"In claris cessat interpretatio". Na clareza, é desnecessária a interpretação. Essa máxima do Direito antigo está sendo resgatada no processo legislativo brasileiro como forma de tentar pôr limites ao ativismo judicial crescente no país.
Na ponta de lança dessa contraofensiva está o setor agropecuário, um dos mais afetados pela insegurança jurídica causada por leituras conflitantes e inovadoras de um mesmo texto legal, por vezes já estabelecido há décadas.
“Estamos realmente tendo que escrever o que já foi dito, mas de forma mais clara, mais contundente. E isso é necessário para limitar a interpretação da lei, para deixá-la o mais literal possível”, diz o deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA).
Talvez o exemplo mais emblemático da necessidade de criação de nova lei para esclarecer o que já estava implícito em outra lei esteja no marco temporal para demarcação de terras indígenas. Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou audiências de conciliação para tentar superar um impasse que ele mesmo criou em setembro do ano passado, ao decidir revogar o marco temporal.
STF inovou em interpretação de texto da língua portuguesa
Na ocasião, o STF fez uma releitura do texto constitucional, que diz, no artigo 231, que os índios têm direitos originários “sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las”. Até então, tinha-se que o verbo no presente deixava claro que não era possível direito reivindicatório dos indígenas de áreas que já não ocupavam há 100 ou 200 anos. Tal critério, inclusive, balizou a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, em 2009.
A insegurança jurídica criada pelo STF levou o Congresso a aprovar nova lei, mais explícita. Foi preciso derrubar o veto do presidente Lula para fazer valer a Lei 14.701/2023, que definiu que as “terras indígenas tradicionalmente ocupadas” são aquelas “habitadas e utilizadas” pelos índios para suas atividades produtivas na data da promulgação da Constituição.
Para Lupion, a língua portuguesa nunca permitiu a possibilidade de outra leitura do texto constitucional. “Mesmo assim”, diz ele, os ministros do STF “fizeram uma chicana jurídica para conseguir essa interpretação, e o papel aceita tudo. E a gente tem a obrigação de evitar isso e deixar a lei mais literal e clara possível”.
Projetos reforçam necessidade de punição a invasores
Outra iniciativa que buscou dar mais clareza aos preceitos legais está no PL 709/2023, aprovado pela Câmara, que impede que invasores de terras recebam benefícios e auxílios do governo federal, como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida.
Neste caso, trata-se de reforço nas punições já previstas na Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629/1993), que diz que o imóvel invadido “não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro do prazo, em caso de reincidência”.
A mesma lei, no parágrafo sétimo, declara que será excluído do programa de reforma agrária quem “for efetivamente identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural”.
Na prática, contudo, o governo do presidente Lula faz vista grossa para o dispositivo legal e premia invasores, que são os primeiros na fila da distribuição de lotes pelo Incra. Essa lógica ficou clara no destino de uma fazenda da Embrapa, invadida em 2003, e que no início deste ano passou oficialmente às mãos dos militantes do MST, com festa e presença de autoridades federais.
Rio Grande do Sul é primeiro estado a ter lei própria contra invasores
No início de julho, o Rio Grande do Sul se tornou o primeiro estado a ter lei própria para punir ocupantes e invasores de propriedades rurais e urbanas. Basicamente, é uma reprodução regional das punições previstas no PL 709/2023, aprovado pela Câmara.
O deputado estadual Gustavo Victorino (Republicanos) diz que a iniciativa visa coibir uma indústria de invasões. “Infelizmente, a gente tem uma distorção brutal no Brasil, e precisamos de uma lei para que as pessoas cumpram a lei que já existe. É um pleonasmo legislativo, digamos, que está sendo necessário”, aponta Victorino.
A lei gaúcha foi contestada pelo diretório nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), que ajuizou ação no STF argumentando inconstitucionalidade, por invadir competência da União em assuntos de Direito Civil e Penal.
O risco da leitura romantizada do ato criminoso de invasão
A leniência do Judiciário com os invasores agrava o quadro da insegurança jurídica. Para o jurista Pedro Puttini Mendes, professor de Direito Agrário e Ambiental em Mato Grosso do Sul, ao relativizar o direito de propriedade ou ao negociar o cumprimento das reintegrações de posse, o Judiciário tem colocado em risco “uma das estruturas constitucionais mais basilares de toda a sociedade, o direito à propriedade privada, conquista histórica dos direitos humanos, que garantiu aos cidadãos suas casas antes pertencentes aos reis”.
“Não vivemos mais em tempos medievais de disputas por terras com uso da própria força ou das próprias razões. O ato de invadir ou ocupar local que tem dono é ato criminoso. A romantização de invasões mudando o nome para ‘ocupação’ ou ‘retomada’ é algo extremamente perigoso, sobretudo por colocar vidas em risco”, sublinha Mendes.
