É ponto pacífico na comunidade científica que uma alimentação balanceada, com ampla inclusão de frutas, legumes e cereais integrais, traz benefícios diretos à saúde. Já o que dizer do consumo dos alimentos processados? E os chamados ultraprocessados? Seria melhor se fossem simplesmente abolidos da mesa dos brasileiros?
O próprio conceito de ultraprocessado é questionado pela indústria e por pesquisadores da ciência dos alimentos. A crítica é de que, no afã de promover uma dieta mais saudável para a população, as autoridades do país embarcaram numa campanha difamatória e equivocada contra os alimentos industrializados. Tudo teria começado, de forma mais intensa, em 2009, por iniciativa do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), dentro da Universidade de São Paulo (USP).
A equipe liderada pelo médico Carlos Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da USP, elaborou um sistema de classificação dos alimentos chamado de NOVA, dividido em quatro categorias, conforme o nível de processamento:
Grupo 1, alimentos in natura ou minimamente processados;
Grupo 2, ingredientes culinários processados;
Grupo 3, alimentos processados;
Grupo 4, alimentos ultraprocessados.
Polêmica, classificação NOVA foi chancelada pelo governo
A classificação NOVA parte do pressuposto do pesquisador Carlos Monteiro de que, "quando se trata de saúde e nutrição, o problema não é a comida, nem os nutrientes, mas o processamento". Essa visão acabou sendo chancelada oficialmente pelo Ministério da Saúde, que a incorporou aos parâmetros do Guia Alimentar para a População Brasileira, em 2014, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
“Criaram uma classificação que o mundo inteiro contesta, a não ser onde tem ativismo, porque daí eles gostam. O problema está na difamação, sem embasamento técnico e científico adequado. Pela classificação NOVA, ultraprocessado é qualquer coisa que eles queiram chamar de ultraprocessado. Conseguiram implantar um negócio sem lógica, sem ciência, sem tecnologia”, reclama Luiz Madi, diretor institucional do Instituto de Tecnologia dos Alimentos (Ital), vinculado à Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo.
Um grupo de professores da própria USP, dos setores de Engenharia de Alimentos, Engenharia Química e Food Research Center (FoRC), já havia reagido aos supostos equívocos da classificação NOVA, em artigo publicado na Biblioteca Digital da Produção Intelectual da Universidade de São Paulo (BDPI). Um dos principais erros seria associar o termo ultraprocessado à quantidade de ingredientes (frequentemente cinco ou mais). Assim, alimentos minimamente processados podem acabar sendo rotulados equivocadamente como ultraprocessados apenas pelo número de ingredientes, como sucos mistos de frutas e hortaliças, saladas e vitaminas de frutas, mix de sementes e cereais.
Aditivos alimentares têm chancela da FAO e da OMS
Outro ponto criticado é a “demonização” dos aditivos (emulsificantes, antioxidantes, acidulantes, conservadores, etc) incorporados aos alimentos industrializados. Rodrigo Petrus, professor do Departamento de Engenharia de Alimentos da USP, campus Pirassununga, observa que esses compostos, muitos provenientes de outras fontes alimentícias, são utilizados em concentrações seguras à saúde humana, e buscam assegurar tanto a padronização da qualidade do produto final como sua segurança microbiológica. O controle e chancela dos aditivos é feito pelo Comitê de Aditivos Alimentares (JECFA), um órgão de assessoramento científico conjunto da Organização das Nações Unidas para os Alimentos (FAO) e da Organização Mundial de Saúde (OMS).
“São feitos testes para calcular a ingestão diária aceitável por quilo de peso corporal. Imagine a maior dose onde não houve um efeito adverso observado. Ela é dividida por dez. E para incorporar um grau ainda maior de segurança, se divide este fator por outros dez. Então, a dose que não produz um efeito adverso indesejável é dividida por 100, para poder chegar à dose final de uso. Existe muita cautela, muito cuidado na aprovação do aditivo, da molécula, e sobretudo na concentração que vai ser empregada”, afirma Petrus.
Os nomes técnicos dados aos aditivos são diferentes, mas com frequência se referem a velhos conhecidos das donas de casa. Assim como o ovo é usado para dar “liga” à maionese caseira, a indústria utiliza a lecitina da gema como emulsificante, para obter o mesmo efeito nos alimentos processados. O famoso colorau usado pelas donas de casa para melhorar a aparência dos pratos é a mesma norbixina dos rótulos industriais, extraída da planta urucum. Só muda o nome regulatório, mas acaba sendo alvo de crítica por suposto efeito de “maquiar” os alimentos.
