O Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar e tem vantagens competitivas únicas devido à baixa pegada de carbono da atividade| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo
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A primeira fábrica do mundo a produzir combustível sustentável de aviação (SAF) a partir de etanol funciona desde o início do ano na Georgia, Estados Unidos, e só consegue rodar graças a um mix com o combustível derivado da cana-de-açúcar importado do Brasil. As novas plantas que virão, com fortes subsídios da Lei de Redução da Inflação (IRA) do governo Biden, que gera créditos de até R$ 2,50 por litro produzido, também devem se abastecer do lado de cá do Atlântico.

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Essa dependência do insumo brasileiro não tem perspectivas de terminar em médio prazo, pode durar anos, apesar da fartura de etanol de milho nos EUA, maior produtor global. O gargalo americano está na pegada de carbono do combustível, que não atinge os padrões mínimos exigidos pelo Corsia – o programa para redução e compensação de emissões de CO2 provenientes dos voos internacionais.

No ciclo de vida completo, o etanol brasileiro gera quase três vezes menos emissões, em grande parte devido à energia despendida no processo produtivo das usinas, que é totalmente renovável (biomassa de eucalipto, bagaço e palha de cana), enquanto nos EUA a produção depende de caldeiras a gás e carvão minerais. A distância de sustentabilidade aumenta com o etanol de segunda geração, que reaproveita os resíduos vegetais e tem pegada de carbono 30% menor quando comparado ao de primeira geração.

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Produção de SAF vai captar investimentos bilionários

A situação aflige o setor de etanol dos EUA, que teme ficar atrás na corrida mundial para produção de SAF. O setor aéreo tem como meta chegar a 2050 com emissão líquida zero de carbono, mas já em 2027 aeronaves com destinos internacionais não poderão levantar voo de vários aeroportos se não tiverem misturas mínimas de SAF em seus tanques. Atualmente, o que se produz é suficiente apenas para um dia de consumo de uma companhia aérea norte-americana de grande porte. Descarbonizar a aviação civil vai exigir US$ 5 trilhões até 2050, ou US$ 178 bilhões por ano.

Diminuir essa dependência do etanol brasileiro para produzir SAF faz parte do caminho para participar “do maior novo mercado jamais aberto para produtos agrícolas dos Estados Unidos”, segundo o Comitê de Promoção do Milho de Iowa.

A American Carbon Alliance, que congrega os interesses de produtores rurais e usinas americanas, disse que as importações do etanol brasileiro equivalem a um “toque de despertar” na indústria, que não está em condições de concorrer com os padrões de sustentabilidade da matéria-prima sul-americana.

Cana-de-açúcar brasileira tem pegada de carbono até três vezes menor do que a americana| Foto: Jonathan Campos / Arquivo Gazeta do Povo

EUA temem que o Brasil siga "preenchendo o vazio"

“A atual demanda por etanol de baixo carbono, tanto nacional quanto internacionalmente, está revolucionando a indústria agrícola. A questão é: conseguirão os EUA participar nestes novos mercados ou ficaremos para trás?” reagiu Tom Buis, CEO da American Carbon Alliance. “Se quisermos ver a agricultura americana sobreviver e prosperar, devemos garantir que o etanol de milho seja parte da solução quando se trata de combustível de aviação sustentável. Se não agirmos, o Brasil continuará a preencher o vazio.”  

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A provável diminuição da demanda de etanol no setor automotivo nos Estados Unidos, devido ao avanço dos carros elétricos, torna a produção de SAF mais crucial ainda. Por enquanto, a maneira mais engenhosa que os americanos encontraram de descarbonizar o etanol de milho foi sugerir a construção de “carbonodutos” cruzando plantações do Meio Oeste para enterrar o CO2 gerado pelas refinarias.

Um projeto de 3.200 km é liderado pelo Summit Agricultural Group, mesmo fundo americano que controla a FS Bioenergia, pioneira na produção de etanol de milho no Centro-Oeste brasileiro. Mas em vários estados norte-americanos a iniciativa tem enfrentado a oposição de agricultores, políticos e ambientalistas, que consideram a rede de dutos cara, megalomaníaca e perigosa.

Usinas brasileiras têm mercado "oceano azul"

Quem mandou as primeiras cargas de etanol padrão Corsia para a fábrica Lanzajet, na Georgia, foi a brasileira Raízen (joint-venture entre Shell e Cosan). Trata-se, à primeira vista, de um mercado de “oceano azul” para o etanol verde e amarelo, mas há ressalvas e preocupações dos dois lados das Américas.

