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Produção e consumo

Dá para exportar mais carne sem “tirar comida da mesa dos brasileiros”?

Brasil lidera a lista de fornecedores de carne para a China, e tem espaço para ampliar exportações sem ameaçar o abastecimento interno. (Foto: Leticia Akemi/Arquivo/Gazeta do Povo)

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Um estudo recente do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) buscou descobrir se a China já chegou a um teto em sua demanda por carnes ou se ainda há espaço para aumentar o consumo no país asiático. O trabalho traz projeções de longo prazo e foi realizado ainda antes do agravamento da crise imobiliária chinesa, mas já antevia uma diminuição gradual do crescimento do PIB, de 5,5% em 2022 para 4,6% em 2031.

A conclusão dos americanos foi de que, sim, as estatísticas disponíveis de hábitos de consumo e poder aquisitivo apontam que a disponibilidade per capita de carnes na China deverá crescer de 70,2 kg em 2022 para 94 kg em 2031.

E com 1,42 bilhão de bocas para alimentar, a China não tem como atender ela mesma todo o aumento da demanda. Atualmente o país já importa 18,6% da carne vermelha consumida, 8,3% da carne suína e 5% do frango. Comparativamente, no ano 2000 a China buscava no mercado internacional apenas 1% do total de carnes para atender o consumo interno.

A pecuária brasileira lidera a lista de fornecedores, com folga. De cada 3 kg de carne importadas pela China, 1 kg vem do Brasil. Essa proporção poderá até aumentar nos próximos anos, sem que represente nenhuma “ameaça” ao abastecimento interno, como sublinha Ricardo Santin, diretor da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).

“A vantagem é que nós temos capacidade de aumentar produção sem tirar comida da mesa dos brasileiros. Sem prejudicar o mercado interno e mantendo a sustentabilidade da produção, devido à abundância de grãos, de terras e de pastagens”, destaca.

Lula tem sido crítico das exportações de carne

A afirmação de Santin não deixa de ser uma resposta indireta ao discurso esquerdista, repetido pelo presidente Lula, em várias ocasiões, que associa o aumento das exportações a um risco à segurança alimentar nacional.

Ainda na campanha eleitoral, em 2022, Lula afirmou: “Vamos ter que discutir o preço da carne nesse país. Nós vamos discutir se vai continuar só exportando ou se vai deixar um pouco pra nós comermos”. Em outra ocasião, disse que “um país sério só exporta o excedente de sua produção; primeiro alimenta seu povo, depois vai exportar”.

Tais preocupações são descoladas da realidade, como já mostrou reportagem da Gazeta do Povo. No setor da carne bovina, liderado pelo Brasil com um quarto das exportações globais, 70% da produção é para atender o mercado doméstico. Quanto ao frango, de novo, o país lidera as exportações, com 35% de participação no mundo, sem prejuízo do mercado interno, onde fica 67% da produção. A receita com exportação das três carnes somadas totalizou US$ 23 bilhões em 2022.

Assim, a tentação de copiar o modelo argentino de taxar as exportações pode ter o efeito contrário ao esperado, desestimulando investimentos e fazendo diminuir a oferta de carne em longo prazo – como vem acontecendo no país vizinho.

Oscilações são típicas do ciclo pecuário e da oferta de grãos

Não quer dizer que o aumento da procura internacional pela carne brasileira não interfira nos preços domésticos. Na bovinocultura, no ciclo 2020-21 houve coincidência de oferta restrita de animais, devido ao ciclo pecuário, com aumento das vendas para a China e valorização do dólar.

“Foi por isso que a gente viu aquele cenário de picanha bem acima de R$ 100. Entre 2020-21 tivemos preços em alta, mas em 2022-23 houve expansão da oferta. Não dá para ser feito na hora nem é algo orquestrado pelo governo. A pecuária é uma atividade plurianual, eu não consigo emprenhar uma vaca e ter um bezerro e um boi gordo no mesmo ano, demora um tempo para isso acontecer”, sublinha Lygia Pimentel, estrategista-chefe da consultoria Agrifatto, de São Paulo.

A analista lembra que a expansão da produção acontece em função do estímulo dos preços. E sempre poderá haver solavancos em função da oferta de grãos para o gado e intempéries climáticas. É do jogo. “Em 2022 houve recorde de exportações, tanto para a China como no geral. E o preço caiu, mesmo assim. Sempre é uma combinação da oferta e demanda para chegar ao preço de equilíbrio, assim diz a teoria econômica”, sublinha.