Ultraprocessados vão da maionese aos cereais matinais
Na avaliação do presidente da Associação Brasileira da Indústria dos Alimentos (Abia), João Dornellas, que é também presidente do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de São Paulo, “a expressão ultraprocessado pode remeter a algo de terrorismo, de pecaminoso”. Na verdade, observa, entram nessa categoria produtos do dia a dia dos consumidores, como os cereais matinais, iogurtes de frutas, biscoitos, chocolates, pães de forma, vegetais em conserva de salmoura, atum enlatado, molho de tomate, refrigerantes, carnes secas e maionese, dentre outros.
“No pão de forma são os mesmos ingredientes do pão feito na padaria. Só porque foi feito numa indústria é classificado como ultraprocessado? O Ital analisou pão feito nas padarias de Campinas e comparou com o que é produzido pelas maiores marcas do Brasil. Conclusão: o pão da padaria tem o dobro de sódio, muito mais gordura e açúcar do que o ultraprocessado. E não estou falando mal do pão de padaria, que eu adoro. Mas se você me perguntar como cidadão, te digo que essa classificação não ajudou em nada, só criou confusão”, queixa-se.
O argumento dos engenheiros de alimentos é que sem o processamento não haveria segurança alimentar no planeta. “Se surgir evidência científica de que determinado aditivo, em determinada concentração, está relacionado a um tipo de doença, esse aditivo vai ser suspenso. O alimento industrializado é o único modo de salvaguardar e de combater a fome. Não tem outro modo, a não ser usando o alimento processado. Esse pessoal extremista, que fica chamando tudo de ultraprocessado, e não dá alternativa, deveria falar assim: como poderíamos melhorar nossa dieta utilizando adequadamente o alimento chamado entre aspas de industrializado? Por que se a pessoa diminuir demasiadamente os alimentos industrializados, ela vai começar a ficar subnutrida”, enfatiza Luiz Madi, do Ital.
Processamento pode acrescentar nutrientes
O pesquisador destaca, ainda, que o processamento pode enriquecer alguns alimentos com ferro, ácido fólico e fibras, por exemplo, assegurando que a população de mais baixa renda não fique desnutrida. O próprio deslocamento da produção, do âmbito doméstico para as fábricas, durante a revolução industrial, teria sido uma conquista ao ajudar a superar diversos problemas de saúde devido às péssimas condições de higiene e baixa qualidade dos alimentos, bem como de sua adulteração e falsificação.
O “lado bom” do Guia Alimentar estaria no incentivo a práticas alimentares saudáveis, com dietas ricas em fibras e produtos alimentícios com baixo teor de sal e açúcar. Os produtos indulgentes, que de maneira geral, são muito calóricos e pouco nutritivos, devem corretamente ser menos consumidos. “Todavia, o consumidor precisa ser corretamente informado de que saudabilidade não tem correlação com número de ingredientes, com intensidade ou número de processos e tampouco com o fato de o alimento ter sido processado em sua cozinha ou na planta de uma grande indústria”, destaca trecho do artigo assinado por um grupo da Engenharia de Alimentos da USP.
Para Madi, o guia alimentar tenta impor como regra um padrão de consumo inalcançável. “É péssimo porque esses conceitos foram introduzidos num guia oficial do Brasil por meio de uma ação de ativismo junto ao Ministério da Saúde. Essa turma age como se o brasileiro ganhasse como um professor da USP, R$ 40 mil por mês. É um ativismo elitista de pessoas que ganham bem e não olham o povo brasileiro como deveriam olhar”, assegura.
Ital lançou site para combater supostos mitos
Em reação à campanha contra os alimentos processados, o Ital lançou no início do mês o site www.alimentosindustrializados.com.br, com uma seção de mitos e fatos, que abordam questões como “Alimentos industrializados são pobres em nutrientes?”, “contêm muitas gorduras, saturadas e trans?”, “contêm muito sódio?”, “são cheios de aditivos?”, “não são saudáveis?”, “não são seguros?”, “têm composição nutricional desbalanceada?”, “aditivos alimentares são tóxicos e fazem mal à saúde?”, dentre outras.
