Como você reagiria ao saber que os alimentos servidos à sua mesa contêm resíduos de piridoxina, alfa-tocoferol ou filoquinona?
A piridoxina, encontrada no grão de bico, em folhas verdes e nas cenouras, pode induzir convulsões, dificuldades de andar, diarreia, reações alérgicas e fraqueza muscular. Já o alfa-tocoferol das sementes de girassol, espinafre, abacate e amêndoas, pode causar neurotoxidade e lesão hepática, assim como fadiga, vômitos, visão turva e problemas de coagulação do sangue. O que dizer da filoquinona? Presente na couve e no espinafre, induz icterícia e anemia, e, em bebês, pode levar a danos cerebrais.
Preocupado? Antes de prosseguir, vale esclarecer que as três substâncias citadas são as vitaminas B6, E e K, e devem, sim, fazer parte de uma alimentação saudável. Como já demonstrou o médico suíço do século XVI Philippus von Hoenheim, o Paracelso, a diferença entre fazer bem ou mal à sua saúde pode estar na dose ingerida.
Dose letal de algumas vitaminas é menor do que de pesticidas
A ciência que vale para as vitaminas precisa ser observada também quando se trata dos defensivos químicos – defendem o médico toxicologista Ângelo Zanaga Trapé e o engenheiro-agrônomo Décio Luiz Gazzoni, coautores de um artigo que compara a toxidade das vitaminas com a dos pesticidas. . “Toda substância química, inclusive a água, pode ser veneno. Tudo depende da dose. Quando a gente olha a dose letal de algumas vitaminas, aquela dose letal média, que pode causar segundo a teoria científica o óbito de 50% das cobaias, tem pesticidas que você precisa tomar muito mais do que vitamina para atingir o mesmo valor. Se fosse para demonizar, deveriam demonizar também as vitaminas e seria o caso de não usar nem um nem outro”, observa Gazzoni.
Para que um produto como a permetrina, inseticida comumente usado no Brasil em lavouras de milho, entre outras, tenha o potencial de causar a morte de alguém, seria necessário que cada quilo de alimento consumido tivesse 150 mg da substância. Pela receita agronômica atual, mesmo que todo o inseticida ficasse concentrado no grão, o resíduo seria de 0,5 mg. "Mesmo numa conta totalmente absurda como esta, seria impossível atingir o valor da dose letal. Seria necessário aplicar dose 300 vezes maior e o produto não poderia sofrer nenhuma degradação entre a aplicação e o consumo (na prática, ocorre cerca de 95% de degradação). E toda a permetrina aplicada teria que ir para os grãos, quando sabemos que uma ínfima fração vai para os grãos", assinala o pesquisador.
Pimentão foi alvo de distorções por causa de resíduos
O médico Ângelo Trapé, que há quatro décadas coordena estudos sobre agrotóxicos no País e foi coordenador do Ambulatório de Toxicologia do Hospital das Clínicas da Unicamp até 2017, cita um episódio sobre resíduos encontrados no pimentão como exemplo de leituras equivocadas da realidade.
No pimentão, o limite máximo de resíduo para a deltametrina, inseticida do grupo dos piretróides, é de 0,001 miligramas por quilo. Em 2009, foram encontrados resíduos de 0,004 miligramas. Houve alarme e o ministro da Saúde na época, José Gomes Temporão, chegou a dizer que tinha tirado o pimentão da mesa de sua família. Sem levar em conta que os índices encontrados eram quase 100 vezes inferiores do que a menor dose estimada para algum efeito adverso em cobaias.
“O que é um miligrama? É um grão de areia em meio a outros mil grãos de areia. Você ainda divide por 100 antes de estabelecer um limite máximo de resíduo em um quilo de pimentão. Daí acharam 0,004 mg e consideraram esse pimentão contaminado. Se você pegar os valores de Ingestão Diária Aceitável (IDA) e de Limite Máximo de Resíduo (LMR), a quantidade de ingestão do alimento para produzir algum problema, antes de ter uma ruptura do estômago, é inimaginável”, argumenta Trapé. Nas contas do médico, seria necessário comer 100 kg de pimentão num dia para resultar em contaminação de 4 mg de deltametrina. “É algo totalmente fora da realidade. No entanto, o ministro da Saúde da época mandou tirar o pimentão da mesa. O que aconteceu? A cadeia do pimentão se destruiu, os agricultores familiares quebraram por causa de uma desinformação dessas. Por que, do ponto de vista da saúde, aqueles resíduos não traziam nenhum tipo de problema”, enfatiza.
