No espaço de poucas semanas, acendeu-se o alerta de que o momento de insegurança alimentar pode rapidamente evoluir para um quadro de fome global. A Organização Mundial do Comércio (OMC) apelou ao Brasil para aumentar sua produção de grãos; a Ucrânia busca desesperadamente saídas para os cereais estagnados atrás das linhas de conflito; nos EUA, a inflação dos alimentos bateu quase 10% e levou o presidente Joe Biden a conclamar os agricultores a cultivarem uma segunda safra – apesar dos elevados riscos climáticos e da curta janela de produção no hemisfério Norte.
Quando se fala de segurança alimentar e produção agrícola, o desenho geopolítico global simplesmente não permite não dar ao Brasil um papel de destaque. Há quatro décadas, pelo menos, o país tem espantado os competidores com a capacidade de expandir sua produção. Tomando como exemplo a soja, principal cultivo de exportação, enquanto a produção global cresceu 7,73 vezes de 1970 a 2017, as colheitas brasileiras no mesmo período cresceram 76 vezes: de 1,5 milhão de toneladas em 1970 para 114 milhões de toneladas em 2017. Em 2021 a projeção era de colheita de 138 milhões de toneladas, mas ficou pouco acima de 120 milhões por causa da estiagem na região Sul.
País tem vasto estoque de terras agricultáveis
Além dos ganhos de produtividade, nenhum outro país do mundo tem tanto estoque de terras. A Embrapa estima que o País dispõe de pelo menos 30 milhões de hectares de áreas subutilizadas ou de pastagens degradadas que ainda podem ser convertidas à agricultura, sem derrubar uma árvore. Hoje as plantações ocupam 67 milhões de hectares.
No nível diplomático, a resposta ao apelo da OMC para o Brasil produzir mais alimentos foi dada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, que assegurou: "Terão mais alimentos, com toda certeza. Ano após ano, aumenta nossa produtividade, quer seja na agricultura, quer seja na pecuária".
À exceção de anos de frustrações climáticas, o país realmente vem batendo sucessivos recordes na produção agropecuária. Neste novo ciclo, em que pese a alta dos custos de itens essenciais como diesel, fertilizantes e defensivos, o Ministério da Agricultura vê condições favoráveis para algum otimismo.
“Existe hoje, sim, apetite do produtor brasileiro para plantar. Porque ele está capitalizado e as principais commodities agrícolas estão valorizadas. A relação de troca dessas commodities, como soja e milho, ainda é lucrativa para o produtor”, pontua Luiz Rangel, diretor de programas do Ministério da Agricultura.
Se o mundo quer mais alimentos, precisa aportar financiamentos
Na avaliação de Rangel, ainda que o governo federal trabalhe para aumentar a oferta de crédito oficial para os agricultores, a maior contribuição deverá vir de outros eixos de financiamento. Em outras palavras, se o mundo precisa de mais comida do Brasil, também terá de participar no financiamento desse esforço. A nova lei do agro, aprovada em 2021, criou os Fiagros – fundos de investimentos no agronegócio, talhados para serem mais atrativos ao investidor.
“Essas conversas e apelos da ONU e da FAO devem ajudar a atrair esses investimentos. O Brasil tem uma grande companhia de minérios, que é a Vale, e cujo financiamento não precisa ser público. Acho que o mesmo pode ocorrer na agricultura”, sublinha Rangel, destacando que os recursos oficiais, escassos, tendem a ser direcionados para políticas públicas de apoio a pequenos e médios produtores. Atualmente, apenas 30% da produção está atrelada ao financiamento público.
A pujança do agro estaria despertando o interesse de novos bancos de operar no país, com destaque aos chineses, atraídos pelo tamanho da parceria comercial (o Brasil é o maior fornecedor de alimentos para o país asiático). Para além desses recursos internacionais, Rangel aponta que a produção agrícola é ancorada por uma parcela expressiva de produtores que se autofinanciam e pela popularização das operações do barter – uma espécie de escambo em que o agricultor troca seus produtos por insumos e fertilizantes, diretamente com as tradings.
Para ex-ministro Roberto Rodrigues, momento exige plano de guerra
Um cenário de guerra exige medidas extraordinárias para alavancar o plantio de alimentos. É o que está posto hoje para o Brasil, segundo o ex-ministro da Agricultura e coordenador de estudos do agronegócio na Fundação Getúlio Vargas, Roberto Rodrigues. A oportunidade estaria no iminente anúncio de um novo plano safra. “É preciso compreender que num cenário de guerra não se pode fazer nada convencional. Vamos demonstrar ao mundo que podemos atender a demanda por alimentos de qualidade e de forma sustentável. É hora de a nação inteira se mobilizar. Pô, mas não tem dinheiro? Bom, vamos dobrar o compulsório dos bancos privados, vamos colocar dinheiro no crédito rural. Vamos chamar as tradings para fazer barters muito mais profundos, mais amplos”.
