Frigoríficos, tradings de soja e produtores de café são alguns dos setores do agronegócio pressionados por clientes, domésticos e internacionais, para provar que sua cadeia produtiva não tem nenhuma ligação com áreas de desmatamento ilegal.
Uma das maiores exportadoras globais de carne, a Marfrig, está comprometida em garantir a total rastreabilidade do gado na Amazônia, até 2025, e nos cinco anos seguintes chegar aos demais biomas, como o Cerrado. No café, em Minas Gerais, marcas como a Nespresso e Nucoffee já pagam a mais pela rastreabilidade aos cafeicultores da Cooperativa Monte Carmelo.
Além das iniciativas empresariais que correm por conta própria, o Estado brasileiro tenta implementar há anos uma ferramenta que nenhum outro país possui em relação às propriedades privadas, para atestar quais são as áreas em plena conformidade com a legislação ambiental. Trata-se do Cadastro Ambiental Rural, uma exigência estendida a todos os imóveis rurais pelo Novo Código Florestal. Nele, o produtor declara a situação da propriedade em relação à Reserva Legal e às Áreas de Preservação Permanente (APPs) e se há excedentes de cobertura vegetal, por exemplo.
É a vez de o poder público fazer a devolutiva do CAR
Os agricultores aderiram de forma maciça ao CAR: mais de 6,5 milhões de declarações foram feitas desde 2013. Estima-se que as informações cubram mais de 98% das propriedades. Falta ainda o processamento desses dados e um retorno oficial. “A lei é uma das mais sofisticadas em termos de proteção dentro de uma propriedade. Não é possível que o poder público não dê essa devolutiva, não diga: olha, sua declaração está ok, ou, sua declaração não está ok, é preciso fazer isso e aquilo para regularizar. É um esforço grande do estado, que não pode deixar de acontecer”, avalia Cristina Murgel, coordenadora do Programa CAR na Secretaria da Agricultura de São Paulo. O estado é o que está mais avançado na validação dos dados. Os 404 mil cadastros no sistema já foram processados, dos quais 33% vão exigir alguma retificação dos produtores, e foram separados para verificação individualizada. Os outros 67% tiveram análise concluída e estão disponibilizados para o “aceite do proprietário”.
Essa rapidez no processamento foi possível porque São Paulo aderiu à ferramenta AnalisaCAR, disponibilizada há um ano pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para destravar o processo. O AnalisaCAR faz o cruzamento automático de dados, com capacidade de análise de até 66 mil cadastros por dia. Assim, em apenas quatro dias o sistema nacional pode dar conta de processar mais do que todos os 180 mil cadastros revisados nos últimos seis anos. Se fosse mantido o ritmo de 30 mil por ano, levaria 216 anos para terminar a análise dos 6,5 milhões de cadastros.
Estados vão fazer a checagem dos dados do CAR
A bola agora está com os estados. É deles a tarefa de verificar e regularizar as declarações feitas pelos produtores no CAR. E, de fato, há muitas sobreposições, aponta Rodrigo Lima, diretor da consultoria Agroícone. “Como o CAR é declaratório, e não foi preciso usar o geoprocessamento, o produtor entrou no sistema e pôde desenhar a propriedade no computador, talvez pegando bordas dos vizinhos ou de uma unidade de conservação. Ou seja, a base de dados do CAR hoje tem uma extensão muito acima do que existe de área privada no Brasil. São 6,57 milhões de cadastros, quando o Censo de 2017 mostra que a gente tem, arredondado, 5 milhões de áreas privadas. Então, tem 1,5 milhão a mais. E 612 milhões de hectares cadastrados. Mas o Brasil tem 851 milhões de hectares. Como é que tem 612 milhões de fazenda? Isso está errado. Mas vai jogar tudo fora? De maneira alguma, daí vem a necessidade de avaliação do CAR”, diz Lima, que é advogado especialista em comércio internacional e desenvolvimento sustentável.
