| Foto: Michel Willian / Arquivo Gazeta do Povo
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“Eu recebi o telefonema numa sexta-feira, estava viajando, ia pegar o avião: se não tivermos um documento assinado na segunda-feira, se comprometendo a estabelecer um regime onde não se desmate na Amazônia, nós não compramos mais nada de vocês.”

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Esse recado curto e grosso foi dado por um porta-voz de clientes europeus em junho de 2006 a Sérgio Mendes, diretor-geral da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (Anec). Era o pontapé inicial do protocolo que passou a ser conhecido como Moratória da Soja e viria a vetar grãos produzidos em áreas desmatadas na Amazônia, legal ou ilegalmente, após 2008.

O próprio Mendes relatou o episódio durante audiência da Comissão de Agricultura da Câmara sobre a Moratória da Soja, iniciativa polêmica que vem enfrentando pressão crescente de lideranças dos estados situados na Amazônia Legal, notadamente do Mato Grosso, principal produtor da leguminosa do país.

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“Esse documento foi assinado sob a égide do medo. Nós íamos perder tudo. Essa foi a história, por isso que todo mundo se engajou. A gente pode dizer que foi um esforço de guerra. Hoje [a moratória] é uma conquista excepcional, mais da produção do que nossa”, afirmou Mendes, destacando um legado positivo daquilo que começou como uma imposição arbitrária.

Moratória exige mais do que a lei nacional

Enquanto a Anec, a Associação das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) e ONGs ambientalistas veem a moratória como um selo de garantia para preservar clientes e mercados, os opositores dizem tratar-se de uma rendição aos interesses comerciais de grandes tradings e países europeus. Seria, sobretudo, uma afronta à soberania nacional ao impor restrições à revelia da lei brasileira, que autoriza o uso de até 20% das áreas da Amazônia Legal.

Na prática, um proprietário rural da Amazônia Legal não pode plantar nem sequer um pé de soja em áreas que tenham sido desflorestadas após 2008. A carne produzida nessas áreas também é boicotada. Quem se arrisca a ignorar o protocolo, mesmo amparado pela lei brasileira, é identificado por mapas de satélite e enfrenta um severo bloqueio comercial.

As tradings que participam do acordo, dentre elas gigantes como a Bunge, Cargill, Amagi e ADM, originam cerca de 95% da soja exportada pelo país. Também são signatários da moratória ONGs como o Greenpeace, WWF Brasil e Imaflora, e, por parte do governo federal, o Banco do Brasil e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Não há representantes dos produtores no acordo.

Se no início a insatisfação mais declarada veio dos agricultores, mais recentemente a oposição à moratória tem crescido no meio político, mobilizando o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, parlamentares e dezenas de prefeitos.

“Isso é uma aberração que vai aumentar as desigualdades regionais entre os municípios. Não estamos falando da defesa dos produtores, mas da sobrevivência econômica dos municípios mato-grossenses”, assegura Leonardo Bortolini, prefeito de Primavera do Leste (MT) e presidente da Associação Mato-grossense dos Municípios (AMM).

Amazônia Legal abrange quase 60% do território brasileiro

O Mato Grosso tem 141 municípios situados dentro da Amazônia Legal, cujos limites foram se expandindo em função da área de atuação da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Hoje a Amazônia Legal abrange 5 milhões de quilômetros quadrados, cerca de 58,9% do território brasileiro. A área de soja ocupa apenas 1,2% do total desflorestado do bioma.

O debate questionando a continuidade da moratória está acirrado. A Câmara dos Deputados realizou audiência sobre o tema em abril, e, em maio, o Tribunal de Contas do Mato Grosso mobilizou mais de mil lideranças em Cuiabá contra o protocolo.

Para o setor produtivo, a moratória se reveste de roupagem ambiental, mas, na prática, estaria servindo a interesses comerciais. Prova disso seria o termo de compromisso do protocolo, que restringe a soja, mas libera o cultivo de outras culturas agrícolas nas áreas embargadas.

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Moratória da Soja será tema de audiência no Congresso, dia 12 de julho| Foto: Michel Willian / Gazeta do Povo

Pode produzir milho, mas não pode soja

“Os próprios executivos da Anec e da Abiove defendem que a produção de milho ou de outra cultura aconteça nessas áreas que foram abertas legalmente após 2008. Eles defendem que pode produzir milho, mas não pode produzir soja. É um conceito forjado para que se tenha uma estratégia de monopólio de mercado da soja exportada por parte da Abiove e da Anec, que hoje têm o controle das empresas da moratória que representam 95% do volume da soja exportada", diz Bortolini.

"A gente faz coro para que o governo estadual entre com ação no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e ainda que se tenha o corte dos incentivos fiscais das empresas signatárias da moratória”, completa.

