Neste ano de eleições municipais o governo Lula não poderá contar com a mesma sorte de 2023, quando tentou "surfar" no desempenho do agronegócio após uma supersafra inédita acima de 300 milhões de toneladas, decisiva para a primeira deflação do preço dos alimentos em domicílio desde 2017.
De saída, a safra de verão derrapou devido à estiagem provocada pelo El Niño no Centro-Oeste para cima, e o balanço das colheitas irá retroceder em pelo menos 20 milhões de toneladas. Nos itens básicos, como arroz e feijão, o ano também começou em alta. O arroz devido à escassez do produto em nível mundial, agravada por eventos climáticos e pela decisão da Índia, maior exportador, de proibir embarques. Quanto ao feijão, extremos de calor e de chuva prejudicaram a qualidade e o volume das colheitas.
Também turvam o horizonte as incertezas quanto à capacidade de Brasília de honrar a meta fiscal de déficit zero em 2024, o que pode ter reflexos no câmbio num momento em que a cotação das commodities agrícolas já se encontra em baixa.
Preços da carne, arroz e feijão fogem ao controle estatal
Nesta semana, Lula comemorou a queda do preço da carne bovina como se fosse mérito do governo, quando, na realidade, não tem nenhuma relação com políticas estatais. Ela é fruto do ciclo pecuário, ou seja, de um momento em que os pecuaristas estão se desfazendo de matrizes devido à baixa rentabilidade. O presidente também disse que seu governo está empenhado em baixar o preço do arroz e do feijão, "daquilo que vai na mesa do povo trabalhador".
Após iniciar o ano com picos de alta, os preços do arroz e do feijão, de fato, devem baixar nos próximos meses. Mas, de novo, devido a oscilações de oferta e demanda do mercado, e não por interferências do governo. Como já ocorreu no ano de "vacas gordas", em 2023.
"O governo e a política monetária têm pouca potência na agricultura", observa o coordenador dos Índices de Preços do FGV Ibre, André Braz. "O governo pode entrar com políticas púbicas no sentido de disponibilizar créditos para o produtor rural, para tentar ver se mitiga o impacto no custo e os repasses ao preço final. Mas praticamente nenhum esforço foi feito nesse sentido. A política monetária não alcança o preço dos alimentos, que dependem da oferta. Se você não tem o produto para ofertar, o preço vai subir independente de onde esteja a taxa de juros. Então, o governo não conseguiu ganhar créditos pelo bom comportamento do preço dos alimentos, foi sorte mesmo."
El Niño trouxe prejuízo, mas menor do que esperado
Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo concordam que a deflação registrada em 2023 no preço dos alimentos no domicílio (-0,52% segundo o IPCA) foi uma trégua após sequência de eventos econômicos negativos pesados: pandemia (2020-21), crise hídrica/energética (2021) e a guerra entre Rússia e Ucrânia (2022).
Por outro lado, ainda que impactantes, os danos do El Niño estão sendo menores do que os esperados. Assim, as projeções sobre a pressão inflacionária nos próximos meses variam entre leve e moderada.
Para o analista de mercado de commodities agrícolas Vlamir Brandalizze, não haverá como evitar alta de alguns alimentos básicos, como arroz, feijão, ovos e óleo de soja.
“No ano passado tivermos queda dos preços do milho e do farelo de soja, que foram lá para baixo. Daí foi possível produzir ovos baratinhos. O óleo de soja e o ovo já chegaram ao fundo do poço. E começa a haver sinais de reação. Não deve haver disparada das cotações, porque ainda temos boa oferta de milho e farelo de soja. Mas a fase de baixa já passou. Não vamos ter falta de alimento, mas um valor mais ajustado para cima”, prevê.
Se é remota a hipótese de uma nova deflação dos itens que compõem a mesa do brasileiro, também não se fala muito em disparada de preços. Em parte devido ao efeito das boas colheitas de nossos concorrentes, conforme aponta André Braz, do FGV Ibre. “Quando a gente olha nas bolsas internacionais, a trajetória dos preços de soja, milho e trigo tem sido de queda. A oferta de grãos no mundo está grande”, sublinha.
