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Há cerca de um mês o produtor belga Thierry de L’Escaille veio ao Brasil participar de um evento em Campinas, o OneAgro, que tinha como proposta conectar grandes líderes do setor para discutir as transformações do agronegócio. Num tom quase profético, L’Escaille, que é secretário-geral da Associação Europeia dos Produtores Rurais (ELO), se queixou do excesso de restrições pretendidas pela Comissão Europeia para fazer os produtores se adequarem a metas de reduções de carbono. E alertou que a pressão sobre os agricultores poderia gerar revolta, por ameaçar tirar muitos da atividade, porque “se não ganharem para sobreviver, não haverá ninguém para cultivar a terra”.
Poucas semanas depois, estourou a fúria dos produtores holandeses em protestos contra regulamentações pesadas para fazê-los se enquadrar em metas ambientais de redução de emissões de nitrogênio, em função da criação intensiva de gado e do uso de fertilizantes.
Dentre os planos do governo holandês, está um programa de 22 bilhões de euros voltado a cortar as emissões de nitrogênio em 50% até 2030. Para tanto, em algumas regiões os produtores teriam de reduzir drasticamente suas operações ou seriam mesmo obrigados a fechar fazendas, no caso daqueles vizinhos a áreas de preservação. Os protestos contra as regras ambientais mais rígidas levaram produtores às ruas também na Itália, França, Alemanha, Espanha e Polônia.
Ainda antes das manifestações, em entrevista à Gazeta do Povo, L’Escaille argumentava que os líderes de Bruxelas estão considerando apenas uma crise, a das mudanças climáticas, ignorando a crise igualmente urgente da produção de alimentos. Dentre os equívocos, disse o líder europeu, está a proposta de transformar 25% da área agricultável do continente em produção orgânica. Na conversa, o belga elogiou a sustentabilidade do sistema de produção agrícola brasileiro, que disse “respeitar muito”, mas que é alvo de políticos e ONGs que alegam que “a aderência às leis no Brasil não é forte o suficiente”.
Contatado nesta semana para comentar os desdobramentos da crise envolvendo os produtores na Europa, L’Escaille “admitiu”, com bom humor, ter dons premonitórios quanto à revolta dos produtores rurais. O restante da conversa ocorreu na visita do produtor francês ao Brasil, no mês passado. Confira a entrevista.
O que tem acontecido nos últimos dias na Holanda e em outros países europeus deveria fazer as autoridades repensarem suas políticas em relação aos produtores? O senhor advertiu, quando em visita ao Brasil, que poderia haver uma revolta do setor, não foi?
Sim, tem razão, eu antevi durante visita a Campinas que poderia ocorrer algo do gênero. Os políticos não oferecem perspectivas a não ser, em alguns casos, a oportunidade de encerrar os negócios. Eu estava conversando com o presidente de uma federação de agricultores, há cerca de uma hora, que perguntava sobre o que fazer quando tantos produtores estão dizendo que não têm opção, a não ser vender suas propriedades para não ir à falência.
Em relação à Holanda, não estou seguro que as autoridades da Comissão Europeia não estejam dizendo que se trata de um assunto interno, quando na verdade não é. Tudo o que está acontecendo é consequência de regras cada vez mais restritivas no uso de nitratos e outros insumos, como resultado das regulações de Bruxelas e do Green Deal (Pacto Ecológico Europeu). A questão é que o braço verde esquerdista na Europa está disposto a reduzir a produção de carne. E a carne nunca esteve tão cara. Isso fatalmente vai resultar num desastre.
Agricultores estão sendo "triturados" por pressões ambientais
Por outro lado, se os produtores não puderem fertilizar suas terras adequadamente, haverá uma redução na produtividade e na qualidade das colheitas, com consequências negativas também na produção de carne – menos bovinos, menos suínos, menos frangos. Na situação atual, os produtores estão precisando desembolsar grandes quantidades de dinheiro para dar conta dos aumentos dos insumos. Eles estão sendo triturados. E isso explica as manifestações e revoltas em países como a Holanda. A Bélgica irá na mesma direção.
Estamos vivendo um momento crucial para que as pessoas entendam a importância do trabalho dos agricultores?
O momento é crítico, estamos numa encruzilhada em que os produtores enfrentam uma série de dificuldades. São três crises: alimentar, de sustentabilidade e climática. E em adição a isso, há uma espécie de crise de governabilidade, por que não conseguimos resolver todas as questões na Organização Mundial do Comércio e precisamos realmente de governos neste tempo de globalização da agricultura. A crise atual demonstra quão globalizados nós estamos. Fica claro que quando há problemas na Ucrânia e na Rússia, isso gera enormes consequências no mercado mundial. Estamos vendo uma escalada no preço das sementes, da energia, dos fertilizantes e dos produtos químicos.
