A guerra da Ucrânia está cobrando seu preço nos custos da próxima safra brasileira de verão. Desde a crise financeira internacional de 2008, os produtores não pagavam tão caro por fertilizantes essenciais ao cultivo de grãos. Ao estourar o conflito, o cloreto de potássio, mais crítico para a produção de soja, chegou a quadruplicar o preço, encostando em 1.200 dólares a tonelada, contra uma média anterior de 300 dólares. Hoje, o custo segue elevado – 680 dólares/tonelada – mas com viés de baixa, porque os fluxos de exportação da região do Mar Negro se mantiveram, apesar dos sobressaltos.
O que pode ter efeito pior do que uma guerra para as cadeias produtivas? No caso do Brasil, que não está envolvido diretamente no conflito, há gargalos com custos mais duradouros, assegura André Pessôa, sócio-diretor da Agroconsult. “Fertilizante no Brasil tem dois problemas. Tributação e logística. Os fornecedores têm matéria-prima para ser enviada. O problema está no desembaraço logístico das importações. Chegamos a ter fila de 50 dias para desembarcar um navio. A infraestrutura para recebimento de fertilizantes mudou muito pouco nos últimos anos. De 2018 para 2021, aumentamos o volume importado em mais de 10 milhões de toneladas, mas basicamente mantivemos a mesma logística”, alerta.
Os impostos completam o gargalo. Para criar isonomia, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) decidiu trazer de volta a taxação sobre o fertilizante importado. Uma alíquota progressiva foi implantada a partir deste ano, começando em 1% e devendo chegar a 4% em 2025. “Tinha outra forma de gerar isonomia, que era tirar o tributo do local. O que foi feito está na direção errada. Quem paga isso, no final do dia, é o agricultor”, diz Pessôa.
Necessidade de importar adubo só deve aumentar
Se não forem atacados, esses gargalos que só aumentarão, visto que a agricultura brasileira deve continuar crescendo e demandando insumos. “O foco deveria ser nos investimentos maciços para melhorar as condições de recebimento de fertilizantes, uma vez que o Brasil foi ontem, e será hoje e amanhã, dependente das importações. É muito louvável fazer esforço para aumentar a produção local, mas acho simplista demais a ideia de que vamos poder suprir 50% do consumo de fertilizantes no futuro”, destaca o analista. Ele se refere ao Plano Nacional de Fertilizantes (PNF), de 11 de março de 2022, que traçou diretrizes e ações para converter o cenário atual de dependência de cerca de 85% da importação de fertilizantes para 50% até 2050.
“Temos uma rocha fosfática com grandes desvantagens em relação à rocha sedimentar do norte da África. A nossa é de origem ígnea, e para extrair o fósforo precisa de mais energia. Também precisamos usar muito gás para a indústria de nitrogenados a um custo que não é competitivo. Nosso potássio está lá na Amazônia numa condição logística desfavorável para tirar do leito do Rio Madeira, com toda essa questão ambiental. O custo de extração é muito alto quando comparado às alternativas, como Canadá ou Israel. Sempre vamos ser pouco competitivos nos fertilizantes, será muito difícil ter 50% de suprimento com produção local”, assinala.
Governo adota "diplomacia dos insumos"
Da parte do governo, além do plano para diminuir a dependência acentuada dos adubos importados, existe uma ofensiva permanente chamada de "Diplomacia dos Insumos". A estratégia é manter diálogo estreito com os fornecedores atuais e prospectar novas origens - de olho em dificuldades com a matéria-prima da Rússia e da Bielorússia. Começou com viagens a países produtores de adubos pela ex-ministra Tereza Cristina e tem seguido com o atual ministro da Agricultura, Marcos Montes. "Há uma equipe composta por integrantes do governo e setor privado para monitorar eventuais problemas a fim de resolvê-los de maneira imediata, sem comprometer a demanda brasileira. Isso inclui o monitoramento dos embarques e os fluxos logísticos internacionais. Até o momento, estamos recebendo os volumes esperados", diz nota do Ministério da Agricultura.
