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Fundada há quase duzentos anos, a companhia americana John Deere é considerada a marca mais valiosa do mundo no ramo de maquinários agrícolas, com ativos que ultrapassam US$ 100 bilhões. No Brasil, lidera a venda de tratores. Nas últimas semanas, contudo, a empresa precisou agir rápido para contornar uma crise de consequências imprevisíveis ao ser confrontada por seu apoio declarado a pautas identitárias, em dissonância com o posicionamento mais conservador de seus clientes.
Dentre as políticas promovidas pela John Deere, expostas em vídeo pelo jornalista americano Robby Starbuck, está o financiamento de uma corrida infantil de orgulho gay. A empresa também vinha treinando os funcionários para utilização de pronomes neutros de gênero e estimulava a participação em cursos da ONG United Way. Esses cursos associam racismo ao capitalismo e recomendam livros do tipo “O bebê antirracista” e cartilhas com glossário de termos de igualdade racial.
"Estava prestes a comprar um trator. Acho que terei de procurar outra marca", reagiu um produtor. "Não vou mais comprar equipamentos da John Deere, eles precisam ser colocados para fora do mercado", disse outro. "Go woke, go broke" (vire woke, vá à falência), replicaram várias pessoas.
Após ver suas pautas identitárias expostas, e após enxurrada de críticas nas redes sociais, a John Deere recuou. Em comunicado na plataforma X, a empresa disse que procura priorizar políticas internas que estejam estreitamente alinhadas com a estratégia de negócios de atender às necessidades dos clientes. Assim, com base nas “conversações em andamento”, anunciou que não irá mais participar nem apoiar festivais, paradas ou eventos externos envolvendo conscientização social ou cultural. Também irá auditar todos os materiais e políticas de treinamentos para assegurar a ausência desse tipo de mensagens.
John Deere defende diversidade, mas nega adesão à cultura woke
Na declaração, a John Deere afirmou que “cotas de diversidade e o uso de pronomes neutros nunca foram políticas adotadas pela companhia”. Ressaltou, contudo, acreditar que “uma força de trabalho diversificada permite atender melhor às necessidades de nossos clientes". "Por isso", argumenta, "continuaremos a acompanhar e a promover a diversidade de nossa organização”.
A guinada da John Deere ocorreu menos de um mês depois de a maior revenda de maquinários agrícolas dos EUA, a Tractor Supply, anunciar revogação de suas políticas woke. A chamada cultura woke (“acordei”, em inglês) prega o “cancelamento” de pessoas e instituições que não concordam com a definição progressista do que é ter consciência social e racial.
Curiosamente, foi temendo ser “cancelada” por seus clientes do agronegócio, mais identificados com valores conservadores, que a Tractor Supply anunciou o fim de todos os seus programas de diversidade, igualdade e inclusão, assim como a retirada do apoio às causas LGBTQ e relacionadas ao aquecimento global. “Ouvimos nossos clientes que disseram estar desapontados. Levamos muito a sério este feedback. No futuro, garantiremos que nossas atividades e doações estejam diretamente vinculadas ao nosso negócio”, declarou a empresa.
Curso critica privilégios cristão, hétero e branco
No vídeo em que expôs o identitarismo da John Deere, Starbuck contou que fez o curso promovido pela companhia, chamado de Desafio dos 21 Dias da United Way. Nas aulas, precisou ouvir podcasts do tipo Seeing White (Enxergando Branco), que, segundo ele, “é completamente hostil às pessoas brancas”, e o filme “Desconstruindo o privilégio branco”, na mesma linha, da diretora Robin DiAngelo.
O Desafio dos 21 Dias é crítico também do suposto privilégio cristão, que seria um dos cinco tipos mais comuns de privilégios, junto ao das pessoas brancas e aos privilégios socioeconômico, de gênero e heterossexual.
O que a John Deere vinha fazendo, segundo Starbuck, “era uma violação dos valores de seus empregados e clientes, empurrando esses cavalos de troia wokes esquerdistas”. “É hora de mudar, de trazer a América de volta à sanidade, e por isso vamos colocar pressão nas corporações americanas, dizendo a verdade sobre os valores que estão promovendo”, alertou.
Recuo após análise de perdas e danos
Uma empresa do porte da John Deere, com mais de 80 mil funcionários e lucros anuais de US$ 10 bilhões, não toma decisões estratégicas envolvendo temas sensíveis com base apenas em impulso ou convicção de seu CEO.
Para o coordenador do curso de Ciências de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Tiago Pereira de Andrade, o recuo da John Deere no apoio às pautas identitárias provavelmente foi decidido após uma cuidadosa análise de perdas e danos junto ao seu público-alvo, do meio rural, que tradicionalmente é mais conservador.
“Essas decisões só podem ser tomadas com um departamento de pesquisa muito afiado. E mesmo assim, corre-se o risco de errar. Por que toda pesquisa é positivista, ela prevê alguma coisa, mas existem os fatores imponderáveis”, argumenta Andrade.