Presença de substância não quer dizer dano à saúde
Atualmente, os laboratórios conseguem detectar substâncias diluídas na proporção de uma parte por bilhão ou até trilhão, ou seja, aponta Gazzoni, é possível detectar uma gota numa piscina inteira. "Eliminar totalmente os resíduos é quase impossível, porque a capacidade de detecção é muito alta. Mas, se estiver acima do recomendável, opa, alguém aqui não cumpriu a legislação, não cumpriu as recomendações técnicas. Para isso existe o rastreamento. Você deve voltar lá no Ceasa e conversar com o produtor, para descobrir onde foi que ele errou, se aplicou muito tarde o produto, se aplicou demais, e corrige isso. Existe uma margem de segurança enorme justamente para isso”, pondera Gazzoni.
“O pessoal acha que o agricultor acorda de manhã todo feliz e pimpão dizendo: Ah, hoje vou sair aplicando agrotóxico para todo lado. Eles não fazem isso. Fazem de maneira extremamente controlada, porque sabem do valor do produto e quanto têm que aplicar. As tecnologias de pulverização elestrostática (gotas se ligam às plantas como ímãs), associadas a moléculas cada vez mais seguras e à introdução de produtos biológicos, estão trazendo uma segurança alimentar extremamente confortável para o brasileiro”, aponta Trapé.
Há poucas semanas o médico toxicologista publicou o resultado de um trabalho de campo que investigou eventuais problemas de saúde por contaminação com agrotóxicos entre mil agricultores familiares de oito municípios da Serra da Ibiapaba, no Ceará. A região é tradicional em cultivo de hortifrútis com uso de defensivos químicos, por vezes com equipamentos de proteção incompletos ou rudimentares. Dentre os agrotóxicos mais utilizados, 34% eram de Classe I, ou seja, extremamente tóxicos, 25 % altamente tóxicos e 41% medianamente tóxicos.
O universo avaliado pela pesquisa envolveu uma população trabalhadora dentro do pior cenário de produção agrícola, ou seja, pequenos proprietários de agricultura familiar, com contato direto e exposição de longo prazo.
Exames não encontraram danos à saúde dos agricultores
Dentre os 1.000 avaliados, 29 pessoas (cerca de 3%) apresentaram alguma suspeita de contaminação por critérios epidemiológicos (eventual intoxicação anterior), clínicos (irritação gástrica ou dermatológica, por exemplo) e laboratorial (rebaixamento da acetilcolinesterase). Dos 29 suspeitos, após novos exames laboratoriais, apenas um teve confirmada lesão dermatológica devido à exposição a agroquímicos. Essas lesões, em sua maioria, são determinadas pela falta de uso de EPI ou utilização inadequada. Não houve detecção de quaisquer distúrbios hematológicos, renais ou endocrinológicos.
“A exposição média aos agrotóxicos era de 16 anos. Investigamos tudo: fizemos hemograma, perfil hepático, perfil renal, tireoide, colesterol e frações, teste de álcool, índice de massa corporal, pressão arterial. E qual foi nossa surpresa de que não houve diferença com os padrões de morbidade e saúde da população brasileira. A única discrepância foi nos indivíduos com sobrepeso e obesidade, deu uma média de 70%, enquanto a média do Brasil está em torno de 50%”. Isso estaria relacionado aos hábitos alimentares. “É uma população que come muita manteiga de garrafa, muita macaxeira, cuscuz e carne seca”, sublinha o médico.
Pesquisa não encontrou maior incidência de câncer em região tipicamente agrícola
Em outra pesquisa, sobre o efeito cumulativo dos defensivos, o toxicologista levantou a taxa bruta de câncer por órgão em Mato Grosso, um estado de intensa atividade agropecuária. Se o uso de defensivos fosse impactante nos indicadores de saúde, naturalmente haveria mais casos de câncer entre trabalhadores que lidam com agrotóxicos há 20 anos. Não foi o que se constatou. A taxa de câncer, por órgão e por tipo de doença, foi maior em Cuiabá do que no resto do estado. “O câncer vai aumentar mesmo, porque a população brasileira e mundial está ficando mais velha. A gente não encontra esses efeitos cumulativos. Isso é mais um achismo. Fato é que quanto mais velho a gente ficar, a chance de ter uma neoplasia é muito maior. Eu trabalhei 40 anos investigando isso. Nunca tive nenhum caso de algum indivíduo que tenha se intoxicado comendo um tomate, uma salada, uma batata.”, assegura.
