A Europa vai ficar mais doce daqui para frente, às custas de um gostinho amargo para as exportações brasileiras. Depois de uma década de limites à produção de açúcar por meio de um sistema de cotas, agora indústrias e agricultores europeus estão livres para produzir e exportar a quantidade de açúcar que bem entenderem.
Em vigor desde o início do mês, a liberalização já estava anunciada há vários anos, o que evitou um impacto abrupto no mercado internacional e distribuiu ao longo do tempo a queda nas cotações da commodity. Na prática, o Brasil – que detém 46% das exportações mundiais - vê soltarem-se as amarras de um concorrente de peso e com vantagens logísticas para acessar grandes mercados, como a China.
“A União Europeia, até recentemente, era importadora líquida de açúcar. Esse ano já passa a ser exportadora de 1,3 milhão de toneladas”, avalia Plínio Nastari, da consultoria Datagro. Com as cotações de açúcar 28% mais baixas do que no ano passado, o especialista diz que a indústria sucroalcooleira nacional deve reorganizar a produção, favorecendo o etanol. “Com essa realidade de preço, a próxima safra, que começa em abril, será uma safra mais alcooleira”, aponta. Na avaliação de Nastari, o etanol deve consumir 52% do volume da cana produzida no país, contra 48% destinados ao açúcar – posições exatamente invertidas às que ocupavam até aqui.
“Neste ano, a mudança na Europa vai prejudicar de forma mais intensa as usinas do Nordeste, para onde o governo brasileiro distribui as cotas com tarifa reduzida”, afirma João Paulo Botelho, analista de mercado da consultoria FCStone. “De modo geral, vamos ter agora um competidor que aumentou muito a eficiência, que não é tão competitivo como o brasileiro, mas tem bons níveis de produtividade e bastante acesso a capital”, acrescenta Botelho, que prevê “um longo período de ajustes no cenário internacional”.
Rota da Seda
Plínio Nastari, da Datagro, lembra que, apesar do açúcar da cana ter custos mais competitivos do que o extraído da beterraba, a logística favorece os europeus na exportação para os vizinhos. Exemplo disso é o projeto chinês de reinstalar a Rota da Seda (eixo que durante séculos dominou o comércio mundial entre a Europa e o Extremo Oriente), desta vez sobre trilhos ferroviários. “Isso vai fazer com que cargas fracionadas em contêineres sejam transportadas ida-e-volta entre a Europa e a China. É algo que favorece muito o importador”, diz Nastari.
O início da safra de beterraba – principal matéria-prima para produzir açúcar na Europa – coincidiu com a aposentadoria do sistema de controle da produção, a partir de 1º de outubro. Os primeiros levantamentos mostram que a produtividade está acima da média na França e na Alemanha, os maiores produtores. “Vem aí uma grande safra”, avalia Ruud Scher, analista do Rabobank em Utrecht, na Holanda. O banco projeta um aumento de 23% na produção europeia.
Na avaliação do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), o fim das cotas deverá aumentar em 50% as exportações de açúcar da União Europeia, chegando a 2,2 milhões de toneladas na safra atual. Outros analistas projetam um incremento ainda maior. A França, sozinha, dizem, poderá triplicar os embarques e atingir a marca de 1 milhão de toneladas.
A abolição das cotas de produção é uma boa notícia para os consumidores, segundo o Investec Bank. “Pode levar a uma redução de preços de alimentos, remédios e outros produtos que utilizam o açúcar como matéria-prima”, avalia Callum Macpherson, analista de commodities do banco com sede em Londres.
Histórico protecionista
O sistema de cotas de produção na Europa foi adotado inicialmente nos anos 1960, junto com subsídios domésticos e tarifas de importação, sob alegação de estratégia de segurança alimentar. Brasil, Tailândia e Austrália apresentaram queixa de dumping à Organização Mundial do Comércio, que, em 2005, impôs limites às exportações europeias. A UE decidiu então desregulamentar o mercado de açúcar, o que culminou com o fim das cotas de produção.
“O mercado europeu está longe de ser liberalizado. Eles ainda cobram uma tarifa de importação de 330 euros por tonelada de açúcar, o que os mantêm isolados do mercado internacional”, observa Nastari. Das 29,3 milhões de toneladas de açúcar exportadas anualmente pelo Brasil, apenas 700 mil vão para a Europa, por meio de uma cota preferencial com taxa reduzida de 98 euros por tonelada. Uma cota que só existe por causa de estados-membros mais novos da EU, que antes de adentrarem ao bloco já eram compradores do açúcar brasileiro.