Exageros do ativismo teriam cansado o público conservador
Para o professor da ESPM, que é doutor em Ciências Sociais e mestre em Comunicação, não há como voltar atrás nos direitos conquistados pelas minorias desde o início dos anos 2000, em temas relacionados à desigualdade de gênero, discriminação racial, respeito à orientação sexual, inclusão de pessoas com deficiência e combate ao etarismo. Isso seria ponto pacífico, mesmo entre os conservadores.
Mais recentemente, contudo, estaria havendo um cansaço de parte da população com os exageros do ativismo social, que por vezes assume a premissa de que “o mundo inteiro virou progressista”.
Riscos multiplicados por mensagem descolada do público-alvo
As retaliações do público conservador seriam, também, uma resposta à pressão da militância progressista para que celebridades e marcas se posicionem. O erro da John Deere pode ter sido achar que ficaria bem numa roupagem “moderninha”, descolada da visão de mundo de seus clientes.
“As pautas sociais e identitárias são para alguns motivo de consumir e, para outros, motivo para parar de consumir. No caso da John Deere, ela está presente principalmente no campo, que é mais conservador. Faz todo sentido essa tomada de decisão pensando mercadologicamente. Há mais a perder do que a ganhar em ficar apoiando esses eventos e essas pautas identitárias”, sublinha Andrade.
O que não faltam são alertas sobre o campo minado que o engajamento ideológico representa para as corporações. Neste ano, o Fórum Econômico Mundial situou a polarização da sociedade entre os dez maiores riscos para a humanidade, após ouvir 1,5 mil especialistas globais do meio acadêmico, empresarial, governamental e da sociedade civil.
Busca de sinergia com clientes
A John Deere teria ignorado esse risco e viu-se, subitamente, diante de uma encruzilhada em que continuar na mesma direção poderia significar elevada perda de dinheiro e valor de mercado.
“O mundo está muito inflamado. Acho que a John Deere, sacando isso, decidiu se reposicionar. Eles devem ter mapeado e percebido o risco de queda nas vendas”, avalia Mariana Munis, professora de Marketing da Universidade Presbiteriana Mackenzie em Campinas (SP). Na avaliação de Mariana, em vez de trabalhar com uma pauta social identitária, faz mais sentido que a John Deere busque temas que tenham sinergia com seu público-alvo.
“Incentivar as mulheres no campo não é uma pauta que fere. Agora, quando você muda do oito para oitenta, não falava de LGBTQ e começa a falar, você causa estranhamento tanto no público conservador que comprava de você como também no público LBGTQ, que pode dizer: nunca comprou da gente e agora quer nosso ‘pink money’”, diz.
Quem atua no marketing rural está acostumado a embates e polêmicas envolvendo transformações na ciência dos alimentos e na forma de produzir. Antes, argumentos técnicos e científicos eram invocados para fazer prevalecer um ponto de vista; agora a disputa migrou para o campo dos valores e obter respostas apaziguadoras ficou mais difícil.
Movimentos libertadores que viram opressores
O publicitário José Luiz Tejon, sócio-diretor da agência Biomarketing, e um dos fundadores da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agro (ABMRA), lembra da “oposição gigantesca” à introdução das sementes geneticamente modificadas no país. “Ali tinha relação com a ciência. Quando vamos para a intepretação de valores, o mundo está cada vez mais carregado de segmentos radicais, que entendem que quem não participa daquela visão deve ser atacado nas redes sociais, com bullying, memes, etc”.
“É necessário que a marca tenha um posicionamento evolutivo, sustentável, social, preocupada com os ângulos da efetiva luta contra a desigualdade humana, no sentido superior da palavra. Esse posicionamento claro irá defendê-la de movimentos que talvez desejem que um ângulo do planeta se sobressaia e oprima os demais. Às vezes é um movimento libertador, porém opressor”, afirma.
O que não pode haver, diz Tejon, é um “terrorismo mental”, praticado por quem deseja impor sua visão de mundo aos diferentes. “Deve-se sim apoiar programas que melhorem a vida das pessoas, que combatam a exploração e a escravização, mas cuidado com os modismos dos movimentos, de qualquer lado que venham”, aconselha.
John Deere teria escolhido o caminho do equilíbrio
O freio de arrumação acionado pela John Deere pode apontar o caminho do equilíbrio, na avaliação de Mariana Munis, da Mackenzie. Ela compara as disputas entre conservadorismo e progressismo como um pêndulo. Até o início dos anos 2000, os conservadores conduziam a agenda; depois, com o advento das mídias sociais, a “bola da vez” passou às minorias e suas causas.
“Neste pêndulo, as pessoas estão indo de novo pra um lado mais conservador, mas não tão conservador quanto antes. É um conservador mais equilibrado e é exatamente o que a John Deere está fazendo: eu sou uma empresa conservadora, mas que não minimiza a voz das pautas LGBTQ ou identitárias. Eu quero ter um discurso mais ameno, um discurso mais pacífico, sem precisar me aprofundar em nenhuma das causas”, conclui.