A Abia também mantém publicações e hospeda o site "tem comida, tem valor" em que defende a segurança dos alimentos processados e combate os pressupostos da classificação NOVA, que não teria equivalente na maioria dos países do mundo, nem consenso na comunidade científica.
Um dos cientistas citados, Cecilia Nälsén, pesquisadora da Universidade de Örebro, na Suécia, afirma que “quando um conceito (ultraprocessado) se torna tão amplo, pouco claro e que inclui alimentos desde cereais matinais e pão integral a refeições prontas vegetarianas e salsichas, torna-se cientificamente inútil na prática. Pesquisadores que partem desses sistemas de classificação e sua metodologia falha correm o risco de chegar a conclusões que não se comparam cientificamente. Já existem muitos mal-entendidos sobre alimentação e saúde e a comunidade de pesquisa não deve contribuir para aumentar a confusão”.
Abia vê "terrorismo nutricional" contra processados
O processamento do alimento buscaria, em essência, torná-lo seguro para o consumo, visto que as matérias-primas são, em grande parte, perecíveis. Dornellas diz que o que basicamente se faz na indústria é replicar as receitas caseiras, só que em vez de servir três a quatro pessoas, o desafio é atender milhões.
“O que eles fazem é terrorismo nutricional. Se abrir a internet hoje, tem um monte dizendo que se comer isso ou aquilo vai morrer. Os criadores da matriz NOVA querem voltar a um sistema de 50 ou 60 anos atrás, em que a base da alimentação era farinha, arroz, feijão. Tudo isso deve estar, sim, na nossa alimentação, mas parece difícil entenderem o mundo moderno. Eu adoraria poder preparar todo dia o alimento para minhas filhas, mas isso não é possível. Por vezes, o que vai te fornecer a energia para o início do dia é a barrinha de cereais, é o pão de forma, é o alimento processado. Nós defendemos o equilíbrio. A gente tem que cuidar com tudo o que come. Até o consumo exagerado de castanhas, por exemplo, pode causar problemas devido ao excesso de selênio”, diz Dornellas.
Quanto à suposta relação dos alimentos ultraprocessados com a incidência de doenças crônicas, como obesidade e diabetes, os estudos seriam apenas observacionais, sem evidências de causalidade e efeito. E supostos malefícios da cumulatividade dos aditivos, em longo prazo, também não estariam demonstrados. “São aditivos liberados e permitidos pela Organização Mundial de Saúde. Se houvesse preocupação com a cumulatividade, eles já teriam sido banidos do mercado”, assegura o diretor da Abia.
Relação direta com doenças crônicas é questionada
“Falavam que o ultraprocessado é a razão das doenças crônicas não transmissíveis. A OMS preconiza que essas doenças têm causas multifatoriais. O estresse, a falta de sono, o sedentarismo, a alimentação desregrada, causam obesidade. Você nunca vai ver a indústria recomendando só consumir produtos industrializados, a gente recomenda o consumo de produtos naturais, uma alimentação equilibrada. O nosso foco é o equilíbrio”, argumenta.
A “bronca” da indústria e dos engenheiros dos alimentos estaria assim muito mais relacionada às distorções quanto ao que significa o processamento industrial, e sua contribuição para a segurança alimentar e a segurança dos alimentos, do que a um falso conflito com práticas alimentares saudáveis, com dietas ricas em fibras (frutas, hortaliças e cereais integrais).
A classificação brasileira NOVA foi estudada no Reino Unido como possível parâmetro para pesquisas em saúde pública. A conclusão do Comitê Consultivo Científico em Nutrição (SACN), divulgada em julho, foi de que o sistema NOVA, e o conceito de ultraprocessados, envolve tipos de alimentos muito amplos e agrupa categorias muito distintas, com características nutricionais diferentes. Em relação aos efeitos à saúde humana, “as evidências disponíveis são de natureza quase exclusivamente observacional”, afirmou o SACN.
Reino Unido e Espanha descartaram classificação NOVA
Os britânicos concluíram que o consumo de alimentos ultraprocessados pode ser apenas um indicador de outros hábitos e comportamentos não saudáveis, ligados ao estilo de vida. “Não está claro até que ponto as associações observadas entre alimentos (ultra)processados e resultados adversos à saúde são explicados por relações estabelecidas entre fatores nutricionais e impactos à saúde sobre os quais a SACN empreendeu avaliações de risco robustas”.