“Os produtores estão prontos. Produzir 310 ou 320 milhões de toneladas não é um fantasma ou coisa absurda. Mas tem que ter um empurrão do tamanho da guerra”, enfatiza. Investimentos paralelos, em estradas e portos, poderiam dar resultados em sete a oito meses, ainda em tempo de ajudar no escoamento da próxima safra de verão – defende Rodrigues. “Isso tudo gera emprego na veia. É preciso uma ofensiva diplomática também. É incrível que o Brasil não tenha um acordo comercial com a Índia. Podemos correr atrás desses acordos comerciais e nos comprometermos a aumentar a produção de milho, por exemplo, para 130 milhões de toneladas. Não tenho a menor dúvida de que, havendo essa orquestração, haverá resposta rápida”.
Crescimento da produção é "garantido" no longo prazo
O Brasil é um dos poucos países com vastas áreas do território propícias para fazer duas e até três safras ao ano. Em termos de longo prazo, só não haverá multiplicação das colheitas se o país “der um tiro no pé”, avalia o engenheiro-agrônomo e pesquisador da Embrapa Soja Décio Luiz Gazzoni. Ele é cético, contudo, quanto à possibilidade de uma resposta rápida. “No curto prazo, tudo teria de dar certo. Precisaria ter dinheiro para investimento e resolver a crise de fertilizantes. A indústria de sementes teria que dizer que tem mais sementes do que o normal, o que não é verdade, por causa da última seca. Precisaríamos ter mais caminhões, dizer que melhoramos as estradas e os portos. E não é bem assim. É muita coisa que depõe contra”, considera.
Segundo a FAO, de todo o volume que precisará ser acrescentado à produção global de alimentos para alimentar 9 bilhões de pessoas em 2050, cerca de 40% terá de vir do solo brasileiro. O cenário atual acrescentou urgência a esse desafio, ao mesmo tempo em que a questão ambiental também não pode ser ignorada. “O mundo não quer saber se o desmatamento é legal ou ilegal. Estão dizendo chega, para de desmatar, e não importa que sejam áreas excedentes ou que tenhamos a legislação florestal mais severa de todas”, avalia Gazzoni.
Produzir mais é bonito, mas não é tão simples
O discurso de que o País pode pôr mais alimentos à mesa global, em curto prazo, pode “até parecer bonito, mas não é tão simples”, avalia Glauber Silveira, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). “O governo não está conseguindo nem arcar com os compromissos do plano da safra passada. Todo ano é essa novela, essa mendicância por recursos, o que não acontece com nossos competidores. Estamos com problema de armazenagem, passamos por um momento de preços de fertilizantes exorbitantes. Não conseguimos no curto prazo responder a ninguém”, desabafa.
“Ah, mas dizem que o presidente Bolsonaro apoia o Agro. Sim, ele apoia, mas ele não presidente só do agro, é do Brasil inteiro. O Ministério da Agricultura não tem autonomia. Depende do Paulo Guedes, de um monte de técnicos, de lei do Congresso. O Brasil tem um problema seríssimo que chamo de politicagem e de radicalismo ambiental, que nos impedem de ser uma grande nação”, sublinha Silveira.
Qualificação da pecuária "devolve" áreas para agricultura
A disparada no custo dos fertilizantes dificulta a missão de extrair mais alimentos de áreas consolidadas para a agricultura, muitas das quais, de qualquer forma, já atuam próximo das máximas de produtividade. Gazzoni, da Embrapa, vê grande potencial em pastagens “devolvidas” pela pecuária, na medida em que os criadores intensificam o uso da tecnologia e precisam de menos campo aberto para o gado.
Quanto à abertura de novas áreas, mesmo dentro da legalidade, o ritmo pode estar desacelerando. No sul do Tocantins, em Gurupi, o produtor Douglas Daronch, 37, relata o momento. “O pessoal daqui não está expandindo muito mais, não. A expansão hoje é de gente que vem de fora, do Mato Grosso e da Bahia, e que chega já capitalizada”, conta. O próprio Daronch está poupando recursos e negocia a compra de uma área bruta, de 350 hectares, para somar aos atuais 500 hectares, cultivados na forma de arrendamento. Mas ressalva que “é para daqui dois anos, e não tem nada certo ainda”. “Cada um tem uma política de expansão. Eu não gosto de expandir com rapidez, prefiro primeiro consolidar a área, construir perfil do solo, para depois aumentar. Sou mais pé no chão”, conclui.
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