São duas visões de mundo em conflito. De um lado, Alexandre Conceição, da direção nacional do Movimento dos Sem-Terra (MST), é categórico contra a entrega de títulos de propriedade individual aos assentados: “O governo tenta empurrar goela abaixo um título privado. Com seis meses de titulação a terra pode ser vendida e novamente concentrada pelo latifúndio. Nosso princípio é de que a terra conquistada jamais pode ser vendida. Então, quando há um assentado que se atreve a querer vender a terra, nós vamos lá e denunciamos”.
Do outro lado, o presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, defende a política de titulação de lotes dos assentamentos, que o presidente Jair Bolsonaro já comparou a uma alforria. Em três anos e meio de governo foram concedidos 353 mil títulos, mais que em todo o período 2000-2016: “No Brasil existe livre iniciativa. As pessoas que foram assentadas em nenhum momento contavam que ficariam como propriedade coletiva ou do Estado. A posse coletiva pode haver em situações específicas como, por exemplo, de extrativismo. Mas isso é exceção, e não a regra”.
Entregar documentos titulatórios para os assentados, aponta o presidente do Incra, faz parte das diretrizes do Estatuto da Terra. "Isso está previsto, não é invenção dessa gestão. Inclui a definição de domínio, a titulação definitiva e a inserção dessas famílias nas políticas de agricultura familiar. Isso é o desfecho do processo. O problema é que até 2018 o único foco era na implantação de assentamentos".
Lei tem "trava" que impede retorno da terra ao latifúndio
Apesar da alegação do MST de que a titulação dos assentados pode culminar no rápido retorno da terra aos latifundiários, existe um impedimento legal para isso. É o que diz o parágrafo 1º do Artigo 22 da Lei 13.465/2017: “Após transcorrido o prazo de inegociabilidade de dez anos, o imóvel objeto de título translativo de domínio somente poderá ser alienado se a nova área titulada não vier a integrar imóvel rural com área superior a quatro módulos fiscais”.
“Há esta trava, então, do ponto de vista formal e legal, a reconcentração não é possível”, assegura Richard Torsiano, ex-diretor do Incra, especialista em governança e administração de terras. Contra o risco de um “jeitinho” para driblar a lei, através de contratos de gaveta e uso de “laranjas”, Torsiano recomenda atenção aos cartórios e às corregedorias, para incluir nos títulos uma cláusula clara contra a reconcentração.
Inconformado com aceleração na entrega de títulos individuais de propriedade aos assentados, o MST convocou coletiva de imprensa no fim de maio anunciando que acionaria o Supremo Tribunal Federal, a Procuradoria-Geral da República e o Tribunal de Contas da União. A queixa é que a política de titulações estaria indo contra a Constituição, por não privilegiar o documento conhecido como Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) – uma das opções do regramento jurídico, e a preferida do MST – que, na prática, mantêm a propriedade coletiva da terra, com os assentados subordinados ao comando dos movimentos sociais. Pelo CDRU, os produtores podem explorar a terra a partir de um contrato com o poder público, mas a propriedade permanece sendo do Estado.
Movimentos sociais não querem perder o controle dos assentamentos
No atual governo, dos 353.054 documentos titulatórios emitidos de 2019 a 2022, 60.609 foram títulos definitivos (TD + CDRU) e 292.445 foram Contratos de Concessão de Uso (CCU). Esses últimos transferem o imóvel rural ao assentado de maneira provisória, o que já garante a posse individual da terra e o acesso aos créditos oferecidos pelo Incra e a outros programas de apoio à agricultura familiar, sem a necessidade de intermediários ou atravessadores. Segundo o Incra, o que impede um aumento maior na emissão de documentos definitivos é o fato de que, em 2019, apenas 7,5% de todos os assentamentos estavam em condições de serem titulados. Para regularizar os assentamentos, o órgão tem buscado soluções na via judicial, nos trabalhos de georreferenciamento e nas supervisões ocupacionais.