O FGV Ibre estima uma inflação dos alimentos em torno de 4% a 4,5% neste ano, significativamente acima da meta geral, do Conselho Monetário Nacional (CMN), que é de 3%. Braz, no entanto, faz a ressalva de ainda “tem muita água para passar por debaixo da ponte” e é possível que a inflação da comida fique abaixo do projetado.
Commodities mais baratas "seguram" preço de derivados
“Quando a gente olha o gráfico do preço da soja em 12 meses, está com queda de 30% no índice ao produtor. Aqui e lá fora. É muita coisa. Com o preço dos grãos bem comportados, não ocorre uma contaminação do preço de produtos derivados. Se a soja não sobe, não sobe o óleo de soja e não sobe a margarina. Se o milho não sobe, não sobem os ovos nem a carne de frango. Se o trigo não sobe, não sobem os pães, as massas e os biscoitos. Então, acaba-se colhendo os efeitos benéficos pela redução de preços que esses grãos vão apresentar, apesar do desafio climático”, enfatiza Braz.
Neste cenário, o mais prejudicado acaba sendo o produtor rural. O clima diminuiu a produtividade, mas, ao contrário de os preços subirem, pela lógica de uma menor oferta doméstica, eles devem cair devido a “uma produção robusta no resto do mundo”, conforme aponta o economista da FGV.
Para a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a combinação de preços menores das commodities agrícolas, redução da safra de verão e comprometimento de parte da segunda safra de milho (devido ao atraso na janela ideal de plantio) deve fazer o PIB da agropecuária recuar 0,7% neste ano, contra uma alta de 15,1% em 2023.
Quadro não é mais de céu de brigadeiro
“O quadro não é mais de céu de brigadeiro. É uma safra boa ainda, mas não é igual à de 2023. O El Niño impactou a safra de soja, está impactando a de milho e vai impactar a produção de hortaliças e frutas”, avalia Renato Conchon, coordenador do núcleo econômico da CNA.
Esse El Niño, que tanto fustigou a safra brasileira de verão, deve ser sucedido por um rápido período de neutralidade climática, entre março e abril, antes da chegada do La Niña, de maio-junho em diante.
Se o La Niña costuma trazer chuvas regulares para a região central e o norte do país, para o sul ele representa maior risco às culturas de inverno, como trigo, cevada e pastagens para o gado. “No Sul, o frio deve chegar um pouco mais cedo e ir embora mais tarde, com inverno mais seco e riscos de geada forte. O frio tardio é o que atrapalha a agricultura. É um problema para o trigo e para os hortigranjeiros”, avalia o meteorologista Luiz Renato Lazinski.
Já na dobradinha feijão e arroz, o ano começou com cotações em alta após uma combinação de adversidades climáticas e diminuição da oferta internacional. Os mercados ainda sentem o baque da decisão da Índia, que respondia por 40% das exportações globais de arroz, e desde julho de 2023 passou a proibir os embarques de diversas variedades para segurar os preços no mercado doméstico, após frustração de safra.
Ao mesmo tempo, outros grandes players, como Vietnã e Tailândia, também tiveram colheitas menores devido a impactos climáticos do El Niño. E, no Brasil, houve quebra da produção após forte estiagem no Rio Grande do Sul, que concentra 70% do cultivo nacional.
Consumidores trocaram o arroz pelas massas
“Tivemos algumas regiões em que o pacote de 5 quilos chegou próximo de R$ 50. Então, os consumidores acabaram migrando para os substitutos. As entidades do trigo reportaram aumento nas vendas das massas, do macarrão e de farinhas”, aponta o analista Evandro Oliveira, da agência Safras & Mercado, em Porto Alegre. Para dar conta da demanda interna, o Brasil importou 1,5 milhão de toneladas de arroz, um recorde para os últimos vinte anos.
