão hídrica.

Onde foi feito esse estudo?

Esse estudo foi feito no bioma Cerrado (bacia hidrográfica do Buriti Vermelho, no Distrito Federal), que representa 24% de nosso território, e é a principal fronteira agrícola do Brasil. Devido à intensificação da agricultura, muitas vezes com irrigação, em algumas regiões você acaba aumentando essa disputa pelo uso da água. Por isso, a gente tem que ter alternativas para aumentar a disponibilidade hídrica, e para isso é preciso entender a dinâmica da água subterrânea.

Nós avaliamos as mudanças de uso e ocupação da terra na recarga potencial de água subterrânea numa bacia hidrográfica do Cerrado. Usamos uma modelagem com a situação atual, outra com a situação de colocar só soja no bioma, e uma terceira só com a vegetação nativa, para ver o que aconteceria com a questão da recarga. A gente observou que a recarga nos cultivos agrícolas, como era de se esperar, retém 46,4% do total da chuva, e quando a gente fala da vegetação nativa, é 26%. Isso não é ruim, a vegetação nativa é importante, porque ela pega essa água e joga de novo para a atmosfera. Mas em termos de recarga, pensando na contribuição ao aquífero, na região do Cerrado, onde fizemos o estudo, a área agrícola acaba contribuindo mais com a recarga do que uma área com vegetação nativa.

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