Agricultor gaúcho radicado no Paraguai desde menino quando se mudou com a família para o município de Maracaju, José Soares Peter, hoje com 50 anos, decidiu que não quer mais saber de soja safrinha. Diz-se soja safrinha a safra de inverno da leguminosa, que no Brasil tem plantio proibido para tentar frear a proliferação do fungo que causa a ferrugem asiática, devastadora das plantações. Mas no Paraguai a segunda safra de soja ainda é permitida, respeitado um vazio sanitário de três meses.
“Eu venho de três anos de soja sobre soja, fazendo safrinha. Mas eu vi que não dá, decidi parar. É muito problema com doenças e erosão, que está acabando com a terra. Se continuar na safrinha, daqui a pouco nossas terras vão estar ‘tudo desgastada, vão acabar no rio’”, assegura José Peter. Feitas as contas, ele diz que percebeu que o lucro do curto prazo, pela liquidez da soja, vira prejuízo em três ou quatro safras. No primeiro ano de soja sobre soja, Peter conta que colheu até 90 sacas por alqueire. Depois a produtividade caiu para 60 e, na terceira repetição, a lavoura de inverno rendeu míseras 28 sacas por alqueire. “A soja safrinha deixa a terra pelada, não segura nada”, avalia.
Os agricultores do Paraguai “converteram-se” para a soja safrinha quase do dia para a noite. Ou de uma safra para outra. Em 2013, após a alta de preços em função de uma estiagem, a área de milho de inverno no Paraguai chegou a 1 milhão de hectares, contra apenas 200 mil da soja safrinha. Não deu outra, houve superoferta e os preços despencaram. Com o trauma, a área de soja safrinha disparou e chegou a 750 mil hectares. E hoje está em torno de 600 mil hectares, praticamente empatando com o milho.
O cenário de preços e de rentabilidade, no entanto, mudou nesses cinco anos. Na época da virada da safrinha, a soja chegou a estar cotada a 16 dólares o bushel na Bolsa de Chicago, contra uma média atual abaixo de 10 dólares. “Naquele cenário, o produtor que plantasse soja safrinha e colhesse 2 mil kg por hectare ganhava um bom dinheiro, em comparação com o milho safrinha. Isso já não é mais realidade. Atualmente no Paraguai o milho safrinha começa a ter mais liquidez. Só as novas indústrias de etanol consomem 25% de todo o milho que produzimos, enquanto a soja tem um custo de produção cada vez maior”, aponta Sidnei Niehaus, agrônomo diretor da empresa Agrotec, que presta serviços e consultoria técnica no Paraguai.
O plantio de uma mesma cultura seguidamente no solo vai contra a ciência agronômica. Simplesmente porque favorece um ciclo ininterrupto de pragas e doenças que, para serem controladas, exigem doses cada vez maiores de fungicidas e inseticidas, criando indivíduos super-resistentes que ameaçam a sustentabilidade de todo o sistema. E há o custo da depauperação do solo, que perde palhada e matéria orgânica proporcionadas pela alternância de culturas de espécies e sistemas radiculares diferentes.
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Do ponto de vista econômico, o ganho com a safrinha de soja é ilusório. Quem garante é o produtor Doacir Bianchet Júnior, de 32 anos, que, além da formação em agronomia, tem o aprendizado prático de quem toca uma propriedade de 5.600 hectares na região de San Alberto. Segundo Júnior, alguns produtores até conseguem colher 120 ou mais sacas por alqueire, recorrendo à rotação de produtos químicos e aplicações precoces de fungicidas na lavoura, para prevenir a ferrugem asiática. “Mas se pegar de três a cinco anos no mesmo talhão, e fizer soja, depois soja safrinha, um trigo e uma aveia, e daí de novo soja e soja safrinha, o desempenho não se compara com quem fez rotação com milho ou cobertura. Com certeza, quem não fez safrinha de soja colhe mais”, salienta Júnior.
Canto da sereia
As oscilações do preço do milho, no entanto, acabam fazendo do cultivo da soja segunda safra uma tentação para muitos produtores do Paraguai, devido ao rápido giro proporcionado pela leguminosa, que tem liquidez no mercado em qualquer época do ano.
João Antonio da Silva, que cultiva 800 hectares no município de Corpus Christi, não vê problemas no plantio de soja sobre soja: “Eu planto a safrinha cedo e já faço a colheita em maio. Ainda ficam uns cinco meses de janela sem planta de soja na lavoura”. Outro que segue o mesmo raciocínio é Robinson Rolhing, radicado em Maracaju. Ele diz que a semente de milho é cara e que o mercado do grão no Paraguai nos últimos anos “está complicado”. “Eu faço metade da segunda safra de soja e metade de milho”, afirma Rolhing, que pretende seguir “experimentando”.
O tema divide os produtores do Paraguai, a maioria brasileiros ou filhos de brasileiros. Mauro José Becker, também de Maracaju, assegura que a insistência de plantar soja safrinha tem seu preço, e isso fica visível nas lavouras da região. “Veja meus vizinhos, pode olhar por aí. Tem muita área manchada, a soja safrinha traz muita doença. É prejuízo, arrebenta muito com a terra. Se não cuidarmos do bem maior que é a terra, o que vamos fazer daqui a cinco ou dez anos? Eu não gosto da soja safrinha”, enfatiza.
O fato é que o gasto com fungicidas para controlar a ferrugem da soja no Paraguai é cada vez maior, assim como o número de aplicações. Enquanto em 2010 as despesas com fungicida estavam em 15% do custeio, hoje elas saltaram para 28%, ou, em termos financeiros, de 59 dólares por hectare para 117 dólares por hectare, segundo levantamento da Agrotec. E os produtores já têm que entrar quatro vezes na lavoura com pulverização para combater o fungo.
Fica a incógnita de saber até quando os agricultores que se arriscam na segunda safra de soja vão conseguir driblar a ferrugem asiática, arcando com uma conta mais cara de fungicidas e o empobrecimento do perfil do solo. “Por enquanto está dando certo, nos dois últimos anos a soja rendeu melhor que o milho”, assegura Robinson Rolhing.
A prática, no entanto, podem acabar por força da lei. Os próprios agricultores discutem, com frequência cada vez maior, a necessidade de criar um cerco mais efetivo contra a ferrugem asiática. “Creio que no Paraguai é necessário ter o vazio sanitário que já existe no Brasil. Se não a ferrugem não tem fim, ela fica por aí, porque enquanto a gente está colhendo tem outros plantando soja. Precisamos acabar com esse ciclo da ferrugem para tentar diminuir a resistência da doença”, defende Bianchet Júnior.
Se depender da experiência do produtor José Peter, do início desta reportagem, a soja safrinha tem os dias contados. “Fui plantador de soja safrinha, ganhei dinheiro com soja safrinha, mas hoje não aconselho. Com certeza deu mais prejuízo do que lucro”, conclui.
Por enquanto, sem a proibição oficial, alguns produtores do Paraguai contrariam as recomendações agronômicas por conta e risco. Alto risco.
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