Crise climática não pode ignorar crise alimentar
A situação dos produtores é bem delicada. Devido à volatilidade nos preços dos fertilizantes e dos insumos, precisamos investir muito dinheiro para aumentar a produção. Mas não sabemos se poderemos cobrir os custos quando os preços retrocederem, quando a guerra da Ucrânia terminar. E isso levará tempo. Não basta a guerra terminar para que a Ucrânia consiga reabrir o complexo portuário de Odessa. Serão necessários pelo menos quatro a seis meses para reabrir. Os caminhos marítimos realmente são uma incógnita e os produtores de certa forma são reféns dessa situação. Então, é crucial que nossos governos e o povo entendam que não existe apenas uma urgência, mas três: sustentabilidade, clima e produção de alimentos. As três precisam ser tratadas e resolvidas juntas.
Se você não enfrentar a crise alimentar, não teremos tempo para resolver a crise climática nem a crise de sustentabilidade, porque não sobrará mais nenhum agricultor para fazer o trabalho que precisa ser feito.
Os produtores brasileiros e europeus têm lutas parecidas?
Acredito que compartilhamos valores e temos uma visão comum de algo que é completamente subestimado, que é a forma como os produtores brasileiros estão sujeitos às leis. E não somente isso, como também a forma como administram a sustentabilidade em suas propriedades. Eu tive a oportunidade de visitar muitas fazendas no Brasil e posso dizer que no país, em muitas regiões, quando você cultiva 80% de sua área, e tem que proteger 20%, bem, não estamos ainda nesse estágio na Europa. E eu respeito muito isso. Claro que nesse cenário de disputa, há políticos e ONGs que vão dizer que a aderência às leis no Brasil não é forte o suficiente, e que não podemos confiar nessas leis, enquanto na Europa nos encontramos sob regulamentos muito severos.
Um exemplo é a discussão do Green Deal. A ideia era destinar 10% das áreas para preservação e, no futuro, tentar chegar a 30%. Parece um objetivo razoável, mas 30% pode ser demais, talvez não seja uma ideia tão boa. Nós precisamos de áreas preservadas, precisamos de reservas, mas também precisamos de pessoas para administrar essas áreas. Os produtores estão capacitados para assegurar essa qualidade do meio ambiente. Nós deveríamos dar-lhes boas vindas, deveríamos dizer ‘precisamos de vocês, parabéns, estão fazendo um bom trabalho’, e não sempre criticá-los. Talvez o que esteja faltando hoje é esse reconhecimento.
Algumas pressões sobre os produtores são indevidas, fora da realidade?
Sim, há realmente alvos indevidos, acontece com algumas narrativas e, na política, eles têm ido longe demais. Na política, era sempre assim: eles sempre iam mais adiante, e depois recuavam. Hoje eu tenho a percepção, na verdade, de que eles querem ir o mais longe possível, por estarem enfrentando uma urgência. E estão profundamente convencidos de que é preciso segurar o aquecimento climático e a perda da biodiversidade. Então, existe uma forte crença de que enfrentamos uma urgência, mas, na verdade, são três urgências. E também temos a urgência de tornar a vida dos produtores possível, e enxergar os agricultores como atores positivos nessa equação.
Há um risco de repetição da Primavera Árabe
De certa forma, toda a situação da guerra, da crise alimentar, acendeu um alerta. As pessoas precisam comer, não dá para dar como favas contadas de que o alimento estará amanhã à mesa?
Eu realmente compartilho dessa opinião. Nós temos advertido as instituições, mesmo reconhecendo a urgência da crise climática e de biodiversidade, estamos apelando à Comissão Europeia para que leve em consideração que (com redução da área plantada) nós produziríamos e exportaríamos menos, e isso desestabilizaria o mercado global de alimentos. E agora isso é evidente, devido ao absurdo desta guerra entre Rússia e Ucrânia. Quando o mercado global de alimentos é desestabilizado, isso gera consequências muito pesadas. Poderá resultar na mesma consequência da época da Primavera Árabe no Norte da África, cerca de dez anos atrás, quando tivemos as revoluções por causa de comida.
Se não estivermos dispostos a prover a comida aos povos que eram dependentes da comida exportada pela Rússia e pela Ucrânia – norte da África, Sudão e Oriente Médio – se não tomarmos medidas que são urgentes, vamos enfrentar novas revoluções em nível mundial. E temos que ser muito cautelosos em relação a isso.
Não estamos dizendo que não é preciso levar em consideração a crise de sustentabilidade, de biodiversidade e mudança climática. Nós concordamos que são questões a ser enfrentadas e estamos prontos para fazer o trabalho. Mas de uma maneira apropriada e razoável, levando em conta que precisamos ter as ferramentas para isso, que precisamos de oportunidades de produção, e que não devemos diminuir nossa produção, se não haverá um outro problema, de mais desestabilização do mercado.
Aumentar área de orgânicos para 25%, por decreto, é ingenuidade
O senhor disse que há propostas na mesa para reduzir a produção na Europa?
