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“Dizem que temos que plantar só para comer”: índios reagem à proibição de transgênicos
Indígenas brasileiros querem ter o direito de semear transgênicos e utilizar maquinários modernos, como qualquer agricultor.| Foto: Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo

Se você é agricultor no Brasil, não importa em que bioma, está liberado para cultivar sementes transgênicas. Não há proibição, mesmo que sua fazenda fique ao lado de uma área preservada de Mata Atlântica ou Floresta Amazônica. No entanto, se além de agricultor você for também indígena, o plantio de sementes geneticamente modificadas em qualquer parte de seu território se torna uma violação da lei, passível de multa e destruição das lavouras.

É o que está escrito na Lei 11.460/2007, aprovada no segundo governo Lula. À época, a ministra do Meio Ambiente era também a atual titular da pasta, Marina Silva.

Pois foi com base nessa normativa que, no início do mês, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) aplicou multas de R$ 404 mil e embargos a 290 hectares de áreas cultivadas com sementes geneticamente modificadas em Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.

A blitz ocorreu por determinação do Ministério Público Federal (MPF). E teve apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

“A Funai diz que nós temos que plantar só para comer, só horta em roda das casas e mais nada. E deixar o restante das terras virar mato. É para plantar agrofloresta, porque é isso que o governo quer. O índio não pode crescer. É uma discriminação muito grande que a gente está enfrentando”, queixa-se o cacique Osmar Barbosa, da tribo Kaigang da Terra Indígena Xapecó, localizada entre os municípios de Ipuaçu e Entre Rios, em Santa Catarina.

Barbosa relata que 150 hectares cultivados com sementes geneticamente modificadas estão embargados e com as lavouras destinadas à destruição.

Criminalização da agricultura transgênica

O descontentamento com a lei mais dura apenas para os indígenas ecoa também a dois mil quilômetros de distância dos Kaigang catarinenses, em Campo Novo do Parecis (MT). Lá são os índios da tribo Paresí (ou parecis), pioneiros na agricultura comercial, que se rebelam contra a coexistência de duas leis. Uma para o “homem branco” e outra para os nativos.

“Fizeram nossa atividade se tornar criminosa, sendo que somos iguais perante a lei no Brasil”, reclama Arnaldo Zunizakae. Arnaldo é líder dos índios agricultores que cultivam 20 mil hectares de grãos, enquanto preservam 1,3 milhão de hectares de matas nativas.

Semanas atrás, uma comitiva de catarinenses Kaingang tentou audiência com dirigentes da Funai, em Brasília, para contestar a proibição aos transgênicos, mas não foi recebida. O mesmo grupo participou de reunião com parlamentares da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), quando pediu apoio à aprovação do Projeto de Lei 4297/24, da deputada Carol de Toni (PL-SC), que autoriza o cultivo de sementes transgênicas em áreas indígenas.

Ouvida pela Gazeta do Povo, a deputada não vê sentido na manutenção da proibição discriminatória a uma parcela da população brasileira. “Se as sementes geneticamente modificadas fossem comprovadamente prejudiciais ao meio ambiente e à biodiversidade, o que não é o caso, a lógica seria proibir seu uso de forma ampla e irrestrita. Fazendas com reservas legais, localizadas ao lado de florestas nacionais, podem plantar transgênicos sem qualquer restrição, enquanto terras indígenas próximas são impedidas de fazer o mesmo. Isso não faz o menor sentido”, enfatiza.

Cacique Osmar Barbosa em reunião da FPA
Cacique Osmar Barbosa e deputada Carol de Toni durante reunião da FPA, em Brasília| João Paulo Véras / Divulgação FPA

Biossegurança vale para índios e não-índios

Há 20 anos, quando foi aprovada a lei antitransgênicos para os índios, ambientalistas e políticos haviam criado um clima de desconfiança quanto à nova tecnologia. Atualmente, a ciência já desmistificou o assunto.

Quem coloca as coisas numa nova perspectiva é o biólogo Leandro Astarita, presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). A CTNBio é responsável pela política nacional e normas técnicas envolvendo os organismos geneticamente modificados.

“Em 2007 era tudo muito novo, desconfiavam, falavam mal, que a planta transgênica causava câncer. Falavam que causava leucemia, que o milho tinha o vírus do HIV, que iriam surgir pragas transgênicas. Mas em termos de biossegurança, o que nós avaliamos para o ser humano e para o meio ambiente vale para a terra indígena e para a terra que não é indígena. As plantas transgênicas não causam danos à pessoa índia, e a gente sabe que também não causam danos ao meio ambiente”, assegura.

Três décadas de plantações transgênicas no país

Os transgênicos chegaram ao Brasil há mais de três décadas. No início dos anos 1990, produtores gaúchos começaram a contrabandear sementes de soja modificada da Argentina, a “Soja Maradona”, resistente ao herbicida glifosato. Em vez de várias pulverizações ao longo do ciclo produtivo, para diferentes tipos de pragas, uma única aplicação de glifosato matava todas as ervas daninhas. E poupava a planta de soja.

Com a redução drástica das pulverizações, diminuíam também os gastos com água, diesel e mão de obra. Os produtores brasileiros não entendiam por que a tecnologia era proibida aqui, enquanto se espalhava entre os principais concorrentes, como americanos e argentinos.

O governo mandou fiscais e policiais federais para cima dos agricultores que “experimentavam” os grãos geneticamente modificados. Houve prisões, multas e destruição de plantações. Somente em 2003, quando 12% das lavouras do país já utilizavam a soja transgênica, o uso da biotecnologia foi aprovado e regulamentado.

