Perfil do consumidor de café brasileiro aumenta na “terceira onda”, que valoriza qualidade| Foto: José Fernando Ogura / AEN
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De cada dez xícaras de café ingeridas no mundo, quatro tiveram a matéria-prima produzida no Brasil. Nenhum país produz tanto café-commodity, mas também nenhum outro retira das lavouras tantos cafés especiais e com certificação de sustentabilidade. Foi aqui que se inventou no final dos anos 90 o concurso Cup of Excellence, hoje reproduzido globalmente para premiar e destacar as melhores sensações e sabores da bebida. Por aqui, a cadeia produtiva se distingue por cumprir rígidas leis ambientais e trabalhistas.

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Quando se fala de café de qualidade mundo afora, contudo, a imagem na cabeça dos consumidores não costuma estar associada ao Brasil, mas à Colômbia, à Etiópia, ao Vietnã e outros países produtores. Dentre players importantes da cafeicultura nacional ouvidos pela Gazeta do Povo, a constatação é de que não basta que o mercado interno de cafés especiais cresça mais de 10% ao ano, que o país tenha 34 diferentes regiões produtoras, ganhe os principais prêmios internacionais de qualidade do café, ou, ainda, que exiba 12 denominações de origem e indicações geográficas.

“É preciso um esforço de marketing, e não é só do café. Quando falamos de país, o agro vai junto. Há toda uma falta de conhecimento ou distorção da realidade brasileira. O Brasil, a cadeia produtiva como um todo, precisa unificar a narrativa de sustentabilidade e de humanização do agro”, diz Marcos Matos, diretor-executivo do Conselho dos Exportadores de Café (Cecafé). Ele defende que sejam contadas as boas histórias do agro, das famílias, das práticas sustentáveis de manejo e preservação, em vez de divulgar imagens de dezenas de máquinas perfiladas no campo, “que não é o que o consumidor quer ver, e pode parecer até meio arrogante”.

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Marketing alçou café da Colômbia a outro patamar

Quando se trata de marketing do café, é impossível não citar a Colômbia, cujo case é objeto de estudo do primeiro ano do curso de marketing da escola de negócios da Universidade de Harvard.

Ainda nos anos 50, os produtores colombianos lançaram uma campanha global agressiva para diferenciar o principal produto de exportação do país. Foi criado o personagem Juan Valdez, um camponês típico, que, com sua mula, representa o selo de garantia da Federação Nacional dos Cafeicultores da Colômbia. E o tal Valdez patrocinou alguns dos eventos mas icônicos dos Estados Unidos, como o torneio de tênis US Open, as 500 milhas de Indianápolis e o maior evento esportivo do país, o Super Bowl (final do campeonato de futebol americano).

Na última década, os gastos dos colombianos com marketing minguaram. Mas o efeito Juan Valdez segue dando frutos.

Mais recentemente, para atender a demanda internacional, a Colômbia tem recorrido às safras brasileiras. Em tese, os colombianos compram o café do Brasil, de qualidade convencional, para abastecer o mercado local, enquanto o produto juanvaldense é exportado. Na prática, muito café brasileiro acaba sendo vendido apenas com o rótulo do país vizinho. O selo “Café de Colômbia”, por si só, já agrega de 60 a 80 dólares por saca vendida nos Estados Unidos.

Logo do café da Colômbia explora imagem de produto artesanal e sustentável| Foto: Divulgação / Federação Nacional dos Cafeicultores da Colômbia
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“Me revolta esse negócio”, diz Pavel Cardoso, presidente da Associação da Indústria Brasileira do Café (Abic). “Por que diabos o Brasil não consegue ter essa equivalência objetiva de preços com o café da Colômbia? É uma fábula de dinheiro que eles investem em marketing, que faz essa percepção de valor chegar até o consumidor. Você não visualiza nas prateleiras americanas o brazilian blend. Mas você visualiza cada vez mais indústrias americanas terem o colombian blend. Agora, se o Brasil é o país que mais planta e é o maior exportador, porque a gente não tem essa agregação de valor lá fora? Falta marketing para o café brasileiro”, assinala Cardoso.

Ora, se marketing é o problema, não caberia à própria indústria do café enfrentar o desafio? Cardoso justifica que as indústrias têm fôlego financeiro enxuto, suficiente apenas para atuar no marketing interno. A projeção da marca Brasil seria desafio de outra dimensão. “Isso não é um projeto só da Abic, ou das outras entidades. É um projeto de país. Tem que ser desenvolvido por todas as entidades que compõem o segmento do café, por todos os organismos que envolvem a cadeia, deve haver um entendimento uníssono de que o café brasileiro tem que fazer parte de uma estratégia global para agregar valor ao nosso produto, para  que o Brasil possa ficar com a maior parte dessa receita”, afirma.

