Quando Bill Gates chamou a start-up Hampton Creek de o futuro da alimentação, ele estava se referindo a produtos como a maionese vegana lançada pela empresa. A maionese, segundo a companhia, é feita de alimentos à base de plantas e com preços acessíveis aos norte-americanos, sem depender de ovos, carne e outros produtos lácteos - produtos com maior impacto ambiental na produção.
Contudo, a Hampton Creek, que recentemente mudou o nome para Just, tem ambições maiores do que o mercado dos Estados Unidos. Neste mês a empresa tornou público um produto que descreve como uma solução para a desnutrição da África Ocidental.
É praticamente uma polenta, mas ao invés de farinha de milho, é feita a partir de um mingau de mandioca fortificado. O alimento se chama Power Gari e tem produção barata, é popular entre os consumidores e ideal para as necessidades da dieta do mercado onde é vendido, segundo a companhia.
“Polenta vitaminada”
A Just acredita que a solução pode aumentar a ingestão de vitaminas e mineiras pelos africanos, ao incluir esses elementos em um produto saboroso e vendido em sacos no varejo, ao contrário de alimentos fortificado ofertados pelas organizações de desenvolvimento.
A partir de testes na Libéria, onde a Just desenvolveu reservadamente o Power Gari nos últimos dois anos, o mingau foi aprovado por escolas locais e por organizações não governamentais (ONGs), que afirmam que o alimento é uma boa opção nutricional e é popular entre crianças.
As ações da empresa arregalaram os olhos de especialistas em desenvolvimento, que afirmam que outras e maiores companhias tentaram lançar projetos quase idênticos, sem sucesso. Muitos questionam a originalidade da abordagem da Just e expressam dúvidas sobre como uma empresa norte-americana de tecnologia poderia ser bem-sucedida onde tantas outras fracassaram.
Esse debate assombrou a Just desde seu lançamento, quando a companhia prometeu que as técnicas do Vale do Silício poderiam alterar os alicerces de um sistema de alimentação ultrapassado. Críticos continuam a questionar se a Just realmente lançou produtos revolucionários - ou simplesmente foi mais eficiente comercialmente.
Da Libéria para o mundo
Nada disso dissuadiu o fundador da companhia, Joshua Tetrick. Ele estima que em dois anos o Power Gari estará a venda em 15 países africanos.
“Quero fazer da Libéria um sucesso definido a partir da resolução de um problema de micronutrição no país, e tendo a certeza de que aquelas crianças tenham dignidade ao se alimentar”, afirma. “Contudo, nós certamente não lançamos o produto apenas para a Libéria. Isso precisa ser um modelo para dar certo em qualquer lugar”.
A aparência do Power Gari não é muito atraente: uma farinha com cor e consistência de uma polenta. O mingau é feito de mandioca, óleo de palma vermelho, açúcar, sal, proteína de soja concentrada e uma mistura de vitaminas e minerais – a maioria produzida na Libéria.
O mais importante é que, do ponto de vista nutricional, a Power Gari possui alta concentração de Vitaminas A, D, C, B6 e B12, além de ferro, zinco e 12 gramas de proteína.
Esses são ativos valiosos para um país onde cerca de um terço das crianças são desnutridas e aproximadamente dois terços têm anemia, segundo estudo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). A dieta local é baseada em arroz, óleos cozidos, além de carne seca e peixes.
Em linhas gerais, alimentos fortificados se tornaram um caminho comum para governos e ONGs amenizar as deficiências profissionais. “Se alimentos vitaminados não estiverem disponíveis, ajudá-los a entrar nesse mercado é algo valioso para o setor privado”, afirma Chaliss McDonough, porta-voz do Programa Mundial de Alimentos.
A Just pode parecer uma empresa estranha para esse tipo de trabalho. Desde que Tetrick e um amigo de infância fundaram a companhia em 2011, ela se tornou conhecida pelas suas maioneses de plantas e massas de bolachas vendidas no varejo e utilizadas amplamente em serviços de alimentação.
A companhia captou US$ 310 milhões em investimentos de alguns dos maiores grupos de capital do Vale do Silício, incluindo a Khosla Ventures e a Founders Fund. Também foram divulgados alguns escândalos, o que culminou na demissão do conselho interno, menos de Tetrick, no verão passado.
Contudo, Tetrick e seus colegas dispensaram os céticos por não entenderem o potencial da empresa. E esse potencial inclui mudar a dieta de bilhões de pessoas de países em desenvolvimento, afirma Tetrick, que destaca que o projeto na Libéria é algo pessoal.
História pessoal
Antes de fundar a Just, o empreendedor de 37 anos trabalhou no Quênia, na Nigéria e na África do Sul e passou parte do tempo como funcionário do governo da Libéria, quando presidido por Ellen Johnson-Sirleaf. A experiência o convenceu de que negócios socialmente responsáveis poderiam mudar a vida de consumidores mais pobres, ao desenvolver produtos personalizados para eles, potencialmente com maior impacto às organizações em desenvolvimento.
“Pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia não deveriam ser vistas como vítimas ou pessoas que merecem restos de nossa comida ou caridade”, afirma Tetrick. “Quando mudamos o olhar, atualmente podemos enxergá-los como consumidores poderosos. Assim você pode fazer coisas mais poderosas do que uma ONG”.
A Power Gari será o primeiro produto da Just a testar essa premissa. Na Libéria, a companhia é parceira de um produtor local, que paga uma taxa de licença em troca de receitas de mingau, suporte logístico e consultoria.
A Just ajudou a fechar um contrato de seu parceiro local com um grupo de mulheres da agricultura local que fazem a produção de mandioca, por exemplo. E também ajudou a inserir o Power Gari nos dois maiores supermercados da região e em diversas escolas, incluindo a Academia de Futebol de Monrovia, uma organização sem fins lucrativos de apoio ao esporte e que busca melhorar a nutrição dos alunos.
“A dieta clássica da Libéria deixa de lado uma série de nutrientes vitais”, afirma Will Smith, co-fundador e diretor executivo da escola. “Quando a Just apresentou a Power Gari, imediatamente gostamos e perguntamos: ‘Quando podemos pegar isso?’. Isso é sensacional. E as crianças adoraram”.
Ao receber esse tipo de mensagens, Tetrick está otimista que tanto as vendas do varejo quanto as institucionais do Power Gari devem explodir. O líder operacional da companhia na Liberia, Taylor Quinn, está em contato com divisões locais de auxilio humanitário que compram alimentos para escolas, como a Save the Children e o World Food Program (Programa Mundial de Alimentos).
Plano de expansão
Ao final deste ano, a Just deve vender 7 milhões de unidades do Power Gari na Libéria, com planos posteriores de expansão para Gana, Nigéria e Etiópia, segundo Tetrick.
“No próximo ano e na metade do ano seguinte, gostaria de ver nosso produto em 10 ou 15 países, centenas de milhões de refeições serão servidas, e parceiros de algumas das maiores instituições globais para isso”, afirma o empreendedor.
Especialistas em desenvolvimento estão céticos de que a Just possa dar escala à operação liberiana de forma tão rápida - e que o Power Gari trará efeitos significativos na questão nutricional.
Os principais players institucionais, como o World Food Program, já servem porções de refeição fortificada, geralmente de milho ou soja, além de misturas de soja. A USAID financiou a produção de um mingau fortificado chamado Super Gari por vários anos, mas o programa foi encerrado.
O fracasso das megacorporações
Grandes corporações - incluindo a DuPont, a Pepsi e a Danone - já tentaram lançar dezenas de alimentos fortificados em mercados de baixa renda, afirma Erik Simanis, consultor de mercados em desenvolvimento para diversos grupos globais. Praticamente todas fracassaram de uma forma tão forte que nunca mais tentaram fazer ações desse tipo - uma amostra da incapacidade de convencimento de atingir e persuadir consumidores de baixa renda, incluindo aqueles que não sabem ler.
“Você não precisa cavar muito fundo para encontrar esqueletos de iniciativas passadas como essa”, diz Simanis. “É uma grande ideia colocar isso no seu relatório sustentabilidade anual. Mas não há uma lógica de negócios nisso”.
Mesmo que a Just faça disso um modelo de negócios, especialistas em nutrição discordam que a ideia do Power Gari possa resolver o problema dos desnutridos. Enquanto cereais fortificados são uma importante fonte de vitaminas e minerais de várias populações, particularmente de crianças, adolescentes e mulheres grávidas, essa não é uma ideia nova na África, afirma Georgia Beans, vice-presidente de qualidade e compliance da ACDI/VOCA, uma organização norte-americana de projetos com atuação na Libéria.
Para assuntos mais complexos, os piores e irreversíveis efeitos de má nutrição acontecem entre o nascimento e os dois anos de idade, quando crianças precisam particularmente de maiores doses de nutrientes como vitamina A, zinco e ferro. Isso significa que um produto desenvolvido para a população em geral não está adequadamente enfatizar o desperdício, destaca Marie Ruel, diretora da Divisão de Pobreza, Saúde e Nutrição no International Food Policy Research Institute (Instituto Internacional de Pesquisa em Política Alimentar).
“Eu não vejo como um produto milagroso”, diz Ruel. “Isso não vai ser uma bala mágica”.
Mas a Just não está sendo dissuadida pelos céticos. A companhia sempre tem uma visão positiva. Taylor Quinn, que lidera a iniciativa na Libéria, reconhece que outras empresas fracassaram em mercados similares, e destaca que a Power Gari não é uma cura, mas um passo na direção correta.
Ultimamente, contudo, Quinn espera que a Just seja bem-sucedida onde outros fracassaram porque o mingau tem um sabor agradável. Isso é, depois de tudo, como a Just vende sua maionese vegana para o Walmart.
“No final de tudo, podemos fracassar como todos os outros, mas eu creio que estamos fadados ao sucesso”.
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