Cultivo de transgênicos
Na aparência, cultivo de transgênico não se distingue do convencional| Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo

Planta transgênica não tem capacidade de se transformar em "praga"

“Em 25 anos, nós observamos que não houve nenhum impacto na questão ambiental pelas plantas transgênicas. Elas dificilmente transferem genes para plantas silvestres e, mesmo na hipótese de ocorrer essa transferência, isso não gera nenhum ganho para a planta silvestre. Ou seja, ela continua a mesma planta, no mesmo lugar. Assim como ela naturalmente recebe genes de outras plantas silvestres que são parentes dela, não causa efeito nenhum”, afirma o dirigente da CTNBio.

Astarita observa ainda que grande parte das plantas transgênicas cultivadas no país são exóticas, com origem na Europa ou na Ásia. E têm incompatibilidade sexual com outras plantas nativas. “Uma planta transgênica, seja soja, milho, algodão ou feijão, não tem capacidade de se transformar em uma praga, uma planta que vai invadir o ambiente natural”, acrescenta.

Em relação a eventuais riscos à saúde humana ou dos animais, o pesquisador também tranquiliza: “A partir de estudos de hipóteses de risco, de toxidade, expressão da proteína, alergenecidade, do impacto que pode haver, a gente tem uma segurança muito grande de que o risco da liberação comercial da planta geneticamente modificada é desprezível”.

Proibição dos transgênicos: "Onde estão as vítimas?"

Outro cientista que já presidiu a CTNBio, Luiz Antonio Barreto de Castro, pesquisador da Embrapa que morreu no ano passado, também pregava a prevalência da ciência sobre os tabus e ideologias voltados contra os transgênicos. E já em 2004 questionava as motivações contra tecnologia: “A que interesses servem essas campanhas contrárias aos transgênicos? Onde estão as vítimas dos transgênicos? Por que negar ao agricultor brasileiro o que não foi negado aos agricultores dos Estados Unidos, do Canadá, da Argentina, da Austrália e da China?”.

Na avaliação de Castro, atacar os transgênicos só poderia interessar a quem queria vender mais defensivos químicos e aos competidores do Brasil no mercado de commodities alimentares.

No livro Agricultura, fatos e mitos, os pesquisadores da Embrapa Décio Luiz Gazzoni e Maria Thereza Macedo Pedroso, junto com o ex-deputado federal Xico Graziano, mostram que o barulho feito contra os transgênicos na agricultura não se repete na medicina. Em 1982, bem antes da polêmica da soja Round-Up Ready da Monsanto, a insulina foi o primeiro produto derivado de organismo transgênico.

Insulina transgênica salvou milhões de vidas

“Produzida pela bactéria Escherichia coli, geneticamente modificada com a introdução de um gene humano, a produção da insulina recombinante substituiu o antigo processo, que extraía a insulina de bois e porcos. Essa tecnologia antiga provocava reações alérgicas nos diabéticos. A engenharia genética acabou com o problema”, sublinham os pesquisadores.

Por outro lado, antes do advento da insulina, nas décadas de 1970 e 1980 o diabetes era praticamente uma condenação à morte. “Se a gente não tivesse feito a transformação genética que expressasse o gene da insulina humana, provavelmente teríamos uma quantidade gigantesca de pessoas diabéticas que não conseguiriam viver. Estariam já mortas e condenadas. Quando a gente observa as vacinas da Covid 19, a gente conseguiu resolver o problema também graças à tecnologia e à biologia moderna”, diz Astarita.

Outros medicamentos transgênicos incluem o fator VII de coagulação do sangue, usado no tratamento de hemofílicos, o hormônio de crescimento humano e ainda a vacina contra hepatite B – todos produzidos a partir de um organismo geneticamente modificado.

Proibição dos transgênicos inviabiliza cultivos no Sul

De volta à agricultura, enquanto a proibição ao cultivo de transgênicos em terras indígenas permanecer, não há como falar em competividade das colheitas das aldeias. Com o aperto da fiscalização federal, o cacique Osmar Barbosa, de Santa Catarina, diz que a atual safra foi praticamente perdida.

“O pessoal ficou com medo de plantar transgênico e não plantou, porque o custo da lavoura convencional é bem mais pesado, e a produção é baixa. Eles dizem que o transgênico precisa de mais veneno para cuidar, mas nós que já trabalhamos com os dois, sabemos que o convencional pede mais que o dobro de tratamento com veneno do que o transgênico”, arremata.

Tradicionalmente, boa parte da fobia aos produtos geneticamente modificados vem da Europa. Na Alemanha, berço de gigantes da biotecnologia como Bayer, BASF e KWS, não se pode cultivar sementes transgênicas. Existe autorização para campos de teste, mas nem isso os alemães têm feito, após vândalos seguidamente destruírem as plantações de OGMs. Os centros de pesquisa migraram, em sua maioria, para os Estados Unidos.

Apoiados pela ciência, transgênicos têm vencido mitos e obstáculos

Paradoxalmente, a Alemanha segue sendo um grande consumidor de OGMs. Importa anualmente perto de seis milhões de toneladas de soja e farelo transgênicos, para alimentação das criações animais, conforme dados do USDA, o departamento de agricultura dos EUA.

Como alento à reivindicação dos indígenas brasileiros, vale destacar a conclusão dos autores do livro Agricultura, fatos e mitos: “É um fato: a engenharia genética continua a receber oposição onde quer que seja introduzida. Da mesma forma, sua inegável expansão atesta outro fato: de que os produtos transgênicos têm conseguido vencer os obstáculos iniciais e se impõem progressivamente no mundo”.

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