O ministério lembra que a compra efetiva de fertilizantes é uma operação comercial, realizada pela iniciativa privada, e os esforços do governo são no sentido de "trabalhar os mercados a fim de criar um ambiente que favoreça as relações comerciais entre os privados".
Disputa por adubo fica acirrada entre portos
No desafio logístico, os portos brasileiros têm se movimentado para tentar superar seus gargalos. Paranaguá e Santos recebem quase 50% dos fertilizantes importados pelo país. “Essa é uma carga disputada por todos os portos. Estamos a 400 km do Porto de Santos, ou quatro horas de navegação, e a duas horas de navegação dos portos de Santa Catarina. Eles estão com a mão levantada dizendo: utilizem nossas estruturas também, vocês não precisam só ficar no Paraná. Então, temos um ambiente concorrencial interportos que nos estimula a prover investimentos e melhorar cada vez mais. Não é uma carga que está aqui porque ama o Paraná, mas por que há uma opção logística, tanto de qualidade de operação como em termos econômicos”, sublinha Luiz Fernando Garcia da Silva, diretor-presidente da Administração dos Portos de Paranaguá e Antonina (APPA).
Em Paranaguá, o setor privado investe R$ 100 milhões em esteiras para interligar o cais aos armazéns de fertilizantes da retaguarda, tirando os caminhões da operação de curtíssimo trajeto. Mais 12 meses de obras e a previsão é de que a capacidade operacional suba de 8 mil toneladas/dia de descarga de navio para 12 ou 13 mil toneladas/dia. Os três berços dedicados exclusivamente a fertilizantes vão operar por esteiras. Em longo prazo, a construção da Nova Ferroeste – ligando Maracaju (MS) a Paranaguá – deverá tornar a ferrovia o principal modal para escoamento de adubo do porto paranaense para o interior do País.
Problema envolve armazenagem na retaguarda
Quanto às filas de navios, Garcia da Silva diz que o problema não tem sido na recepção portuária. Mesmo no auge da crise da guerra. “Os agricultores queriam o produto no Brasil, precisavam ter essa garantia. E nós estávamos preparados. Quem não estava preparado era a retaguarda. E olha que temos a maior capacidade de retaguarda do país, são 3,5 milhões de toneladas de capacidade estática. É muita coisa. Só que nunca o setor foi tão demandado”, explica. “Nós dissemos ‘venham, atraquem seus navios’. Mas eles recusavam a atracação porque não tinham como colocar os produtos nos armazéns de retaguarda”, acrescenta.
A estrutura também não teria dado conta porque a guerra virou a logística de cabeça para baixo. Normalmente os fertilizantes ocupam esses armazéns de retaguarda por um período curto, de giro rápido. Mas nesse ano o produtor acelerou as compras no primeiro semestre para só aplicar no segundo. “Os armazéns começaram a ficar cheios, chegamos a ter de 30 a 40 navios boiando, com algum tempo de espera. Mas o porto tinha condições de atracação”, afirma. A forte demanda levou a operadora Fortesolo a anunciar a ampliação de seus armazéns em 45%, passando das atuais 227 mil toneladas para 327 mil toneladas.
Santos está ampliando estrutura para fertilizantes
No Porto de Santos, o crescimento anual das importações de fertilizantes tem se mantido em dois dígitos desde 2016. No ano passado, o salto foi de 53%, saindo de 6,6 milhões de toneladas para 10,1 milhões, e se aproximando de Paranaguá, líder, com 12 milhões de toneladas. Em 2022, até agosto, as cargas de adubo em Santos já aumentaram 13,1%.
Na disputa pelas cargas, o porto paulista agrega em outubro as operações de uma área concedida à Hidrovias do Brasil, com capacidade inicial de operar 1,5 milhão de toneladas por ano. Outra área, no bairro de Outeirinhos, também destinada a adubos, está sendo preparada para leilão e deve receber investimentos de R$ 659 milhões.