“Na verdade, (os movimentos sociais) nunca quiseram que se titulassem as pessoas, o que, por si, tem uma lógica da manutenção da dependência dessas pessoas. A qualquer momento esses não titulados poderiam ser retirados de seus lotes, às vezes com violência. E na hora em que você titula, esse poder deixa de existir. A pessoa passa efetivamente a ser dona daquele espaço. Os movimentos sociais nunca quiseram perder o controle sobre o território e também a capacidade de interferir, ao longo do tempo, sobre quem estaria efetivamente colocado naquele território. E a capacidade deles de manter a situação fica muito prejudicada no momento em que o assentado passa a ser dono da terra”, diz o presidente do Incra.
Recebimento de título é comparado a alforria
O debate em torno da velocidade e da forma de concessão dos títulos, em ano eleitoral, naturalmente não se limita ao campo técnico ou administrativo, mas envolve um elevado componente político. Na prática, ao certificar a propriedade da terra com títulos individuais, o governo Bolsonaro acaba erodindo a base de militantes dos partidos de esquerda e de movimentos sociais como o MST. Nas glebas de 9.427 assentamentos espalhados pelo país vivem 968 mil famílias.
“Desde 2019, a gente tem ido a vários assentamentos, e uma coisa que não muda é o momento em que você entrega o título definitivo ou provisório. As pessoas têm as reações mais incríveis, elas dizem ‘isso aqui é minha carta de alforria’, a palavra libertação se repete em qualquer região do país”, relata Geraldo Melo Filho. “São famílias que estão produzindo, que sonham com essa situação e, na prática, descobriram que o aliado só contou metade da história. ‘Você vai entrar na terra, mas ela nunca vai ser sua’. Por isso a frustração dos assentados, por isso a sensação de libertação”, completa.
Em 3,5 anos, mais títulos emitidos do que em 14 anos
As viagens do presidente Bolsonaro pelo país afora, tirando foto com ex-sem-terras em cerimônias de titulações, têm causado irritação às lideranças do MST. “O governo espalha essa fake news, que é o título provisório. Ele engana as famílias, e muitos acham que o título é definitivo, mas quando vai ao cartório, não tem valor. O único valor é para o Incra pode seguir o processo de consolidação da reforma agrária. O governo Bolsonaro faz mais essa fake news, mais essa mentira da reforma agrária, transformando o Incra numa grande imobiliária”, disse Alexandre Conceição, durante entrevista coletiva do MST.
O Incra rebate. Além dos 292 mil Contratos de Concessão de Uso, primeiro passo na transição para a propriedade individual, o atual governo emitiu mais documentos titulatórios definitivos em assentamentos no período de 3 anos e meio do que os governos anteriores emitiram em 14 anos (veja infográfico abaixo).
A pregação de “alforria” e liberdade aos assentados parece incomodar o MST porque, de fato, acaba encontrando eco entre os novos titulados. É o caso do produtor Marcos Andreides Nascimento Dias, 39, do assentamento Caritá, no município de Jeremoabo, na Bahia. “Esse título é o sonho de todos os assentados. Antes, os títulos eram emitidos de forma coletiva e fazia com que a gente ficasse preso a essas pessoas que fazem frente a esses órgãos, a essas classes. Ficava dependente pelo resto da vida. Era uma falsa sensação de liberdade. A gente continuava preso a eles, e tinha que responder assim que tivesse um chamado dos coordenadores”, relata Dias.
Ele ficou 23 anos como assentado e hoje prefere ser chamado de produtor, comandando a Fazenda Vitória, de 42 hectares, devidamente registrada em cartório. O acampamento dele não era vinculado ao MST, mas à Pastoral Rural. O fim da propriedade coletiva enfraqueceu o elo entre os antigos assentados? “Muito pelo contrário. Antes é que dava muito conflito, você trabalhava numa área que não era determinada como sua, e daí um vizinho ou outra pessoa poderia requerer a área, porque era produtiva. Agora tem mais união, porque você sabe que pode na trabalhar na terra, mas em parceria com seu vizinho, cada um em sua área. Aqui em nossa região, na época da estiagem a seca judiou um pouco dos nossos animais. Nós temos vizinhos que tem aguadas melhores, que têm poço artesiano, e um ajuda o outro”.