Sim, a Comissão Europeia, por meio do Green Deal, propôs mudar a operação das fazendas, do convencional para orgânico, num nível de 25%. É claro que isso vai reduzir o potencial de produção. A Comissão discorda, diz que não haverá menor oferta de alimentos. Mas isso é ingenuidade, por que nós que somos fazendeiros, sabemos que não é possível praticar agricultura orgânica em todos os lugares, em qualquer condição. Eu conheço a terra, eu tenho uma propriedade onde não posso cultivar orgânicos, porque é úmida demais, clima temperado demais; geralmente você precisa de condições um pouco mais secas para fazer isso. Essa história de chegar aos 25% de orgânicos fez muita gente se entusiasmar para entrar no mercado. Durante a Covid, as pessoas estavam comprando no vizinho, iam pessoalmente à fazenda orgânica. Mas agora elas estão de volta ao trabalho. Não tem mais tempo para ir às fazendas. E essas propriedades estão enfrentando enormes dificuldades, dificuldades de mercado.
Tenho encontrado excelentes produtores orgânicos, que fazem um trabalho incrível, e eles estão me dizendo: ‘Thierry, temos que abandonar os orgânicos, porque não dá retorno, não está dando lucro’. Plantar orgânico significa três a quatro toneladas a menos de produtividade em relação às sementes convencionais. E estamos pagando para produzir menos, então todos os esforços, todos os investimentos não estão dando o retorno adequado.
Confiar nos subsídios é caminhar para a falência
Alguns podem dizer: ‘ah, vamos resolver isso cobrando taxas!’ Mas eles jamais vão ganhar do mercado. Taxas, sobretaxas, subsídios, nunca estão aí para sempre. Ficam por um determinado tempo e daí as coisas mudam. Se você tiver que tocar um negócio com base em subsídios, a longo prazo, nunca faça isso, você irá à falência. Pegar subsídios que estão aí para uma transição, seria estúpido não pegar, é outra coisa. Há um perigo nessas ideias de que vamos preservar o mundo, teremos menos pesticidas graças aos orgânicos, teremos um ambiente melhor devido à comida verde, etc. Não é bem assim.
É o mesmo discurso, lá na Europa e aqui no Brasil. Os produtores não se sentem compreendidos, não se sentem apoiados. É preciso partir para uma nova solução, temos que oferecer ao mercado algo novo. É algo pós-convencional, inspirado pela agricultura regenerativa. Deveríamos ir para algo mais inteligente, mais sustentável, aproveitando tudo o que temos, produção com baixo carbono e outras técnicas, há muitas oportunidades. Vamos usá-las, mas de forma inteligente, e apenas se trouxer resultados aos produtores. O pior cenário é os produtores não ganharem dinheiro, não ganharem para sobreviver. Então não haverá ninguém para cultivar a terra. Para administrar a mudança climática no campo, você terá de entregar isso para uma agência, um escritório, e custará uma fortuna. Então, vamos trabalhar com a população rural, com os produtores, com os proprietários, e utilizá-los onde eles estão.
O Brasil é praticamente o único país do mundo que chama os pesticidas de agrotóxicos. Como o senhor vê essa questão?
É toda uma narrativa desenvolvida por ONGs, algumas muito especializadas em combater os pesticidas. Como produtor, eu me sinto incomodado ao ser acusado de envenenar o consumidor. Somos responsáveis, sabemos como pulverizar, sabemos o que estamos fazendo. Pode haver algumas ovelhas negras em qualquer segmento da sociedade, mas a grande maioria dos produtores são bons profissionais e estão fazendo um bom trabalho. E, portanto, não é justo dizer que é agrotóxico e que os produtores estão utilizando veneno. Não, eles estão usando o que é permitido, o que é controlado pelo governo e pelas agências.
ONGs abusaram no discurso contra o glifosato
Tome como exemplo o debate sobre o glifosato. O glifosato é conhecido em nossa comunidade por ser um dos produtos de proteção de plantas menos impactantes e menos perigosos no mercado. Algumas ONGs apareceram com estudos alegando que o glifosato estava envenenando as pessoas. Mas a situação deles não ficou muito boa porque a agência de segurança alimentar apresentou outros estudos que mostram que não há absolutamente qualquer correlação entre câncer e glifosato. Esse povo não deveria abusar desse tipo de argumento. É um absurdo, por que o glifosato é necessário para muitos produtores orgânicos combaterem as ervas daninhas.
O produtor orgânico não quer revirar a terra, mas sem o glifosato não tem como. E não há alternativa séria ao glifosato. E não existe evidência real dos danos alegados. Dou esse exemplo para dizer que, em meu ponto de vista, este debate é mais sobre política, sobre opinião e, às vezes, convicção religiosa: ‘esse produto é perigoso porque eu digo que é perigoso’. Não pode ser assim. Nós produtores somos profissionais e trabalhamos com evidências científicas. E não há razão para nos acusar de estar envenenando a sociedade.