Nas últimas semanas, contudo, com o começo da colheita da nova safra gaúcha, catarinense e paraguaia, o sinal se inverteu e começou uma pressão para queda nos preços do arroz. “Essa queda deve ser sentida pelos consumidores em abril, principalmente, porque a transmissão nos preços ao longo da cadeia é gradual. Primeiro ocorre na matéria prima bruta, o arroz em casca, depois no produto beneficiado, onde já está chegando, e finalmente nas prateleiras”, diz o analista.
No feijão, o último ciclo foi prejudicado por excesso de chuva no Sul e estiagem no Nordeste, comprometendo a qualidade dos grãos. A menor oferta sustenta cotações do feijão preto acima de R$ 400 a saca, e, do carioca, acima de R$ 300. “No próximo ciclo deve ter aumento de área e, se o clima contribuir, produção elevada, que pode impactar significativamente nos preços do feijão a partir de abril, maio e junho, com maior oferta e produto de melhor qualidade”, destaca Oliveira.
Assim, o arroz e o feijão devem ter redução de preço nos próximos meses, não por ações do governo (Lula pediu ao ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, um plano para baixar o preço desses alimentos), mas devido a uma oscilação própria do mercado.
Cenário deve melhorar para hortifrútis e carne
Quanto aos hortifrútis, se o La Niña que vem aí não for intenso (o fenômeno se caracteriza por chuva acima da média no Nordeste e abaixo da média no Sul), é provável uma melhor oferta das culturas de ciclo curto no Sul e Sudeste do país, segundo Margarete Boteon, pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea Esalq-USP).
"Do patamar atual, e só avaliando o efeito climático, no geral será um inverno na média de preços inferiores ao observado no verão de 2024, principalmente para batata, tomate e folhosas", sublinha Margarete.
Em relação às carnes, 2024 deve ser um ano de recorde de produção, tanto para frango, como para suínos e bovinos. O ciclo pecuário ainda está na fase de abate de matrizes, o que aumenta a oferta de boi gordo no país. “O preço da carne não vai ser um dos vilões da inflação no decorrer deste ano. O Brasil vai seguir com grande volume de oferta, preços controlados no decorrer desta temporada, salvo alguma ocorrência extraordinária, fora de contexto, que altere sensivelmente esta dinâmica de mercado”, sublinha Fernando Iglesias, da consultoria Safras & Mercado.
Assim como o arroz e o feijão, o preço da carne tem muito mais a ver com oscilações de mercado do que com intervenção pontual do governo. É o ciclo pecuário, que dura de cinco a seis anos, que tem determinado viés de baixa no preço da carne bovina.
A má notícia para quem planeja ganhos políticos em cima do preço do bife é que a mudança de ciclo pecuário deve começar em 2025 e se instalar ao longo de 2026. Justamente um ano de eleições presidenciais, quando, após sucessivos períodos de abates de matrizes, a tendência será de diminuição da oferta de boi gordo, elevando os preços. Nesse contexto, tentar “surfar” no preço da alcatra ou picanha será tombo na certa.
Governo deveria focar na política fiscal
Em vez de buscar meios de interferir na produção agrícola do país, onde tem pouca influência, o governo deveria centrar esforços em uma política fiscal mais austera, que vise honrar a meta de zerar o déficit, segundo André Braz, do FGV Ibre.
“Isso acabaria diminuindo o risco-país, blindando mais o câmbio. Se isso não for honrado, pode virar inflação que vai afetar sempre os menos favorecidos. O risco é: eu prometi uma meta muito arrojada e nada fiz para bater essa meta. Aí pode piorar, aumentar o risco-país, com repercussão negativa no câmbio. Mas se isso não acontecer, e acho que não vai acontecer, a gente tem boas chances de uma inflação menor do que esperado e um câmbio mais estável”, conclui.
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