Não é que o café brasileiro esteja totalmente descoberto de esforços de marketing. A Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), em parceria com a Agência Brasileira de Promoção das Exportações e Investimentos (Apex Brasil, ligada ao Ministério das Relações Exteriores), mantém desde 2008 a campanha “Brazil, The Coffee Nation”, divulgando as qualidades da bebida em concursos, feiras internacionais e campeonatos de barismo, além de visitas de compradores, jornalistas e formadores de opinião às propriedades cafeeiras.

Estande do Brasil na Exposição Mundial de Cafés Especiais em Tóquio, no Japão, em 2021| Foto: Divulgação / BSCA

“Fazendo uma análise histórica de quanto a gente caminhou nesse mercado de cafés especiais, eu ousaria dizer que hoje o Brasil está sentado na cabeceira do mundo”, destaca Vinicius Estrela, diretor-executivo da BSCA. Por trás do mote “Nação do Café”, além das 50 milhões de sacas colhidas por ano, está o fato de o Brasil ter atualmente o maior número de variedades de cafés semeadas (mais de 150) e o maior número de terroirs (34 regiões produtoras). “Estamos falando de 8 milhões de sacas somente de cafés especiais. A qualidade vem consistentemente aumentando, dito não pelos brasileiros, mas pelo público internacional. Esse aumento do volume e do interesse tem reflexo no mercado brasileiro também, basta ver a quantidade de cafeterias, que tem aumentado na taxa de dois dígitos anualmente. É um fenômeno da qualidade”, sublinha Estrela.

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Apesar dos saltos qualitativos, a publicidade do café brasileiro não anda no mesmo ritmo. Desde 2015, o Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé) – que gira R$ 6 bilhões por ano – não gasta um tostão com a promoção e divulgação do café nacional. O fato foi apontado por auditoria do TCU, no ano passado, que mostrou ainda que 99,4% da verba é destinada para financiamentos e apenas 0,15% vai para pesquisa e capacitação, ao mesmo tempo em que há recursos ociosos.

Em 20 anos, a produção de café nacional galgou patamares de dar inveja à Colômbia ou qualquer outro concorrente. Em meados dos anos 90, o Brasil produzia 25 milhões de sacas de café por ano, contra 16 milhões da Colômbia. Em 2020, batemos na casa de 60 milhões de sacas, enquanto a Colômbia retraiu para 12 milhões.

Para proteger mercado e produção, Brasil não importa cafés verdes

Para Marcos Matos, do Cecafé, além de melhorar a imagem lá fora, falta também ao café brasileiro estabelecer uma plataforma exportadora mais eficiente. E, para isso, seria preciso mudar o regramento atual, que, por questões sanitárias e de proteção de mercado, praticamente não permite que o país importe café verde para fazer blends. “As análises de risco feitas por pesquisadores de universidades não detectaram nenhuma praga que nos ameaçaria. E o café importado chega em contêiner, vai direto para a indústria, não fica passeando nas regiões produtoras. É mais uma questão de entendimento de ter salvaguardas, para não baixar o preço no mercado interno”, explica.

Sem esse ajuste, pondera Matos, fica mais difícil atrair operações como a da Nespresso, da Nestlé, que produz cápsulas com edições especiais, dedicadas às origens do café, e, portanto, precisa de café verde de vários países. “Para atrair uma plataforma como essa, exportadora, maior indústria de cápsulas do mundo, a gente tem que ser flexível e precisa de uma visão mais pró-mercado. Imagine que tivemos duas safras seguidas com problemas climáticos no café arábica. Uma indústria, em qualquer parte do mundo, para fazer investimento, quer segurança da oferta”, destaca.

Quanto mais recursos o café ainda poderia render ao Brasil? Na avaliação de Antonio Fernando Guerra, chefe-geral da Embrapa Café, o percentual de 18% de cafés diferenciados ou não commodity já é um marco, mas o ideal seria elevar essa participação a 40%. Como dirigente da empresa pública de pesquisa, Guerra integra o conselho do Funcafé. Ele defende a volta dos investimentos do fundo em marketing. “Hoje podemos fazer o café que a gente quiser, inclusive um café exatamente como o colombiano. Produzimos um café com responsabilidade ambiental, social e econômica totalmente diferente do que é feito lá fora. Somos muito diferenciados, inclusive em relação à Colômbia. Aquela imagem (do personagem Juan Valdez) colocou o café da Colômbia como o melhor do mundo, quando, na realidade, não é verdade”, observa Guerra.

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Alemanha domina o segmento mais rentável do café

Já virou lugar-comum comparar a rentabilidade do café entre Brasil e outro país, a Alemanha. Enquanto os brasileiros abastecem o mundo com a commodity de mistura-base, cultivando 2 milhões de hectares de café, os alemães, sem cultivar um hectare sequer, se especializaram em fazer blends de café de várias origens e faturam alto reexportando o produto, seja in natura, seja beneficiado ou industrializado. Só do Brasil os alemães importaram de janeiro a novembro 6,33 milhões de sacas, mantendo-se como segundo maior cliente de nosso café verde, atrás apenas dos Estados Unidos, com 7,35 milhões de sacas. Estrela, da BSCA, aponta que o domínio alemão como hub logístico já foi até mais forte, e que recentemente tem havido aumento das compras diretas de café brasileiro por parte da Espanha, Polônia, Portugal e Grécia.