Um outro fator limitador para “importar” o modelo brasileiro, concluiu a SACN, está no fato de o grupo de pesquisadores ligados ao desenvolvimento da NOVA “ser responsável por 9 de 12 publicações identificadas, e todas usaram a mesma metodologia”.
Na Espanha, o sistema NOVA também foi analisado, em 2020, pelo Comitê Científico da Agência Espanhola de Segurança Alimentar e Nutricional (AESAN), que considerou que “não se deve associar o termo ultraprocessado com alimentos de baixa qualidade nutricional, já que esta não depende apenas da intensidade ou complexidade do processamento, mas da composição do alimento final”. Em outro trecho, o documento afirma que “se atribui a característica de ultraprocessado pelo fato de conter aditivos; o uso de aditivos está sujeito a regulação derivada da análise de risco, e, portanto, apenas sua inclusão não pode ser relacionado a um prejuízo nutricional”.
Para espanhóis, faltam estudos comparativos
O comitê científico espanhol considerou que, “para justificar a necessidade de uma categoria diferenciada de alimentos ultraprocessados, ou ‘alimentos processados de composição complexa’, seria necessário realizar estudos epidemiológicos que comparem o impacto sobre a saúde das dietas com alto consumo de alimentos processados que contêm aqueles ingredientes que parecem contribuir com o surgimento de problemas de saúde com dietas baseadas em alimentos processados que não apresentam tais ingredientes em sua composição”.
Ainda em relação ao efeito para a saúde humana, o comitê mencionou que muitos estudos apontam que de fato existe uma relação direta entre o maior consumo de alimentos ultraprocessados e enfermidades cardiovasculares, obesidade, diabetes tipo 2, câncer e um risco maior de mortalidade. “Apesar disso, cabe ressaltar que esses estudos ainda são escassos e, portanto, é preciso, por um lado, ajustar melhor a definição do alimento ultraprocessado e realizar mais pesquisas que permitam avaliar o efeito de tais alimentos na saúde dos consumidores”.
Por outro lado, não é segredo que o processamento, com frequência, envolve proteção direta à vida. O uso do ácido cítrico nas conservas de palmito, por exemplo, evita o desenvolvimento de esporos de clostridium botulinum, que se não forem eliminados podem originar uma toxina mortal. Mães que não podem amamentar dependem de papinhas “ultraprocessadas” para salvar a vida de seus filhos.
Dornellas, da Abia, aponta que a militância antiprocessados está propondo a elevação de impostos, como forma de coibir o consumo. “Nunca podemos estar de acordo, porque alimento é alimento, e o que falta no Brasil é renda para as pessoas se alimentarem melhor”, afirma.
Nupens rebate críticas e defende a NOVA
Na linha de frente de oposição aos “ultraprocessados” está o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens), da USP, que reúne seus argumentos no site www.fsp.usp.br/nupens, com estudos de causalidade de processos saúde-doença, formulação de intervenções e avaliação da efetividade de serviços e programas. Dentre as publicações mais recentes, está um estudo em parceria com Harvard e outras universidades que reforça a associação entre os ultraprocessados e o desenvolvimento de diabetes tipo 2. Um aumento de 10% no consumo de ultraprocessados estaria associado a um incremento de 12% no risco de desenvolvimento da doença.
Contatado pela reportagem, o coordenador do Nupens, Carlos Monteiro, respondeu por e-mail às principais críticas da indústria e dos engenheiros de alimentos. Confira abaixo.
Alguns estudiosos dizem que é um erro associar os ultraprocessados a baixa qualidade nutricional, uma vez que esta depende não apenas da intensidade e da complexidade do processo, mas também da composição do alimento. Em vez do rótulo processado ou ultraprocessado, o melhor seria recomendar a redução do consumo de alimentos com deficiência nutricional e poucos saudáveis.
Alimentos ultraprocessados costumam ter baixa qualidade nutricional justamente por conta de sua composição. Por definição, os alimentos ultraprocessados são formulações de ingredientes, vários de uso exclusivamente industrial (como isolados proteicos, amidos modificados, corantes e aromatizantes), que resultam de uma série de processamentos industriais. Em geral, levam grandes quantidades de açúcar, sal e gordura saturada, e baixa quantidade de proteínas, fibras e outros compostos bioativos importantes à saúde, encontrados apenas em alimentos in natura ou minimamente processados.