A Anec e a Abiove fazem outra leitura dos impactos da moratória. “É um dos melhores cartões de visita que o setor brasileiro pode apresentar ao mundo. Podemos provar por A mais B que a soja que estamos exportando não é do desmatamento do bioma amazônico. Nunca se sabe quando um país pode adotar uma legislação restritiva que tome como base a questão ambiental”, diz Pedro Eymael, diretor de Sustentabilidade da Anec.

Sobre outros cultivos, Eymael ressalva: "É importante notar que a moratória é flexível ao permitir o uso de áreas desmatadas após 2008 para a produção de outras culturas. No entanto, uma vez regularizada perante o pacto, a tolerância para desmatamento torna-se zero, mesmo para a produção de outros produtos".

O executivo enfatiza que a cadeia da soja está sob constante escrutínio, seja por motivos políticos, ideológicos, ambientais ou comerciais. A moratória, assim, seria uma defesa do setor e alicerce da reputação internacional da soja verde e amarela.

“Ela é fundamental para continuidade do crescimento das exportações brasileiras. Uma interrupção poderia colocar em risco as exportações, além de um efeito cascata negativo”, afirma. Clientes da China, principal compradora da soja brasileira, já exigem a declaração de conformidade com a moratória, diz Eymael (leia aqui a entrevista completa).

Abiove: moratória é um ativo da soja

Para o diretor presidente da Abiove, André Nassar, a moratória não deve ser vista como vilã do desenvolvimento, mas como “um ativo da soja”. “A moratória não impediu o Mato Grosso de virar o terceiro PIB per capita do país. E isso só foi por causa da soja, grande motor de desenvolvimento do estado”, enfatiza.

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Para demonstrar que o acordo é benéfico, Nassar observa que a área plantada com a leguminosa no bioma amazônico saiu de 1,41 milhão de hectares na safra 2006/07 para 7,43 milhões de hectares no ciclo 2022/23.

“É possível expandir em áreas já abertas. Temos 64,9 milhões de hectares de pastagem e vegetação secundária que o Prodes [Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal] não olha como desmatamento. Então, podemos duplicar a área de soja só no que tem de pastagem no bioma amazônico já aberta após 2008”, sublinha.

Sem a moratória, assegura Nassar, não haverá mercado para a soja brasileira. “Nosso setor não consegue vender soja de área desmatada de floresta porque ninguém quer comprar. Pode até se discutir se isso é romantismo, o que for, mas é uma impossibilidade”, garante.

Impacto negativo é reconhecido

O executivo da Abiove reconhece, contudo, o impacto negativo da moratória para a parcela dos produtores impedidos de cultivar a leguminosa, ainda que autorizados pelo Código Florestal. Mas enquanto a validação do Cadastro Ambiental Rural das propriedades não estiver concluída, a moratória estaria cumprindo seu papel.

“Alguém tem que fazer isso urgentemente [validação do CAR], se não o Brasil vai perder credibilidade. Tinha que estar escrito no CAR que abriu legalmente, daí eu tinha que ficar quietinho”, afirmou durante audiência na Câmara.

Nos cálculos da Abiove, existem apenas 250 mil hectares que produzem soja na Amazônia Legal em desacordo com a moratória, contra 7,18 milhões de hectares cultivados que atendem à certificação.

Um estudo da Embrapa Agricultura Digital, cobrindo os primeiros anos da moratória até 2014, comprovou que a medida de fato freou o desmatamento no bioma amazônico. Houve também a intensificação da agricultura nas áreas já abertas do bioma nos anos seguintes à implantação do protocolo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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Moratória freou desmatamento e incentivou 2.ª safra, segundo Embrapa

“Antes da moratória, a taxa de desmatamento era cinco vezes maior. Antes da moratória, a maioria das pessoas abria área e implementava agricultura por apenas um ciclo de produção. Depois da moratória, a gente percebe que os dois ciclos começaram a ficar muito mais importantes”, diz o biólogo Alexandre Camargo Coutinho, um dos autores do estudo.

Ele ressalva que a pesquisa não entrou no mérito político do debate. “Obviamente, nós temos posições pessoais e nem sempre necessariamente concordantes entre os membros da equipe que desenvolveram esse trabalho. Mas não houve nenhuma discussão a respeito das limitações já contidas no Código Florestal, ou dessa nova limitação imposta pela moratória, que é uma limitação de mercado. Nossa análise foi puramente técnica, estatística”, sublinha.

Para porta-vozes do setor produtivo, o equívoco da moratória da soja, e seu maior ponto fraco, é tentar impor ao país proteção ambiental em parâmetros mais rígidos do que a legislação brasileira, que já é a mais restritiva do planeta.

“A moratória era algo provisório, de dois anos, não era para durar tanto. Consideramos que o marco legal da sustentabilidade é o Código Florestal de 2012. E trabalhamos para mostrar que o produtor já segue este marco legal, um dos mais restritivos do mundo. Ao desconsiderarem o Código, eles indicam uma data de corte diferente e não fazem distinção entre desmatamento legal e ileal. A gente é totalmente contra”, afirma Tiago Pereira, diretor de Sustentabilidade da Confederação de Agricultura e Pecuária (CNA), que estuda acionar o Cade contra as tradings e ONGs.