Assim, as chamadas “ocupações” para fazer cumprir função social da propriedade são uma falsa narrativa, acrescenta Mendes. “É uma ‘luta’ sem respaldo jurídico, que tem feito apologia à prática de crimes como o exercício arbitrário das próprias razões (artigo 345, Código Penal) e invasão de propriedade (artigos 150, 161, 202, Código Penal), estimulando violência e desordem nas áreas rurais, prejudicando a vida de muitas famílias”, reforça o jurista.
Na contraofensiva do agronegócio ao ativismo judicial, há uma série de projetos de lei em análise no Parlamento. As propostas incluem:
- um Cadastro Nacional de Invasores;
- a tipificação do crime de invasão como de terrorismo;
- a autorização para proprietários pedirem apoio policial para retirada de invasores, mesmo sem ordem judicial;
- a elevação da pena para o crime de esbulho possessório; e
- o projeto que obriga movimentos sociais a ter CNPJ, dentre outros.
Cláusulas gerais, mais abertas, fomentam o ativismo judicial
Diminuir ao máximo o espaço para “interpretacionismos” e inovações na leitura dos dispositivos legais representa uma guinada em relação à prática predominante após a Constituição de 1988.
Desde então, o que vinha prevalecendo era a técnica legislativa de cláusulas gerais, que deixa maior abertura para os juízes aplicarem o Direito na análise de cada caso concreto. Para o jurista Albenir Querubini, presidente da União Brasileira dos Agraristas Universitários (UBAU), o que se semeou nos últimos anos não gerou bons resultados.
Exemplo disso ocorreu durante a pandemia de Covid-19, quando o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou que qualquer reintegração de posse deveria ser precedida por diálogo numa comissão de conciliação. O que era provisório foi sendo consecutivamente prorrogado, como regra permanente.
“Esta perigosa utilização de ‘suspensão de segurança’ por decisões singulares de presidentes de tribunais traz uma verdadeira insegurança jurídica para o campo, estimulando condutas invasoras que serão ‘pacificadas’ pelo Judiciário em prejuízo do direito à propriedade privada”, destaca Querubini.
“Isso vai de encontro ao que está previsto no Código Civil e no próprio Código de Processo Civil, que garantem o direito de tirar quem invadiu de uma propriedade, especialmente a propriedade produtiva”, acrescenta.
Pergunta áurea: onde está isso na lei?
Não faltam exemplos de leis flexibilizadas a gosto dos magistrados. O ministro do STF Edson Fachin, por exemplo, decidiu que a proibição de desapropriar terra invadida só se aplica quando essa ocupação atingir uma porção significativa do imóvel, a ponto de alterar sua produtividade.
“Onde está isso na lei? Quem define a regra é o legislador. Aí o Judiciário vem e cria uma regra inexistente. Uma coisa é você interpretar, outra é criar um texto que não existe na lei”, afirma o advogado Eráclito Higor Noe, especializado em questões agrárias e que atua em Goiás.
Noe observa que a legislação que rege a vida do setor agropecuário está excessivamente pulverizada em várias leis e decreto acumulados ao longo de décadas. O Estatuto da Terra, por exemplo, é de 1964. Ele defende a criação de um código agrário que sirva como grande arcabouço legal, a exemplo do Código Civil.
“Você pega todo esse cenário de questões ambientais e sociais envolvendo a disputa de terras e grilagens e leva isso para o Judiciário. Você dá uma margem gigantesca ao ativismo judicial, dá margem demais a interpretações. Em todo cenário econômico a segurança jurídica é essencial. A gente fala de investimentos bilionários, então não dá para brincar nesse tipo de atividade. Acredito que uma das formas de melhorar isso seria a modernização de nossa legislação, que é um código de direito agrário, um código de direito aplicado ao agronegócio. Isso ajudaria muito”, diz Noe.
Lupion aponta "consórcio" entre Judiciário e atual governo
O próprio advogado concorda, contudo, que no governo petista há poucas chances de uma iniciativa dessas prosperar. Para o deputado Pedro Lupion, da FPA, o desafio nos próximos meses será garantir o direito à propriedade aprovando regramentos que garantam o “que o constituinte colocou lá atrás, na Constituição.
“O Judiciário tem um consórcio com o atual governo, atende ideologicamente e politicamente esse governo, e a gente tem que ficar refazendo o nosso papel para que a lei seja cumprida”, conclui.
Garantir a segurança jurídica no país, com leis mais assertivas e de aplicação indiscutível, pode abrir caminho para acelerar o desenvolvimento. Nesta semana, ao participar do congresso da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, enfatizou a relação direta do respeito às leis com o avanço da economia.
“É um absurdo nessa altura estarmos discutindo segurança jurídica. Não existe progresso sem ordem, como diz nossa bandeira. A partir do momento em que tem a segurança jurídica, vem o investimento”, afirmou, lembrando que o agronegócio de São Paulo garantiu, somente no primeiro semestre, R$ 11 bilhões de superávit na balança comercial, representando 42% da pauta de exportações do estado.
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