Em parceria com a startup Logshare, a autoridade portuária trabalha em uma plataforma digital para agilizar a distribuição dos fretes de retorno, diminuindo a ociosidade de caminhões que rodam vazios. No Brasil, 38% dos caminhões retornam sem carga às suas bases, o que representa um desperdício de R$ 35 bilhões por ano. Só no Porto de Santos, circulam diariamente sete mil caminhões. Outra startup, a Navalport, vai implantar nos próximos seis meses uma plataforma para otimizar a programação de atracação de navios.
O porto prepara ainda um edital de gestão da malha ferroviária interna, por 35 anos, a partir de 2025. Quem vencer a disputa terá de realizar investimentos de R$ 891 milhões, a maior parte nos primeiros cinco anos. “Hoje, a capacidade ferroviária dentro do complexo portuário é de 50 milhões de toneladas por ano e está próximo da saturação, com 94% de utilização. A meta é chegar a 115 milhões de toneladas/ano para escoar o volume oriundo das ferrovias que deságuam no Porto de Santos (MRS, Rumo e VLI)”, diz nota da Santos Port Authority (SPA).
Pior do que pagar caro, seria não ter adubo
Analistas do mercado de commodities agrícolas apontam que o Brasil teve o azar de estar no balcão de compras de fertilizantes quando eclodiu a guerra na Ucrânia, e pagou caro pelas incertezas nas primeiras semanas e meses. Na lógica dos produtores, pior do que pagar caro seria não ter o fertilizante. Assim, nunca o país importou tanto adubo como no primeiro semestre deste ano. De janeiro a agosto, foram 27,4 milhões de toneladas contra 25 milhões de toneladas no mesmo período do ano anterior, que já tinha sido recorde.
Se em 2021 os fertilizantes respondiam por 22% dos custos de uma lavoura de soja no Sul do país, na safra atual essa participação saltou para 32%. No ano passado, a média de investimento em adubo, por hectare, foi de R$ 1.300,00, o que se elevou agora para R$ 2.100,00, alta de 60%.
O que mantém os produtores apostando alto na próxima safra – deve haver aumento de 3% área – é o bom preço das commodities agrícolas, que atenuaram parcialmente a disparada dos fertilizantes. Mesmo assim, a operação de barter (troca) de grãos por adubos ficou 40% mais cara. Atualmente, o produtor brasileiro precisa de mais sacas de soja e de milho para comprar a mesma quantidade de fertilizante aplicada num hectare de terra. Nos cálculos da consultoria StoneX, em uma fazenda modelo no Paraná, a relação de troca cresceu de 8 sacas de soja na temporada passada para 11,3 sacas na safra 22/23. Para o milho, a relação saiu de 14 sacas de 60kg em 2021/22, para 19,6 sacas na safra atual.
Não há problemas de oferta de adubo, mas de custo
Apesar de nunca terem comprado tanto adubo, os produtores vão segurar parte do estoque e devem reduzir as aplicações neste ciclo em torno de 7,2%, segundo estimativa da StoneX. A estratégia dos agricultores é economizar naqueles talhões de solo em que existe uma “poupança” acumulada por adubações ao longo de várias safras. “No início do ano, se falava até em não aplicar. No primeiro trimestre, quando saiu a guerra, o mercado ficou agitado e não sabíamos se haveria adubo. Só que as importações vieram forte e a gente está até com estoque nos armazéns, mas com preço elevado. Não temos mais um problema de oferta, mas de custo. Esses compradores compraram em valores muito elevados. Os preços internacionais já caíram, estão num patamar próximo ao nível pré-guerra, mas ainda são muito altos”, avalia Luigi Bezzon, analista da StoneX.
Assim, o risco que mais incomoda o agricultor hoje não é mais o de faltar insumos. “Disponibilidade de fertilizantes tem. A questão agora é o poder de compra, a relação de troca ficou muito elevada e desestimula o produtor. Aumentam os custos e aumentam os riscos financeiros, em caso de frustração de safra”, pondera Jefferson Souza, analista da Agrinvest.
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