Se a China precisar de mais carne, ou qualquer outro país, o Brasil tem por onde atender a demanda, com milhões de hectares de pastagens degradadas que podem ser convertidas para a produção de grãos, ajudando a intensificar o sistema das criações. Exemplo mais recente disso foi o anúncio da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica) de que irá financiar a conversão de 1 milhão de hectares de pastagens degradadas em áreas agricultáveis no Brasil.

O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, coordena o projeto para que investidores internacionais financiem a recuperação dos pastos: estudo do Banco do Brasil estima que o país tem 100 milhões de hectares em estoque, sem precisar derrubar nenhuma árvore.

Embarque de contêineres frigorificados no Porto de Paranaguá. Foto: Claudio Neves/Portos do Paraná (Foto: Claudio Neves/Portos do Paraná)

Problema é poder de compra, não abastecimento

Dizer que a exportação de carnes prejudica a alimentação do povo brasileiro é um discurso “obtuso, míope”, segundo Alcides Torres, analista da Scot Consultoria. “O problema no Brasil é poder de compra, não poder de abastecimento. É problema de emprego, de inflação. Hoje a gente produz o alimento mais barato do mundo, e isso às vezes incomoda, dai o porquê de surgirem restrições de toda forma”, completa.

Na avaliação de Santin, da ABPA, em que pese a alta participação da China nas compras, a cadeia produtiva brasileira de carnes brancas está hoje com a cartela de clientes mais diversificada. Os chineses levam 16% das exportações do frango brasileiro, que chega a mais de 150 países. Mesmo os embarques de suínos, hoje, estão mais pulverizados.

“Isso de sinodependência já não é realidade. Se por acaso o mercado deles se fechar, fecha 37% da nossa produção de suínos. Diferente do setor bovino, que tem mais de 50% de participação. Em nosso caso, podemos distribuir para outros países”, assegura.

Incremento no consumo chinês não é garantido

Se o crescimento da demanda chinesa se confirmar, agregando 24 kg de carnes per capita nos próximos anos, ainda assim em 2031 os chineses terão menos carnes à mesa do que os volumes atuais disponíveis para brasileiros, argentinos, americanos e europeus. Somadas todas as principais carnes (bovina, frango, suína, ovina e peixes) o consumo per capita no Brasil é de 100 kg por ano, enquanto na Argentina chega a 118 kg, nos Estados Unidos ultrapassa 124 kg e na União Europeia está em torno de 84 kg.

O relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) considera, contudo, que o incremento da demanda chinesa não está garantido nos níveis projetados.

Ainda que uma parcela significativa da população tenha deficiências nutricionais indicando baixo consumo de carne, o aumento dos índices de obesidade, problemas cardíacos e outras doenças relacionadas à dieta alimentar têm levado as autoridades de saúde do país a recomendar que os consumidores diminuam o consumo de carne. Paralelamente, a preocupação com impactos ao meio ambiente e com bem-estar animal tem encorajado o consumo de simulacros de carne, à base vegetal e cultivados em laboratório.

Outros mercados promissores na Ásia

Para além da China, há outros mercados promissores no continente asiático, como Vietnã, Indonésia, Filipinas, Coreia do Sul e Japão. No caso destes dois últimos, sublinha Lygia Pimentel, da Agrifatto, trata-se de “outro nicho de mercado”, que demanda carne bovina de qualidade superior, com características organolépticas, pH e coloração específicas. E que paga mais por isso.

“Nossos produtores vão buscar atender. Inclusive já temos alguma produção para isso, carne rastreada, em estados que tiraram a vacinação contra a febre aftosa. Para alguns pode parecer que a pecuária brasileira é atrasada, mas na realidade é expoente; as técnicas que a gente usa são exemplo para o resto do mundo”, enfatiza.

Hoje o preço do quilo de carne bovina custa na China quatro vezes mais do que o preço do frango. Para o USDA, a demanda chinesa por carnes é inelástica – ou seja, é relativamente indiferente ao aumento de preços. Isso se explica em parte pela diminuição contínua do peso dos alimentos no orçamento doméstico e pelo fato de que, entre 1985 e 2021, a renda familiar chinesa cresceu em média 7,6% ao ano, ainda que tenha desacelerado desde 2014.

“A carne bovina com certeza deverá ter desempenhos ainda melhores. Caiu no gosto da população chinesa e o Brasil tem uma relação comercial muito bem desenvolvida com a China. A grande vantagem é que a China tem concentrado suas compras no mercado brasileiro, para as três proteínas. Preço é um dos motivos, somos mais competitivos hoje do que os nossos grandes concorrentes”, sublinha Fernando Iglesias, analista da agência Safras e Mercado.

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