Um artigo acrescentado de última hora no texto da reforma tributária aprovado pela Câmara colocou em rota de colisão os governadores de vários estados brasileiros, principalmente do Centro-Oeste, com entidades representativas da indústria, do agro, da mineração e do petróleo.
Para os críticos, apesar de conter apenas sete linhas, o artigo 20 da PEC 45 tem potencial explosivo de tirar competitividade de várias cadeias produtivas e, ainda, de pôr abaixo as bases da Lei Kandir, que desde 1996 isenta a cobrança de ICMS sobre as exportações, em linha com os tratados de comércio internacional assinados pelo Brasil.
Devido a seu efeito surpresa e potencial de danos, o artigo 20 ganhou o apelido de "Cavalo de Troia". A Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), o Instituto Brasileiro da Mineração (Ibram), a Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja), a União da Indústria de Cana de Açúcar e Bioenergia (Unica), dentre outros, se mobilizam para convencer senadores, o Executivo e os deputados a eliminar a brecha aberta para criação de novos impostos, disfarçados de contribuições.
Artigo 20 é criticado por ser curto e confuso
Bem curto, com 84 palavras, o artigo é duramente criticado por sua linguagem ambígua e confusa:
“Os Estados e o Distrito Federal poderão instituir contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição a contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, relacionados com o imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se até 31 de dezembro de 2043”.
A dúvida está em relação à abrangência do texto: se permite a criação apenas dos fundos já existentes em 30 de abril de 2023, ou se autoriza na prática a instituição de quaisquer novas contribuições, contanto que estejam relacionadas a benefícios do ICMS já existentes até aquela data. Esses fundos são chamados como contribuições porque seu pagamento não é compulsório; contudo, quem não paga acaba perdendo o direito ao diferimento do ICMS. Em Goiás, por exemplo, a escolha fica entre “contribuir” com 1,65% do valor de venda da soja nas operações internas ou pagar alíquota cheia de 17% de ICMS.
Brecha para 17 estados cobrarem contribuições
Se for mantida a chancela da emenda constitucional, mesmo com a “data de corte” de 30 de abril de 2023, a estimativa é de que 17 estados brasileiros poderiam vir a implementar esses fundos, muitos já criados, mas ainda não operacionalizados.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, atuou intensamente para incluir o artigo 20 na reforma tributária. Ele instituiu no ano passado o fundo de Infraestrutura do Estado (Fundeinfra), que visa arrecadar R$ 1 bilhão por ano, e que está sendo contestado pela CNI no Supremo Tribunal Federal.
Mato Grosso foi o segundo estado a instituir uma taxa sobre o agro, o Fundo Estadual de Transporte e Habitação (Fethab), em 2000, com a qual arrecada por mês R$ 275 milhões. Os recursos já teriam possibilitado a pavimentação de 2.500 km de rodovias, restauração de 2,1 mil km e construção de 152 pontes.
A reportagem contatou a Secretaria de Fazenda do Mato Grosso para abordar a inclusão do fundo na reforma tributária, mas não teve retorno.
Nada de diferente, diz governador do Mato Grosso
Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, enfatizou que o Fethab já é cobrado há mais de 20 anos e "não tem nada de diferente do que já existe". Quanto à preocupação dos exportadores, ele ironizou: "Quando você diz exportador… diga-se as tradings (grandes comercializadoras), né? Que não plantam nem um pé de soja, nem um pé de milho e não têm que andar pelos milhares de quilômetros de estradas não pavimentadas no Estado de Mato Grosso".
O pioneiro na criação de taxas sobre o setor primário foi o Mato Grosso do Sul, com o Fundersul, em 1999. Não sem motivo, os governadores do Centro-Oeste são os mais interessados em preservar esses fundos.
“Na prática, o que o artigo 20 faz é dar garantia constitucional de poder tributar produtos primários e semielaborados, inclusive quando exportados. É justamente o que os estados podiam fazer antes da Lei Kandir. Eles nunca se conformaram com a desoneração das exportações, que é um projeto constitucional, e uma imposição dos tratados comerciais internacionais de comércio que o Brasil assina. Estão se aproveitando desse momento reformador para tentar voltar a um cenário anterior à Lei Kandir”, avalia Paulo Honório de Castro Júnior, presidente do Instituto Mineiro de Direito Tributário.
Como outro exemplo dessa inconformidade dos estados com a desoneração das exportações, Honório cita as taxas de fiscalização (TFRM) aplicadas à mineração por Minas Gerais, Pará e Amapá, a partir de 2011. Para o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), se estas taxas se espraiarem para outros estados e municípios em que a mineração é relevante, o custo poderá chegar a R$ 6,2 bilhões por ano.