Do lado de cá do Atlântico, a preocupação é de que o Brasil possa se dar por satisfeito apenas como fornecedor de matéria-prima nobre para produção de SAF, descuidando da oportunidade de desenvolver no próprio território uma nova cadeia agroindustrial, com forte demanda global e impacto na geração de renda e empregos.

Para Gonçalo Pereira, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, o cenário exige uma atuação estratégica do governo brasileiro. “Precisamos, via BNDES, ter programas para fazer que se produza SAF no Brasil. Por que os Estados Unidos não conseguem produzir SAF sem o nosso etanol”, enfatiza. Por outro lado, faz parte do jogo a Raízen e outras usinas exportar etanol e buscar capturar o máximo de valor. “Mas é papel de uma política de Estado bem feita gerar condições para que a gente, em vez de exportar, crie valor aqui dentro do país”, sublinha.

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Grandes usinas ainda não revelaram projetos de SAF à etanol

Num primeiro momento, os grandes players da produção de etanol no país se movimentam para aproveitar o apetite americano pelo combustível brasileiro, de baixa pegada de carbono. Além da Raízen, a FS Bioenergy, a BP Bunge e a São Martinho, dentre outras, também detêm certificações de sustentabilidade e de baixo carbono exigidos pelo Corsia.

A Raízen ainda não anunciou investimento em produção própria de SAF, mas assegura que "não deve ficar apenas como fornecedor de álcool para nossos clientes" - segundo declarou Raphael Nascimento, diretor de Novos Negócios da companhia, à Gazeta do Povo.

Frascos com novas variedades de levedura para produção de biocombustíveis em laboratório da Unicamp| Foto: Ana Clara David / Divulgação Unicamp

“O mundo polui menos quando o Brasil produz. Você economiza milhares de navios rodando à toa. No final do dia, o fundamento deve prevalecer. A produção próxima do álcool é mais eficiente do que no destino. É muito difícil o cenário onde o Brasil não produza nada de SAF, porque é um contrassenso técnico, um contrassenso econômico", diz Nascimento.

Já a Usina São Martinho confirmou à Gazeta do Povo que possui duas plantas certificadas de etanol de baixo carbono demandado para produção de SAF, em Américo Brasiliense (SP) e Pradópolis (SP). “O SAF é mais uma oportunidade que se abre com um grande potencial para a São Martinho, que vem aprimorando e certificando seu Sistema de Gestão de Sustentabilidade em diferentes protocolos internacionais, habilitando-se a prover etanol de baixa pegada de carbono para estes diversos mercados”, diz Oscar Tribst Paulino, gerente de Sustentabilidade da São Martinho.

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Por enquanto, opção de Max Sugar prevalece

Como regra, as grandes usinas brasileiras têm operado na modalidade Max Sugar, devido à melhor rentabilidade do açúcar na comparação com o etanol. Mas estão de olho no prêmio adicional pago pela sustentabilidade do combustível brasileiro. Na semana passada, a BP anunciou a compra dos 50% da trading de grãos Bunge na joint-venture BP Bunge Bioenergia, por US$ 1,4 bilhão. A intenção da BP é avançar nas oportunidades de biocombustíveis como o SAF e o biogás.

Também há poucos dias, Itaipu Binacional inaugurou em Foz do Iguaçu a primeira planta piloto do país para produção de petróleo sintético a partir do biogás, com foco na geração de SAF. A região Sul é a que concentra a maior quantidade de insumos próprios para o biogás, como dejetos de suínos e restos de culturas agrícolas. Na mesma rota, de uso do biometano, a Copersucar e a Geo Biogás anunciaram recentemente uma unidade piloto, em local ainda não definido.

A demanda por SAF é uma curva ascendente em todo o globo. Na Europa, a mistura de SAF no querosene de aviação deve ser de 2% até 2025, de 6% até 2030, e aumentar para 70% até 2050. Para o período 2024-26 são oferecidos subsídios de 2 bilhões de euros para cobrir a diferença de preço entre o combustível fóssil e o SAF, que é quase três vezes mais caro. Já nos Estados Unidos, a estratégia não envolve uso mandatório, mas busca subsidiar os produtores de biocombustíveis para cobrir a diferença de custos, ao abrigo da Lei de Redução da Inflação.

