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Commodities agrícolas

Novo bloqueio naval da Rússia traz dólares e vantagens “fora de época” para o Brasil

Equipe conjunta de inspeção da Rússia, Turquia, Ucrânia e Nações Unidas vistoria navio mercante no Mar Negro, em agosto de 2022 (Foto: Levent Kulu / Nações Unidas)

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Ao pôr fim ao acordo para “deixar passar” navios com grãos da Ucrânia por um corredor humanitário no Mar Morto, o presidente russo Vladimir Putin criou nesta semana um novo tremor no abastecimento global de alimentos, provocando alta de preços e volatilidade no mercado de commodities agrícolas como trigo e milho, das quais Rússia e Ucrânia são grandes produtores mundiais.

Para demonstrar que fala sério, Putin ordenou bombardeios de estruturas de armazenamento de grãos nos portos da Ucrânia e ameaçou afundar navios que porventura se arrisquem a furar o bloqueio.

Esse desdobramento do conflito põe em alerta países africanos que dependem dos grãos ucranianos distribuídos pelo Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (70% do total) e também gera expectativa de que, em curto prazo, o preço do pãozinho possa subir para o consumidor brasileiro. A alta do pãozinho ainda é tratada como hipótese porque os preços do trigo no mercado interno estão em torno de R$ 1.500 a tonelada, contra um pico de R$ 2.300 no ano passado. Assim, para alguns analistas, a crise na Ucrânia pode se limitar a evitar uma redução ainda maior dos preços pagos ao produtor quando entrar a nova safra, em novembro.

“Eu não vejo um impacto muito grande que faça voltar a preços históricos do ano passado. A Argentina, o Paraguai e o Brasil vêm com uma produção boa, o cone sul está garantido, não há problema de fornecimento, mas de correlação de preços. Teríamos de esperar mais um tempo para ter certeza de que esse repique vai acontecer. Acho que pode não deixar cair ainda mais o preço, que já ajustou bastante”, avalia Daniel Kümmel, CEO do Moinho Arapongas e presidente do Sindicato da Indústria do Trigo do Paraná.

Bloqueio do trigo russo teria consequências mais sérias

O cenário pode piorar, contudo, se algum bloqueio atingir os comboios russos. "Problemas com a Ucrânia afetam os estoques, mas se tiver problema com o escoamento da safra da Rússia, o preço pode subir muito, porque o país representa sozinho 25% das exportações mundiais", sublinha Jonathan Pinheiro, analista de Trigo da StoneX. Para ele, o mercado ainda não precificou totalmente a situação do trigo, e aguarda o desenrolar da crise no Mar Negro.

No quadro de momento, o Brasil deve colher benefícios em sua balança comercial, recebendo maior injeção de dólares devido ao repique nos preços das commodities agrícolas. Da segunda safra recorde de milho, que deve alcançar perto de 100 milhões de toneladas, os produtores já venderam apenas 45%. Os outros 55% a ser negociados poderão render mais. No trigo, o jogo está aberto, porque muito pouco é comercializado antes da colheita.

O impasse no Mar Negro já provocou alta das cotações de milho e trigo Bolsa de Chicago, perto de 10% e 20% em três dias. No caso do milho, inverteu uma tendência que seria de baixa para essa época.

Segunda safra de milho brasileira pode ultrapassar 100 milhões de toneladas neste ciclo (Foto: Daniel Caron / Arquivo Gazeta do Povo)

Crise no Mar Negro salva preços da supersafra brasileira

“É uma variável que ajudou o produtor brasileiro, visto que estamos em ano de supersafra. O preço do milho poderia despencar muito, mas agora abre mais espaço para sua exportação”, observa o consultor agrícola Vlamir Brandalizze. A preocupação maior seria com o trigo, em que o Brasil não é autossuficiente, apesar de colher neste ciclo um volume recorde de 11,3 milhões de toneladas. Em contrapartida, a Rússia é o maior exportador mundial, com quase 50 milhões de toneladas, e a Ucrânia com outros 13 milhões. O segundo maior exportador, os Estados Unidos, enfrentam quebra de safra por causa do clima seco e quente.