Taxação de produtos primários vai na contramão da reforma
Por trás da jogada dos governadores para manter os fundos sobre produtos primários, estão as dificuldades de caixa, agravadas no ano passado depois que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) reduziu o ICMS aplicado sobre combustíveis e energia, que passaram a ser considerados itens essenciais – interpretação confirmada pelo STF. Isso fez que alíquotas de até 31%, caso de Minas Gerais, caíssem para 17 ou 18%, derrubando as arrecadações estaduais e gerando uma corrida por compensação e novas fontes de arrecadação.
Para Raul Jungmann, presidente do Ibram, a brecha para criação e manutenção de fundos sobre produtos primários é “um desastre e um contrassenso” que precisam ser revertidos, sob pena de bloquearem o desenvolvimento do país.
“O agro e os minerais (minério de ferro, principalmente) representam 45% da pauta de exportações brasileira. Isso pode incidir também sobre toda a cadeia de óleo e gás e bens primários. Vai na contramão de uma reforma que pretendia simplificar e ser neutra. E envolve ainda a isonomia tributária. Alguns estados têm (fundos) e outros não. Como é que fica isso? Os outros não vão reivindicar? Você está constitucionalizando uma medida que foi tocada por quatro estados, mas que em perspectiva tem 17. É desastroso”, afirma.
CNI também é contra o artigo 20 da reforma tributária
Ao analisar o texto aprovado da reforma tributária, a CNI se declarou favorável à maioria dos pontos, mas uma das exceções foi o artigo 20. Para a entidade, a cobrança de contribuição estadual sobre a exportação de bens primários e semielaborados vai “totalmente na contramão do que o mundo faz e do que se propõe o novo modelo de tributação do consumo com base no IVA, o qual desonera completamente todas as exportações de bens e serviços”. “Por essa razão, a medida representa um grande retrocesso e irá prejudicar a competitividade das exportações brasileiras”, diz a CNI.
A indústria entende ainda que a cobrança de contribuições e taxas na origem, onde ocorre a produção de bens primários e semielaborados, é algo “em desacordo com as boas práticas tributárias internacionais e com o princípio do novo sistema tributário, baseado no IVA, em que a tributação do IBS e do CBS sempre se dará no destino das operações, no local de consumo”.
Outro ponto polêmico, apontado tanto pela CNI como pelo Ibram, está na vigência das contribuições, que poderia se estender até 2043, enquanto o ICMS, base para o cálculo dessas taxas, se encerra em 2032. “Quando acabar o ICMS, isso passa a incidir sobre o IVA? Como vai ficar isso?”, questiona Jungmann.
Setor de petróleo alerta para perda de competitividade
Na avaliação do setor de petróleo e gás, que atualmente é obrigado a pagar 10% para usufruir de incentivos fiscais do ICMS no Rio de Janeiro, faltou debater mais o assunto, considerado sensível para o desenvolvimento do país. A expectativa é de que no Senado a questão seja analisada com mais calma e tempo. Para Júlio César Moreira, diretor-executivo do Instituto Brasileiro Petróleo e Gás (IBP), não se pode perder de vista o impacto de novas taxas sobre a competitividade com outros países.
Dentre os novos competidores, estão os vizinhos Guiana e Suriname, que descobriram enormes jazidas na chamada Margem Equatorial, que, do lado brasileiro está travada pela recusa do Ibama em autorizar poços exploratórios a 500 km da Foz do Amazonas.
"Com todos os problemas que esses países têm de ordem estrutural, de construir uma indústria do zero, na hora de olhar em nível global para investimentos as empresas levam em conta todos esses fatores, que envolvem o potencial geológico, o tempo de maturação entre o primeiro posto exploratório até o primeiro óleo, a carga tributária, o quanto o governo vai receber no momento da produção. Esses fatores, e a introdução de um novo tributo como esse, acabam prejudicando o país na atração de investimento. É mais um fator que vai entrar na equação dessas empresas. Elas podem decidir trazer o recurso para o Brasil, mas podem levar também para qualquer outra parte do mundo. Não somos o único produtor mundial de petróleo. O país precisa, sim, ter consciência do risco que corre ao aprovar um artigo como esse que traz à tona um novo tributo”, alerta Moreira.
Bancada do agro cogita derrubar o artigo
A própria Frente Parlamentar da Agropecuária, que garantiu votos para aprovação da reforma tributária na Câmara, só soube do artigo ‘Cavalo de Troia’ momentos antes da votação. O presidente da frente, deputado Pedro Lupion (PP-PR), ameniza a polêmica e diz que o relator garantiu que a exceção seria apenas para as contribuições já vigentes, atendendo a pressão dos governadores do Centro-Oeste.
Lupion não vê brecha para proliferação de contribuições estaduais, mas diante de análise contrária de vários tributaristas, vai trabalhar para “não deixar dúvidas sobre o assunto”. “Talvez seja possível derrubar, tem que ver como vai ficar essa tramitação no Senado. Dá para mexer, não tem porque deixar algo com insegurança ou margem de interpretação equivocada”, antecipa.
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