A pregação cega contra os agroquímicos, em si, ironicamente, acaba representando um risco à saúde. “Criam uma cultura do medo, mandam notícias no WhatsApp dizendo, olha, de acordo com os testes da Anvisa, todo tomate e pimentão estão contaminados. Daí a pessoa deixa de comer pimentão e tomate, deixa de comer licopeno, que é um antioxidante poderoso, que protege as células, evita danos ao DNA e é um redutor de risco de câncer. Depois, vai ao médico e vê que está faltando um monte de vitamina, gasta dinheiro com suplementos quando poderia ter ingerido na alface, no pimentão, no repolho, na maçã, na laranja”, enfatiza Décio Gazzoni
Anvisa confirma segurança dos alimentos produzidos no país
No último relatório disponível do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), cobrindo o período de 2017/18, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária avaliou 4.616 amostras de 16 alimentos de origem vegetal representativos da dieta da população brasileira. A análise buscou identificar eventuais riscos para o consumidor tanto no curto prazo (risco agudo) quando no longo prazo (risco crônico).
Casos esporádicos de não conformidade com o Limite Máximo de Resíduos (LMR), disse a agência, não necessariamente representam risco à saúde do consumidor, já que o LMR é um parâmetro agronômico, derivado de estudos de campo simulando o uso correto do agrotóxico pelos produtores. “Nos casos em que se detectam resíduos em concentrações acima do LMR, é necessário realizar a avaliação do risco, onde se compara a exposição esperada com os parâmetros de referência toxicológicos agudo e crônico”. Só se identifica um potencial risco à saúde do consumidor quando a exposição exceder os parâmetros de referência toxicológicos.
Nenhum dos alimentos analisados pela Anvisa continha resíduos de ingredientes ativos em percentuais maiores do que a Ingestão Diária Aceitável (IDA). “Os três agrotóxicos que apresentaram maior exposição crônica calculada foram terbufós (28,77% da IDA) e fipronil (21,04%) e protioconazol (19,03%). Para 179 agrotóxicos, a exposição crônica foi inferior a 10% da IDA, sendo que para 130, a exposição calculada foi menor que 1% da IDA”, diz o relatório.
“Os resultados de monitoramento e avaliação do risco compilados neste relatório, correspondentes às análises de diversos alimentos que fazem parte da dieta básica do brasileiro, indicam que os alimentos de origem vegetal consumidos no Brasil são seguros quanto aos potenciais riscos de intoxicação aguda e crônica advindos da exposição dietética a resíduos de agrotóxicos”, informou a Anvisa, em nota à reportagem da Gazeta do Povo.
O próximo relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), com amostras do ciclo 2018-19, está previsto para ser divulgado ainda no segundo semestre de 2022. As atividades de coleta, transporte e análises das amostras foram temporariamente suspensas, em 2020, para priorizar as ações de combate à pandemia do coronavírus.
Toxicologista sueco escreveu livro para desmistificar tema
No livro Inte så farligt som många tror ("Não é tão perigoso como muitos pensam", ainda não traduzido para o português), o professor emérito de Toxicologia da Universidade de Uppsala, na Suécia, Lennart Dencker, critica a confusão de colocar na mesma perspectiva os efeitos de substâncias químicas em doses concentradas em remédios com apenas rastros de substâncias dos defensivos agrícolas, quase insignificantes, presentes nos alimentos.
Inúmeros produtos químicos com potencial tóxico, mas em doses muito baixas, não teriam efeitos danosos à saúde humana justamente por não haver quantidade suficiente para alterar outras moléculas recipientes. Explicando porque escreveu o livro, ele afirmou ao jornal Svenska Dagbladet, um dos principais da Suécia: "Há muito tempo tenho a sensação de que há uma discrepância entre a pesquisa e o que é dito ao público. Os jornalistas geralmente obtêm apenas um fragmento da pesquisa, e as pessoas que leem o jornal e assistem a televisão carecem de perspectiva e contexto".
Sobre os resíduos de agroquímicos e a segurança dos alimentos, a reportagem fez contato com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), ligado ao Ministério da Saúde, e com a Escola Nacional de Saúde Pública da fundação Fiocruz (ENSP). O Inca declinou comentar o assunto e a ENSP não retornou os pedidos de entrevista.
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