Ultraprocessados teriam perfil "desequilibrado" de nutrientes
Um estudo recente do Nupens/USP analisou ultraprocessados vendidos nas cidades de São Paulo e Salvador e mostrou que a esmagadora maioria desses alimentos contêm nutrientes críticos em excesso e aditivos cosméticos (que dão cor, sabor, aroma e textura ao alimento). O artigo foi publicado na revista científica Nature e foi tema de reportagem da Agência Brasil.
Nesse sentido, mostramos que alimentos pouco saudáveis e com perfil desequilibrado de nutrientes são, justamente, os alimentos ultraprocessados. E são eles que devem ser evitados se quisermos manter uma alimentação adequada e saudável.
Chamar um alimento de ultraprocessado, somente por ter elevado número de ingredientes, não pode ser uma distorção, sendo que até uma salada de frutas, sob este prisma, seria ultraprocessada?
Um alimento não é classificado como ultraprocessado a partir do número elevado de ingredientes. A definição de ultraprocessado tem a ver com um nível de processamento que destrói a matriz dos alimentos, com a presença de frações de alimentos (geralmente vindos de commodities, como concentrados proteicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada e amidos modificados) e aditivos cosméticos que deem sabor, cor, textura e aroma a uma massa insossa. Leva-se em conta, ainda, a finalidade do processamento. No caso dos ultraprocessados, há uma escolha de ingredientes de baixo custo e longa durabilidade, principalmente para aumentar margens de lucro.
Por isso, é muito comum que um alimento ultraprocessado tenha elevado número de ingredientes — mas não é isso, especificamente, que o caracteriza. Para além disso, esse é um argumento fraco e desonesto de pessoas que querem desqualificar o conceito. Uma salada de frutas pode ter vários ingredientes: laranja, maçã, melão, mamão, banana, por aí vai. Comparemos com a lista de ingredientes de um famoso salgadinho de pacote: milho, óleo vegetal e preparado para salgadinho sabor queijo (maltodextrina, sal, soro de manteiga, farinha de trigo, queijo, açúcar, óleo de soja e óleo de algodão, especiarias, realçadores de sabor: glutamato monossódico, inosinato dissódico e guanilato dissódico, aromatizantes, reguladores de acidez fosfato dissódico, ácido cítrico e ácido lático, corante artificial amarelo crepúsculo e corante caramelo). Não é necessário ser um gênio para entender qual dos dois é ultraprocessado.
Questionam-se os efeitos dos aditivos a longo prazo
Os profissionais da engenharia de alimentos dizem que os aditivos (como emulsificantes, antioxidantes, acidulantes, conservadores, etc) são utilizados dentro de margens seguras pela indústria, e somente após chancela do Comitê de Aditivos Alimentares, vinculado ao Codex Alimentarius. Os aditivos também seriam essenciais para garantir a segurança alimentar, visto que ajudam a manter a segurança microbiológica dos alimentos e seus padrões de qualidade. Os aditivos não têm seu lado positivo?
Os aditivos são utilizados dentro das margens aceitas, mas o que a epidemiologia nutricional tem mostrado é que essas margens precisam ser revistas. Os testes do impacto do consumo de aditivos na saúde humana são feitos em relação à toxicidade, mas não analisam o consumo a longo prazo. Temos visto que alguns aditivos podem ser bastante problemáticos. Há evidências, por exemplo, de que os emulsificantes causam alterações importantes na parede intestinal. A Anvisa está discutindo o potencial do dióxido de titânio (usado como corante para embranquecer alimentos) causar danos ao DNA.
É claro que manter a segurança microbiológica é importante, mas essa não é a única função dos aditivos — nem a mais comum. Aditivos cosméticos — corantes, aromatizantes, edulcorantes — não são adicionados por segurança microbiológica, mas sim para imitar características sensoriais de alimentos frescos e preparações culinárias, induzindo assim o consumidor a acreditar que está consumindo algo saudável. Além disso, alimentos processados, que podem integrar uma alimentação saudável, podem levar conservantes na composição.