Setor sucroenergético aguarda aprovação de marco regulatório

No Brasil, o PL Combustível do Futuro, aprovado pela Câmara e em trâmitação no Senado, prevê que a mistura de SAF ao querosene deva começar em 1% e aumentar gradativamente até 10% em 2037. Por enquanto, não existem anúncios de plantas produtoras de SAF a partir de etanol no país.

Todos os três projetos comerciais de SAF anunciados até agora envolvem a rota tecnológica de Ácidos Graxos e Ésteres Hidroprocessados (HEFA), que utiliza óleos vegetais e gorduras residuais. A Petrobras vai produzir SAF a partir de óleo de soja e sebo bovino na refinaria Presidente Bernardes em Cubatão, enquanto a Acelen (do fundo Mubadala Capital, de Abu Dhabi) utilizará óleo de macaúba na Bahia, e o terceiro projeto, da Refinaria Riograndense (parceria entre Petrobras, Braskem e Ultra), vai processar óleos vegetais, principalmente soja, e sebo bovino em Rio Grande (RS). Os primeiros litros de SAF nacional devem chegar apenas em 2026.

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Apesar de a rota tecnológica alcohol-to-jet (ATJ) ainda ser mais cara do que a HEFA, ela tem pegada de carbono mais baixa, e a tendência é de os custos diminuírem com a maturação da tecnologia. Outra vantagem a facilidade de escalar a produção, quando comparada com a disponibilidade do sebo bovino e outros óleos vegetais.

No entanto, mesmo com avanços tecnológicos, as projeções apontam que o SAF será sempre 50 a 100% mais caro que o querosene fóssil. Fatalmente, deve acabar pesando no preço das passagens aéreas, em que o item combustível responde por 40% dos custos, no Brasil, contra 20% no mercado americano - segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas.

Potencial de ser Opep dos biocombustíveis

A aviação internacional tem sede de SAF. Apesar de existirem mais de 100 projetos em 30 países, atualmente apenas dez plantas produzem SAF em escala comercial em todo o mundo, com volumes que em 2024 devem representar 0,5% da demanda total de combustível de aviação. Até a metade do século, será preciso saltar de 1,8 bilhão de litros (2024) para mais de 400 bilhões de litros anuais.

A empresa norte-americana Honeywell, especializada no desenvolvimento de tecnologia para novos combustíveis, é provedora da solução para SAF nos projetos da Petrobras em Cubatão (SP) e da Acelen em Mataripe (BA). Para André Defaveri, diretor de Desenvolvimento de Novos Negócios da Honeywell, não há dúvidas de que uma indústria local de SAF irá se estabelecer.

Mas a oportunidade é maior do que o mercado doméstico: "Uma coisa é exportar commodity, outra é exportar produto com alto valor agregado. O Brasil tem a chance de realmente surfar nessa onda mundial, e a América Latina pode se tornar a Opep dos biocombustíveis", assegura. A vantagem competitiva estaria tanto nas rotas com óleos vegetais e gorduras, como nas que utilizam biogás ou o etanol. "É um mercado muito grande, que abre possibilidade não só para essas rotas, mas para outras. É a diversidade de rotas tecnológicas que vai trazer segurança de que esse mercado vai ser atendido da maneira que precisa", diz Defaveri.

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"O investidor precisa ter segurança jurídica para que saiba que está fazendo um produto que vai comercializar e não vai ter barreiras, nenhum tipo de restrição. Essa segurança está sendo dada em parte pelo PL do Combustível do Futuro e depois podem ser necessárias outras leis" sublinha. Nesse meio tempo de indefinição regulatória, "o produtor de matéria-prima não vai ficar esperando", diz Defaveri, e é natural o caminho da exportação.

Brasil é Arábia Saudita da fotossíntese

Para além da necessidade de aprovação do PL do Combustível do Futuro, Marcelo Lyra, vice-presidente da Acelen, do fundo árabe Mubadala, destaca a importância de avançar no marco legal do mercado de carbono, que também está no Senado, para que o país tire o máximo de proveito de seus indicadores de sustentabilidade.

"Estima-se que o Brasil pode gerar um excedente de crédito de carbono de 50 bilhões de dólares por ano. Esse é o valor do excedente que o país poderá comercializar no mercado regulado de outros países. O Brasil é a Arábia Saudita da fotossíntese, e não tem para onde correr. A gente não pode deixar passar essa oportunidade", conclui o executivo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]