No interior de São Paulo, assentados da reforma agrária estão abandonando o discurso ideológico do MST e outros movimentos que pregam o enfrentamento do capitalismo e oposição sistemática ao agronegócio. Em vez disso, centenas de famílias de ex-sem-terras aderem a um projeto de parcerias com usinas de cana-de-açúcar e outras agroindústrias para dar viabilidade econômica às suas pequenas propriedades.
Pelo programa Parcerias Produtivas, coordenado pela Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), o assentado pode destinar até 70% de seu lote para cultivo por uma agroindústria, num formato parecido com o de arrendamento, em que parte da produção é destinada ao pagamento do “aluguel” pelo uso da terra.
A diferença, contudo, é que o novo modelo garante também a prioridade do uso da mão de obra dos assentados em serviços manuais, como limpeza de carreadores, controle de formigas e condução de aceiros para evitar incêndios. E nos 30% restantes do lote as empresas parceiras, em nova fase do programa que passou por projeto-piloto, se comprometem a prestar assistência técnica em atividades econômicas familiares que complementem a renda dos assentados, como cultivos de hortas, pomares e criação de aves e suínos.
“Existem parcerias que vão possibilitar uma receita anual entre 50 e 70 mil reais por ano. Com uma receita dessas, o assentado vai pagar tranquilamente a faculdade do filho, a parcela do carro, as compras do mercado. E nos outros 30%, o que o assentado produzir de forma profissional, com suporte da assistência técnica, o lucro vai todo para ele”, destaca o diretor-executivo do Itesp, Guilherme Piai.
São Paulo tem cerca de 350 mil hectares de terras destinados a assentamentos da reforma agrária. Quase 200 mil são vinculados ao governo federal, pelo Incra, enquanto 153 mil hectares e 7,2 mil famílias estão sob a tutela do governo estadual, a maioria na região do Pontal do Paranapanema.
Parcerias Produtivas envolvem quase 600 famílias de assentados
Na região Norte do estado, o governo paulista vem testando nos últimos meses o projeto-piloto Parcerias Produtivas, envolvendo quatro empresas – Biofertec, Usina São Martinho, Usina Pitangueiras e Top Frutas Francolin – e 568 assentados.
A parceria com a Usina São Martinho envolve cessão dos lotes para cultivo da cana-de-açúcar. No Assentamento Guarany, em Pradópolis, são 200 assentados-parceiros, enquanto nos assentamentos Monte Alegre, Bueno de Andrada e Silvânia, nos municípios de Araraquara, Motuca e Matão, outros 260 produtores participam do projeto.
No Assentamento Reage Brasil, em Bebedouro, 68 produtores se associaram à Usina Pitangueiras para cultivo da cana, enquanto nove famílias optaram pela parceria para cultivo de mamão com a empresa Top Frutas Francolin. Antes, em 2020, iniciou a parceria entre a empresa Biofertec e 31 produtores do Assentamento Boa Sorte, no município de Restinga, ainda obedecendo portaria anterior do Itesp (Portaria 77/2004), que já visava gerar mais receita, capacitar e profissionalizar os produtores da agricultura familiar, mas ainda limitava o contrato a 50% do lote e não previa assistência técnica da agroindústria.
Projeto busca viabilizar permanência dos assentados no campo
Pelo artigo 6.º da portaria, o projeto técnico nos 30% da área remanescente dos assentados "deverá prever a produção de gêneros alimentícios e/ou atividade pecuária de corte e leite, avicultura, piscicultura, ovinocultura, e outras atividades afins, considerando os aspectos de solo e clima, ouvindo sempre o beneficiário sobre a sua vocação e interesse sobre o projeto a ser desenvolvido, visando a consolidação efetiva do propósito da agricultura familiar e a fixação plena do beneficiário e seus familiares no campo".
Dentre as parcerias já em andamento, na Usina Pitangueiras, os assentados recebem pagamento equivalente ao valor de 55 toneladas de cana-de-açúcar por hectare arrendado. Em média, a renda extra é de R$ 1.500,00 por mês para um lote de 5,5 hectares. Esse valor deve aumentar devido à ampliação da área passível de arrendamento, de 50% para 70%. Pelo contrato, o parceiro investidor tem ainda a obrigação de conservar as estradas de acesso e internas do assentamento, e apoiar “sempre que possível, os projetos ambientais, sociais, educacionais e de esporte e lazer desenvolvidos pelas comunidades e associações representativas dos assentamentos”.