“Mesmo o trigo da Rússia pode ficar bloqueado por lá, por causa do custo do frete e do risco das cargas. Os próprios navios russos vão ter custos maiores. Esse cenário abre a janela para exportar o trigo brasileiro, que normalmente tem pouca liquidez”, sublinha Brandalizze.

Num cenário ideal, o trigo brasileiro seria exportado nos próximos meses com sobrepreço, e quando chegar nossa época de entressafra, entre abril e julho de 2024, as cotações teriam se estabilizado por um eventual arrefecimento das tensões na Ucrânia e pela entrada das safras da Argentina e dos Estados Unidos.

A cotação internacional do milho já havia recuado neste ano 26% e, a do trigo, 17%. O mercado não espera o retorno a preços estratosféricos do ano passado, provocados tanto pelo estouro da guerra como pela forte seca na Argentina. “No ano passado, a quebra de safra na Argentina impactou muito forte na ração. Esse ano, até algumas semanas atrás o milho estava chegando à indústria de ração por menos da metade do que custava no pico do ano passado. Vai encarecer um pouco, mas a situação ainda deve ficar muito melhor”, avalia Brandalizze.

Ração já subiu, pãozinho ainda não

Quanto ao impacto nos preços da mesa do brasileiro, há quem veja isso como líquido e certo. Leonardo Paz, analista da FGV, lembra que grãos são commodities e seguem cotações internacionais. “Quem ganha é o produtor, que vai vender melhor sua safra. Quem perde é o consumidor, porque o trigo impacta no preço do pãozinho, e outros grãos impactam na proteína animal, porque são comida para o porco ou a vaca, que viram carne e impactam toda cadeia de alimentação”.

A ração à base de soja já subiu de 5% a 6% e o milho deve chegar 10% mais caro para a indústria. A transferência dos custos aos consumidores em itens como ovo, frango e leite, contudo, pode não acompanhar esses percentuais, apesar da gravidade da situação no Mar Negro. Para Vlamir Brandalizze, o baixo poder de compra dos brasileiros limita a possibilidade de repasses. Como há superprodução de grãos no país, o cenário deve favorecer as exportações do excedente de proteína animal. “O nosso frango é o mais barato do mundo disparado. Temos coxa e sobrecoxa a 1,2 dólar o quilo no supermercado. Exportamos a 2,20 dólares o quilo e em qualquer outro lugar do mundo você não encontra por menos de três dólares”.

Neutralidade do Brasil é questionada

À parte perdas e ganhos em curto prazo, o Brasil pode estar “errando a mão” em suas reações diante do enfrentamento da Rússia com o Ocidente. O presidente Lula já disse que Rússia e Ucrânia têm mesma responsabilidade pela guerra, igualando agressor e agredido. Nesse contexto, muitos países já veem o Brasil como apoiador silencioso das ações de Putin, de quem aumentou as compras de óleo diesel e fertilizantes, segundo Igor Lucena, doutor em Relações Internacionais membro da Associação Portuguesa de Ciência Política.

“A neutralidade ela é dita, mas não é exercida. Se fosse exercida na prática, a gente não negaria a demanda dos europeus por munições, nem colocaria a Rússia e a Ucrânia no mesmo ponto de vista. Na prática, a gente está fazendo o que a Rússia quer. Isso atrapalha acordos, por exemplo, com a União Europeia, por que o Brasil não tomou posição clara”, diz Lucena.

Quanto às provocações de Lula aos Estados Unidos, questionando o dólar como moeda do comércio e acusando os americanos de “incentivarem a guerra”, Lucena avalia que falta responsabilidade nas declarações. “Esse confronto não traz nada, só animosidade, não apenas contra o governo Biden, mas contra os Estados Unidos em geral. Imagine se daqui um ano a gente tem na presidência mais uma vez o presidente Trump? A resposta seria fulminante, e o Brasil ficaria isolado”, pondera.

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