O que acontece atualmente na cadeia da soja, em que o Brasil “de repente passou a ser o maior fornecedor para a China”, é um exemplo de como a guerra comercial entre Pequim e Washington distorce os mercados e cria vantagens temporárias para países exportadores.
É o que diz o relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), divulgado nesta segunda-feira (4). Para a Unctad, a situação é volátil porque, como não se sabe a duração das tarifas, os produtores brasileiros mostram-se relutantes a tomar decisões de investimento que podem se mostrar não lucrativas, caso as tarifas sejam retiradas. “Para além disso, as empresas brasileiras que operam em setores que usam a soja como insumo - como a alimentação para a pecuária - tendem a perder competitividade por causa das altas de preços geradas pela demanda chinesa por soja brasileira”.
A China importa mais da metade da soja mundial, enquanto os americanos são os maiores produtores. Hoje, segundo estudo da Unctad, os dois países praticamente têm o poder de definir os preços internacionais do produto.
Não é apenas a soja, e nem somente o Brasil, que estão tendo ganhos temporários por causa do embate entre as duas maiores economias do planeta. Segundo a Unctad, quem mais ganharia com a proliferação de tarifas nos EUA e China seriam os europeus, que têm um potencial de capturar US$ 70 bilhões nesse novo cenário. US$ 50 bilhões viriam do espaço que ocupariam no mercado americano substituindo os produtos chineses. O restante viria de um melhor acesso ao mercado chinês, desta vez substituindo os produtos americanos.
Os cálculos ainda mostram que Japão, México e Canadá teriam um aumento de exportações de US$ 20 bilhões. Ainda que os dados sejam pequenos diante do total do comércio global, a ONU aponta que, em certos países, os ganhos seriam importantes. No caso do México, a alta seria de US$ 27 bilhões, o que representaria 6% de todas as vendas do país.
Tensão e retaliação
As tensões começaram a se tornar realidade no início de 2018, quando a China e EUA impuseram um total de barreiras que atingiram US$ 50 bilhões de cada uma das duas economias. “A confrontação rapidamente escalou e, em setembro de 2018, os EUA impuseram 10% de tarifas cobrindo US$ 200 bilhões de importações chinesas”, indicou a agência. Pequim respondeu com uma retaliação contra produtos americanos no valor de US$ 60 bilhões.
As barreiras entrariam em vigor em janeiro de 2019. Mas foram adiadas para o dia 1 de março, na esperança de que haja um “acordo de paz” entre as duas potências.
De acordo com o estudo, 82% das exportações chinesas que serão alvo de tarifas serão substituídas por produtos vindos de outros países. Pequim irá manter apenas 12% desse total de US$ 250 bilhões. O que o levantamento mostra ainda é que apenas 6% do fluxo de produtos chineses será de fato substituído por produtos americanos.
Trump, ao longo de sua campanha presidencial, havia indicado a diferentes setores americanos de que sua política comercial teria como foco gerar empregos nos EUA e proteger setores que estavam sendo ameaçados pelos chineses. “As barreiras não irão beneficiar empresas americanas”, declarou a agência. Ironicamente, a China será em parte substituída por produtos mexicanos.
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Algo similar ocorrerá no mercado chinês. Dos US$ 85 bilhões de produtos americanos afetados pelas tarifas de Pequim, 85% serão substituídos por bens de outros países. As empresas americanas conseguiriam se manter em apenas 10% dos casos, enquanto os bens chineses vão substituir a importação em apenas 5% do fluxo. De acordo com o estudo, tal constatação é “consistente” em diversos setores, entre eles o do máquinas, produtos de madeira e moveis, equipamentos de comunicação, produtos químicos e instrumentos de precisão.
“O efeito das tarifas entre EUA e China seria principalmente o de causar uma distorção”, explicou Pamela Coke-Hamilton, autora do estudo. “O comércio entre os dois países irá cair e será substituído por um comércio vindo de outros países”, completou.
Ganhos para o Brasil
O Brasil seria a oitava economia a registrar maiores ganhos, com uma alta de US$ 10,5 bilhões nas exportações, o que representaria um aumento de 3,8% nas exportações nacionais. A estimativa é de que 80% desses ganhos viriam das tarifas que Donald Trump colocaria sobre os produtos chineses, permitindo que o Brasil ocupe uma certa fatia do mercado americano.
Com uma tarifa extra de 25%, o Brasil ganharia fatias importantes do mercado dos EUA até agora ocupado pelos chineses. Os principais setores seriam os de semimanufaturado e siderúrgicos, que, ao longo dos últimos 20 anos, perderam terreno para produtos asiáticos.
No setor de máquinas, por exemplo, a perspectiva é de um ganho de US$ 3 bilhões nas vendas aos EUA, além de US$ 1 bilhão no setor do aço. O Brasil ainda ganharia US$ 800 milhões em equipamentos de comunicação no mercado americano, além de outros US$ 800 milhões em instrumentos de precisão e US$ 570 milhões em móveis e produtos de madeira.
Juntos, esses setores representariam ganhos de US$ 8,5 bilhões, muito superiores ao que o Brasil poderia obter com a China, de pouco menos de US$ 2 bilhões. No caso do mercado de Pequim, os principais ganhos do Brasil viriam de um maior acesso para produtos químicos, no valor de US$ 800 milhões, além de acesso a produtos alimentícios no valor de US$ 350 milhões.
Mais perdedores do que vencedores
A agência constata que existiriam mais perdedores que ganhadores e que, no geral, ainda que algumas economias ganhem com um aumento de exportações, o efeito global da guerra comercial seria negativo.
Um dos temores é de que as disputas tenham um impacto na já frágil economia global. “Uma desanexação econômica frequentemente é acompanhada por distúrbios nos preços de commodities, nos mercados financeiros e nas moedas, o que pode ter uma repercussão importante para os países em desenvolvimento”, disse. “Uma das preocupações principais é o risco de que as tensões comerciais possam se transformar em guerras cambiais, fazendo com que as dívidas em dólares sejam mais difíceis de ser honradas”, afirmou.
Outro risco é de que novos países se somem à onda protecionista e que as barreiras ganhem uma dimensão global. As economias mais fracas, portanto, seriam as mais atingidas.