A decisão da Arábia Saudita, maior importador do frango brasileiro, de descredenciar cinco frigoríficos habilitados à exportação teve motivos técnicos, políticos ou foi uma mistura dos dois?
Oficialmente, a exclusão das unidades é resultado da missão que o reino saudita enviou ao Brasil em outubro de 2018. Na ocasião, foram visitados frigoríficos, fazendas e fábricas de ração. O Ministério da Agricultura informou que está examinando o relatório e encaminhará aos estabelecimentos descredenciados as recomendações apresentadas pelos sauditas.
Nesta quarta-feira, o presidente interino, Hamilton Mourão, rebateu com veemência que a decisão saudita esteja relacionada aos planos do governo brasileiro de mudar a sede da embaixada em Israel para Jerusalém.
“Não tem nada a ver com essa questão de embaixada, até porque, qual foi a declaração do nosso representante na ONU? Que existe um Estado de Israel e um Estado palestino, conforme nós reconhecemos desde 1947, então nada mudou”, afirmou. Mourão disse ter recebido dados de que a decisão do país árabe está relacionada ao desejo deles de criarem aves em território nacional. “O dado que eu tenho, que não é confirmado ainda é de que eles pretendem também produzir frangos lá na Arábia Saudita. Óbvio que vai sair mais caro mas eles têm dinheiro”, disse.
Para a ex-secretária de Relações Internacionais do Agronegócio do Ministério da Agricultura, e colunista da Gazeta do Povo, Tatiana Palermo, o tema envolve múltiplas facetas. Ela destaca a preocupação dos sauditas com a segurança alimentar e o fortalecimento da produção local, de modo a não depender tanto do fornecimento brasileiro. Mas, por outro lado, a Arábia Saudita estaria nitidamente mandando um recado, em função da proposta do presidente Bolsonaro de mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. “Talvez a Arábia Saudita já queira se posicionar para quando vierem as conversas da mudança da embaixada. Boa vontade por parte deles, com certeza, já não tem mais. O que pesa é que eles não podem confiar no Brasil, que é um dos maiores produtores mundiais e está mudando sua postura política no Oriente Médio. É aquela velha questão de cultivar o seu cliente, o que o Brasil não faz”, aponta Palermo.
O Brasil é o maior exportador mundial de carne de frango e os países árabes são nossos principais clientes. Só no abate halal (conforme as regras religiosas do Islã), foram embarcadas no ano passado 1,966 milhão de toneladas, gerando receitas de 2,807 bilhões de dólares, segundo dados da Associação Brasileira de Proteína Animal.
Fúria e protesto
Enquanto o presidente da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira, Rubens Hannun, adota uma posição diplomática, afirmando “acreditar” que os critérios para desabilitação dos frigoríficos brasileiros foram técnicos, o ex-secretário-geral da Liga Árabe até 2011, e hoje um dos diplomatas do Oriente Médio de maior influência na região, Amr Moussa, não usa meias-palavras. Para ele, a decisão saudita foi mesmo uma retaliação dos países árabes à ideia estudada pelo governo Jair Bolsonaro de mudar a embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. “O mundo árabe está enfurecido (com o Brasil)”, afirmou Moussa, que participa do Fórum Econômico em Davos. “Essa é uma expressão de protesto contra uma decisão errada por parte do Brasil”, insistiu.
Em Davos, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, disse nesta quarta-feira que ainda não dava para “saber se decisão dos sauditas teve viés ideológico”.
O timing do anúncio da Arábia Saudita, no entanto, às vésperas do discurso de Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial, parece ter sido escolhido para lembrar que questões geopolíticas interferem nas relações econômicas. No domingo (20), o jornal londrino Financial Times publicou reportagem dizendo que, ao defender a mudança da embaixada em Israel, o Brasil estava colocando em risco suas exportações halal. Na matéria, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tentou acalmar os temores de que o maior exportador mundial de carne halal estaria prestes a enfrentar um boicote da comunidade árabe. “Os mercados islâmicos são importantes e queremos abrir mais deles na Ásia, inclusive na Indonésia, onde estão 200 milhões de pessoas. O Brasil não quer brigar com ninguém. Somos um povo amigável”, disse a ministra.
>> Postura pró-Israel de Bolsonaro coloca em risco as exportações para os países árabes
Para analistas, no entanto, o imbróglio sobre a embaixada em Israel expõe divisões no alto escalão de Bolsonaro, entre ministros mais pragmáticos, como a ex-deputada Tereza Cristina, e os mais ideológicos, como Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Araújo, avalia o Financial Times, parece determinado a romper com a longa tradição diplomática conciliatória do país, após retirar o Brasil do pacto global de imigração, propor a formação de um bloco de países cristãos e afirmar que a mudança climática é uma “trama marxista”.
Ao Times, Tereza Cristina reconheceu a necessidade de enfrentar os desencontros entre discurso e prática. “A questão é que estamos em início de governo, ainda não acertamos o tom. A orquestra está sendo afinada”. Para Tatiana Palermo, o governo precisa ser mais cuidadoso com a estratégia comercial. “O Brasil não pode estar perdido, confuso, atirando para todos os lados”, alerta.
O Financial Times lembrou que o Brasil tem um superávit comercial de US$ 7,1 bilhões com a Liga Árabe contra um déficit de US$ 419 milhões com Israel. Um dia depois do descredenciamento dos frigoríficos brasileiros, os papeis da BRF lideraram a queda do índice Ibovespa, com recuo de 4,53%.