Em 2016, TCU mandou parar tudo devido a irregularidades
Em outra frente, o MST acusa o atual governo de interromper a aquisição de novas áreas para reforma agrária. Essa interrupção, contudo, é anterior, de 2016, e foi determinada judicialmente após fiscalizações do TCU, que encontrou irregularidades envolvendo 578 mil beneficiários do programa, entre os quais havia empresários, políticos e pessoas mortas.
Segundo a atual direção do Incra, foi necessário fazer um “resgate da reforma agrária, que estava estática, focada apenas na inclusão de famílias numa longa lista de espera, sem critérios de seleção transparentes”. Atualmente, a seleção das famílias foi retomada e é feita por editais públicos, com o acompanhamento do TCU.
“Nós abrimos duas frentes de trabalho para resgatar as pessoas que estivessem corretas para dentro do processo e aplicar sobre elas a titulação provisória ou definitiva, se fosse o caso, com uma série de visitas. Desde então, fizemos 150 mil supervisões ocupacionais no campo e 53 mil famílias foram desbloqueadas”, diz Geraldo Melo Filho.
A segunda frente, segundo o presidente do Incra, foi atuar em conjunto com o TCU para evitar que os erros se repetissem. Atualmente estão em curso 32 editais de seleção de famílias, em 16 estados diferentes, e outros 88 editais ainda vão ser abertos em 2022. “Esse governo não parou a reforma agrária, na verdade, voltou a fazer. O que não fez foi desapropriação de novas áreas, tendo em vista que já dispõe de áreas. Antes, a seleção de famílias era feita de maneira tal que as pessoas eram assentadas sem nenhum perfil de produção. Uma parte, sim, são pessoas que ficam, produzem, têm sua renda vinda da terra, sonham com a titulação e não vão embora. Mas as pessoas que você coloca na terra e não têm perfil, elas vão embora naturalmente. E o índice de evasão de 2003 para cá mais do que dobrou. Por que a seleção foi feita de qualquer forma”, relata o dirigente do Incra.
Governos anteriores deixaram conta de R$ 6 bilhões em desapropriações não pagas
Outra crítica recorrente dos movimentos sociais é contra um suposto sucateamento do Incra, que estaria com orçamento cada vez menor para adquirir novas áreas. Melo Filho observa que haveria mais dinheiro não fossem os R$ 6 bilhões que governo atual já teve de pagar em precatórios de administrações passadas, que desapropriaram áreas, não indenizaram e deixaram a questão se judicializar. O montante seria suficiente para comprar 620 mil hectares de terra.
Em governos anteriores, de 2013 a 2018, outros R$ 3 bilhões foram devolvidos ao Tesouro porque o Incra não levou o crédito aos assentados. “Não havia sequer normativos para retomada da construção de casas nos assentamentos. Nós regulamentamos o crédito habitação e paramos de devolver recursos. Já aplicamos R$ 693 milhões de créditos da reforma agrária para mais de 84 mil contratos de famílias assentadas. E o dinheiro agora vai na conta deles, não tem mais intermediário para receber o recurso”, destaca.
Para Richard Torsiano, que é mestre em Cadastro e Ordenamento Territorial pela Universidade de Jaén, na Espanha, uma forma de diminuir a polêmica em torno das titulações seria dar mais voz aos próprios assentados. “O Incra poderia ir nos assentamentos, fazer audiência pública e ouvir os assentados. Qual caminho a comunidade prefere, quer continuar com o título de uso, em que o Estado é proprietário, ou quer o título de domínio?”.
“Não sou aderente a uma narrativa radical, nem de um lado nem de outro. Tem um caminho de conciliação, pelo qual você pode desenvolver comunidades resilientes e autônomas. Mas também não dá para transformar o Incra numa imobiliária, sair de avião distribuindo documentos titulatórios. Em algum momento terá de ser feito levantamento para ver se os critérios foram observados”, conclui.
Desde os anos 60, o Brasil já destinou 87 milhões de hectares de suas terras à reforma agrária. Desse montante, 77 milhões de hectares foram concedidos a partir de 1995, com grande volume nos governos FHC e Lula. Como comparação, a área de cultivo de grãos do país – commodities como soja, trigo e milho –, é de 49,9 milhões de hectares. A reforma agrária brasileira já distribuiu terras equivalentes à soma dos territórios de Espanha e Alemanha.
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