A parceria com a usina veio em boa hora para Claudinei Gonçalves, a mulher, três filhos e dois netos, que vivem no lote 19 do Assentamento Reage Brasil, em Bebedouro. “Aqui no assentamento, até para vender o que a gente produz é difícil. E ficar com o lote parado não vira, né?”, relata Gonçalves.
Após anos de trabalho pesado, o assentado passou a sofrer de dores na coluna e encontrava dificuldade para tirar a sobrevivência do lote. “Eles estão pagando mensalmente pra gente, e isso ajuda muito na renda da casa. A gente cuida dos carreadores, mata formiga e tem umas criaçõezinhas, um porquinho, uma galinha, uma hortinha para o gasto. Aqui quase todo mundo fez essa parceria com a usina, é um ou outro lote que não fez. É por causa dessa renda por mês”, destaca o produtor.
A Gazeta do Povo informou Gonçalves que, nas novas parcerias, e na extensão dos contratos atuais, as agroindústrias devem se comprometer a dar assistência técnica para um projeto de agricultura familiar rentável nos 30% do lote que permanecerão nas mãos dos assentados. “Então é bênção”, reagiu.
Com parceria, terras produtivas não ficam subutilizadas
Do lado das empresas, a parceria com pequenos produtores agrega não só economicamente – visto que alguns dos lotes de assentamentos ocupam terras altamente produtivas e vizinhas à suas operações –, mas também representa o fortalecimento de práticas de responsabilidade social, ambiental e de governança (ESG), cada vez mais valorizadas no mercado de capitais.
Para o governo paulista, trata-se de criar novas perspectivas para assentamentos que não conseguem obter lucro, seja pela falta de escala dos pequenos lotes, seja pela dificuldade de gestão e acesso ao mercado.
“Para agregar valor, é preciso uma operação diferenciada, criação de embalagem, um produto com manejo bem feito, canal de venda direto, eliminando atravessadores. Pode-se dizer que poucos assentados têm esse sucesso financeiro. Mas, com o projeto, oferecemos crédito, suporte produtivo e trazemos a iniciativa privada para perto deles. Esse é o caminho, porque o governo por si só não consegue dar um suporte pleno para 7,2 mil famílias”, diz Piai.
“É um modelo que está dando muito certo, com aceitação enorme de ambas as partes. Já temos reuniões marcadas com várias outras agroindústrias, estamos elaborando novos contratos e nesse ano vamos focar muito na região do Pontal do Paranapanema, onde estão 5 mil dos 7,2 mil assentados. A gente quer aumentar muito essa parceria com as agroindústrias”, acrescenta o diretor do Itesp, otimista com os resultados já obtidos.
Itesp sabe que "compra briga" com o MST
E qual a reação do MST diante da opção dos assentados em firmar parceria com agroindústrias capitalistas? A Gazeta do Povo fez contato com o movimento, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Piai, do Itesp, sabe que o projeto não terá endosso do MST. "Desculpe o termo, mas eles gostam de deixar as pessoas na miséria, para se tornarem dependentes politicamente desses movimentos. Eles são contra, inclusive, você entregar os títulos para uma família que já está há 30 anos em cima da terra produzindo. São contra essa independência, tanto financeira quanto dominial", enfatiza.
Além de levar o modelo "capitalista" de parcerias para o Pontal do Paranapanema, que concentra assentamentos ligados ao MST, o governo paulista decidiu tocar adiante a etapa final da reforma agrária, de concessão de títulos, à qual o MST também se opõe.
Na região do Pontal cerca de 5 mil famílias aguardam na fila para registrar seus imóveis. Com base na Lei Estadual nº 17.517/2022, será possível aos assentados que cumpram os requisitos legais ter seus títulos outorgados pelo governo de São Paulo, e, assim, "terem as garantias de direitos previstas Constituição Federal” – conforme sublinhou no início do processo de regularização fundiária, em março, na cidade de Dracena, o oficial de registro de imóveis Izaías Gomes Ferro Júnior.
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