Cultura alimentar brasileira funcionaria como proteção
Outra crítica é que o padrão de consumo de alimentos minimamente processados, como advogado pelo Guia Alimentar, estaria inalcançável ao brasileiro médio, sendo acessível apenas a uma elite. Como responder?
Felizmente, essa não é a realidade no Brasil. Diferente de países como EUA e Reino Unido — os maiores consumidores de ultraprocessados no mundo —, o Brasil é protegido por sua cultura alimentar. Temos como base a rica combinação de arroz com feijão, além de uma grande diversidade de hortaliças e o hábito, ainda preservado, de fazer refeições caseiras ou em restaurante a quilo, com comida de verdade. Apesar de termos visto um aumento no preço de alguns alimentos in natura e minimamente processados e de sabermos da possibilidade de redução no preço de alimentos ultraprocessados (por grande capacidade de marketing, promoções, acesso das grandes corporações que produzem esses alimento), no Brasil a alimentação saudável ainda é mais acessível que o consumo de ultraprocessados.
A manutenção do acesso a alimentos in natura e minimamente processados, é claro, depende de um conjunto de políticas públicas que vão desde a gestão do estoque de alimentos até programas de transferência de renda, passando pela regulação das iniciativas das indústrias de ultraprocessados. Esta é uma tarefa complexa, tendo em vista o poder de lobby das indústrias para dificultar iniciativas de promoção da alimentação saudável. Mas há avanços: um exemplo é a proibição recente, nas cidades do Rio de Janeiro e de Niterói, da venda ou oferta de ultraprocessados nas cantinas escolares.
A classificação dos alimentos conforme seu nível de processamento estaria equivocada porque mesmo os alimentos considerados minimamente processados podem conter múltiplos ingredientes e aditivos. E nem todos os processados recebem adição de açúcar ou sal, fazendo com que a recomendação de "consumo limitado" pareça alarmante e descuidada...
Essa crítica revela um profundo desconhecimento da classificação Nova de alimentos. Alimentos minimamente processados não têm múltiplos ingredientes, tampouco aditivos. Exemplos são grãos de arroz ou feijão embalados, farinhas de trigo e de milho, grãos de café, carnes (que podem ser resfriadas ou congeladas) — todos com poucos ingredientes, quando não ingredientes únicos, e com sem aditivos (apenas o ácido fólico adicionado à farinha de trigo por uma política de saúde pública).
Ultraprocessados são alvo, e não os processados
É importante frisar a diferença entre dois grupos específicos da classificação Nova: os processados e os ultraprocessados. Os processados recebem adição de sal, açúcar ou gordura (frutas em calda, queijos, pães artesanais). Os ultraprocessados, como já comentado anteriormente, levam uma série de aditivos e ingredientes críticos em excesso. Eles devem ser evitados.
Outra crítica é de que o guia alimentar declara que os ingredientes e métodos dos alimentos processados alteram de forma desfavorável a composição nutricional dos alimentos dos quais deriva. Seria o contrário disso, a industrialização substancialmente preservaria os nutrientes dos alimentos.
As evidências científicas são bastante claras a este respeito. No Brasil e em mais de uma dezena de países onde há dados representativos sobre o consumo alimentar da população, o consumo de alimentos ultraprocessados deteriora profundamente a qualidade nutricional da dieta. Não há mais qualquer dúvida sobre isso. Isso não se aplica aos alimentos processados, e nem à industrialização de alimentos como um todo.
A indústria, quando promove a colheita, a higienização, o ensacamento e o armazenamento de grãos de arroz ou feijão (alimentos minimamente processados), de fato preserva o alimento e o torna mais acessível para o consumo. Ou, quando produz uma conserva (alimento processado), também aumenta a durabilidade do alimento.
A questão, então, não é a industrialização, mas o ultraprocessamento. Esse, sim, destrói a matriz dos alimentos, adiciona sódio, açúcar e gordura saturada em excesso, inclui aditivos cosméticos desnecessários a qualquer outro grupo de alimentos.
Isso não é apenas algo que vemos no alimento em si. A ciência vem mostrando, em um conjunto robusto de evidências científicas, que o consumo de ultraprocessados está associado a um maior risco de desenvolvimento de uma série de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e até diversos tipos de câncer, além de quadros de sobrepeso e obesidade. Isso, é claro, decorre das alterações nutricionais que o ultraprocessamento causa no alimento.
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