Permanece, contudo, o contraste entre os embarques de café verde e café torrado. As exportações totais do café brasileiro torrado são quase nulas: apenas 0,1% do total de 36 milhões de sacas já embarcadas neste ano. Em termos de receita, dos US$ 6,2 bilhões faturados pelo Brasil em 2021, 5,5 bilhões vieram do café verde, 620 milhões do café solúvel e apenas 25 milhões do café torrado e moído.

Não é tão simples carimbar o passaporte do café torrado. Enquanto 95% dos destinos aplicam taxa zero para importação do café verde, o jogo muda para o café torrado, que é submetido a um “pedágio” médio de 12%, podendo chegar a 36%. “Eles querem que chegue a commodity no estágio mais bruto, para que eles façam a agregação, seja para o café, seja para a soja ou outro tipo de produto. Esse é o jogo”, sublinha Renato Melo, gerente da Coomap, cooperativa que reúne 800 pequenos produtores do Sul de Minas Gerais.

Em viagem recente de negócios à Noruega, Melo se espantou com o preço cobrado por uma xícara de café no país nórdico: R$ 25,00. Em que pese a diferença de câmbio e custo de vida, o gerente da cooperativa não resistiu em fazer uma rápida conta.

“Um saco de café de 60 kg, quando você torra, ele perde 20%, dá 48kg. Hoje, uma boa xícara de café leva oito gramas. Ou seja, um saco de café torrado rende seis mil doses de café. Olha o valor agregado”, aponta.

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Desafio do café é não deixar a qualidade diminuir no pós-colheita, como o processo de torra| Foto: Divulgação / The Coffee

Café vive terceira onda, de descoberta sensorial

Na ponta do consumo, o café passa por uma terceira onda. Que estaria apenas no começo, segundo Carlos Fertonani, CEO da The Coffee, rede de minicafeterias de cafés especiais criada em 2018, em Curitiba, e que hoje já tem 200 lojas, 190 no Brasil e 10 na Europa. Enquanto na primeira onda, dos anos 80 e 90, a preferência era por um café torrado, forte e bem preto - e ruim, acrescenta Fertonani - , a segunda onda, já perto dos anos 2.000, foi marcada pelo Starbucks, e elevou um pouco mais a qualidade do café, ainda servido com muita mistura de chantilly, caramelo e marshmellow, mascarando o sabor original.

A terceira onda, que começou há cerca de dez anos, ainda está para ser surfada, segundo Fertonani. "Ela é mais purista, muito mais voltada para a qualidade do café, por isso não tem muita mistura. E tem a relação de entender quem é o produtor do café, ela tenta aproximar o consumidor do produtor. Não é o café forte brasileiro, não é o café aguado dos Estados Unidos nem o expressinho italiano de um euro. É marcada pela qualidade do grão", destaca o executivo.

Beber café conhecendo mais sobre os efeitos de altitude, clima e variedades, percebendo os nuances de sabor, é algo que vem caindo no gosto do brasileiro. Isso tem propiciado que a The Coffee abra duas novas lojas por semana. A companhia mira ser a marca global mais reconhecida desta terceira onda. O próximo passo, já acertado com investidores, é desembarcar nos Emirados Árabes, no Qatar e no Peru. Apesar do crescimento veloz, Fertonani diz que "disseminar a cultura do café especial não é da noite para dia". Mas garante: "na medida em que as pessoas vão entendendo o que é um café bom, elas não conseguem voltar atrás".

Crescer em especiais, sem descuidar da commodity

Em termos de estratégia para o café brasileiro, buscar aumentar a venda dos cafés com maior valor agregado, no entanto, não deveria levar a um descuido com o mercado já conquistado para a commodity, segundo Raquel Miranda, assessora técnica da Comissão Nacional de Café da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). “Sempre haverá a demanda pelo café commodity. Se o Brasil não atender, outro país vai se apresentar”, diz ela. Em jogo, uma cadeia produtiva que envolve 330 mil produtores e oito milhões de empregos diretos e indiretos.

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A partir de 1º de janeiro de 2023, entra em vigor a portaria 570 do Ministério da Agricultura que estabelece o padrão oficial de classificação do café torrado brasileiro. Os rótulos terão obrigatoriamente de informar a espécie do grão e se cumprem um padrão mínimo de qualidade. Cafés muito ruins vão trazer inscrita a informação “fora de tipo”. Os que insistirem em andar no fio da navalha na “nação do café”, lembra Pavel Cardoso, da Abic, podem estar a um passo de serem excluídos do mercado.