Clientes europeus levam apenas 10% da soja de Mato Grosso

Outra instituição representativa dos produtores rurais, a Aprosoja, entende que o selo de adesão à moratória deveria ser facultativo.

“O produtor brasileiro não pode ficar refém dos desejos de alguém que não é exemplo ambiental, como a União Europeia. Se eles querem ter as suas vontades atendidas, que paguem a mais pela soja produzida em áreas desmatadas antes de 2008. Não podemos ficar à mercê de um mercado que não representa tanto para o Brasil. A soja do Mato Grosso que vai para a União Europeia é menos de 10%”, diz Luiz Bier, vice-presidente da Aprosoja Mato Grosso.

O próximo passo considerado pela Aprosoja, assim como pela CNA, é acionar o Cade por suposta infração do direito de concorrência por parte dos signatários da moratória.

Apesar de o debate se acirrar no Brasil, para o professor de Economia e Direito da FGV, Daniel Vargas, o que está em jogo tem como pano de fundo uma turbulência na ordem geopolítica global dos alimentos. Algo que começou com a pandemia de Covid e se acentuou com a guerra na Ucrânia e as tensões políticas entre China, Estados Unidos, Rússia e Europa.

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“Essa turbulência está modificando os critérios de decisão tomados pelos Estados nacionais na organização de suas economias. A calculadora do preço persegue o produto que tenha menor valor e maior qualidade. A calculadora do interesse nacional persegue o produto que é mais confiável, porque um país não pode se dar ao luxo de ter comida boa e barata neste ano e no ano seguinte passar fome”, enfatiza.

Trata-se, segundo Vargas, de um choque entre mecanismos regulatórios transnacionais das ONGs com a voz nacional, manifestada pela lei de cada país.

“Quando há um entrechoque entre um regime regulatório estabelecido pelo parlamento oficial com um regime regulatório paralelo estabelecido pelo parlamento das ONGs, a lei nacional há de prevalecer”, pondera.

Exemplo disso está na Lei Antidesmatamento da União Europeia, que prevê como data de corte para desmatamento zero o mês de dezembro de 2020, e não julho de 2008, como preconiza a moratória das ONGs.

Mesmo que haja um fim à moratória da soja endossada pelo governo, é provável que o protocolo, em si, não desapareça. Ainda poderá ser um bom negócio manter o selo para aqueles produtores de soja em áreas desmatadas antes de 2008. Sem, contudo, que todos os outros estejam sujeitos à mesma régua.

Área de soja em desacordo com a moratória, hoje, estaria em apenas 0,06%, segundo Anec| Foto: Michel Willian / Gazeta do Povo
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Ex-presidente da Abag: não vale a pena brigar contra moratória

Para o ex-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Marcelo Britto, que é coordenador agro da Fundação Dom Cabral e presidente do Consórcio para o Desenvolvimento Sustentável dos Estados da Amazônia Legal, brigar contra a moratória não vale a pena.

Ele sublinha que a área plantada com soja cresceu muito na Amazônia, de forma sustentável, desde a assinatura da moratória. O mais importante seria uma avaliação de mercado para sondar a percepção dos compradores, se é positiva ou não.

“Está faltando soja no mundo? Não. O preço está caindo, os mercados estão equilibrados. Inclusive, os preços estão depreciados. Então por que precisamos aumentar substancialmente a produção? Vai ser para prejudicar a produção local, não é inteligente fazer isso", assegura.

"Qualquer ação que seja de maior abertura de áreas na Amazônia, é uma ação que é destrutiva em termos de imagem e percepção do Brasil. A discussão não é fazer ou não por conta da lei, é fazer porque é bom para a estrutura nacional e se isso abre ou não mais mercados para nós”, pondera Britto.

Haverá danos, com ou sem moratória

Nessa guerra regulatória sobre o que é ou não sustentável, se o Brasil deixar a moratória da soja, é fato que haverá algum dano. O ponto crucial, segundo Vargas, da FGV, é avaliar se o país terá mercados alternativos para colocar seus produtos e celebrar novas parcerias comerciais.

“Muitas vezes a gente não escolhe entrar nas guerras, elas nos tragam. Então, eu acho que o Brasil está adiante desse impasse. Ninguém quer entrar. O ideal é não entrarmos. O papel da diplomacia e das negociações é agitar esse desenlace para que as coisas se resolvam da maneira mais harmônica sem gerar prejuízo”, destaca. “O que deve deixar de existir”, arremata, “é a regra do parlamento paralelo das ONGs que vale para todo mundo”.

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A próxima etapa do debate público sobre o fim da moratória da soja já tem data marcada: dia 12 de julho, em audiência conjunta do Senado e da Câmara Federal.

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