Visto com desconfiança no início, o CAR virou uma aposta do setor produtivo para trazer à tona dados que comprovem que o Brasil pratica a agricultura mais sustentável do planeta, abrindo caminho para o pagamento por serviços ambientais previstos na lei. “O CAR é o passaporte da agropecuária. Exatamente por trazer informações para todos os elos da cadeia, para o banco que vai dar crédito para ele, para o comprador do boi gordo, das frutas e do leite. Ao longo da cadeia, espera-se que eu monitore ou cobre os fornecedores para que eles cumpram as leis. O CAR validado tem um papel excepcional para ajudar o produtor. Com ele validado, é um passaporte para fazer os negócios, tomar crédito, vender a fazenda com tudo ‘certinho’, isso agrega valor à propriedade. Se tiver um passivo, preciso me adequar, não tem jeito”, observa Lima.
Sem o CAR, país ficaria refém de soluções privadas e para poucos
O mercado tem pressa. Na avaliação do diretor da Agroícone, se o CAR fosse flexibilizado ou abandonado, como chegaram a defender alguns, haveria um prejuízo incalculável. “Imagine a Cargill que compra soja na região dos Campos Gerais do Paraná. Ela está exposta no mercado, é cobrada por investidores, pelos compradores, e tem ações na Bolsa. Ela precisa de informação mínima de que o fornecedor está buscando se adequar à lei. Se não tiver o CAR, vai ser o quê? Sem ele, ficaríamos reféns de inúmeras soluções privadas, contratadas de empresa a empresa, o que, a meu ver, seria muito ruim para a agropecuária brasileira. Com o CAR, a gente pode provar por A mais B, com foto de satélite, que a preservação é uma verdade. Isso agrega valor para nossa agricultura nessa discussão de mudança de clima, de pagamentos por créditos de carbono”, completa o consultor.
O diretor da Agroícone destaca a importância de um comitê gestor interministerial criado em março pelo Serviço Florestal Brasileiro, o Regulariza Agro. “Se vai fazer a polenta, tem que mexer a panela. Esse comitê gestor é importante, mas há que ter vontade política. Os estados e as cooperativas precisam abraçar. Se não, daqui a cinco anos corremos o risco de estar na mesma lenga-lenga. Todos têm um papel a cumprir. Não é só o produtor rural”.
Benefícios práticos do CAR, nas fazendas e no comércio exterior
Nas fazendas, o CAR validado vai possibilitar, por exemplo, que um agricultor com excedente de cobertura nativa na propriedade possa alugar a área para outro produtor compensar seu passivo, evitando que ele seja obrigado a tirar da exploração um campo altamente produtivo. Em nível internacional, a União Europeia pode exigir o CAR regularizado, afinal é uma previsão da legislação brasileira, para as importações agrícolas. Para Lima, é preciso olhar pelo lado positivo. “A União Europeia é destino de 16% de tudo o que o Brasil exporta na agricultura. Além disso, é um cartão de visitas fabuloso, você não joga fora um mercado desse tamanho. A gente precisa cumprir não só porque é lei, mas pelos benefícios que esse cumprimento do Código Florestal pode abrir. A gente tem a faca e o queijo na mão”.
O Serviço Florestal Brasileiro estima que, neste ano, 20 estados estejam em fase de plena adoção do AnalisaCAR, a ferramenta automatizada criada pelo governo federal. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apoia a iniciativa para “transformar o que era visto como passivo em um grande ativo ambiental”. Nelson Ananias, coordenador de sustentabilidade da CNA, aponta que um dos gargalos do setor, e do país, como um todo, é que “se faz muito e se comprova pouco”. “O Código Florestal é um dos mais rígidos do mundo e mais exigentes. Em que outro país não é possível utilizar 80%, 35% ou 20% da propriedade, dependendo da região, devido a questões ambientais? Essa sustentabilidade é um diferencial”, diz Ananias.
Meta é colocar APPs e Reserva Legal no mercado de créditos de carbono
A luta agora é para que este ativo, segundo o coordenador da CNA, que tem a virtude de dar transparência à questão ambiental no país, passe a ser levado em consideração nas transações envolvendo créditos de carbono. Em maio o governo publicou decreto lançando as bases da regulamentação desse mercado. O prazo é de 180 dias, prorrogáveis por mais 180, para que hajam os acordos setoriais.
“Entendemos que as áreas de APP (áreas de preservação permanente) e Reserva Legal, apesar de estarem na lei, são adicionalidades em relação aos nossos competidores internacionais. Outros países, grandes produtores, não têm obrigação de cumprir isso. A gente entende que essa adicionalidade deverá ser considerada no mercado voluntário do carbono. O Brasil deve pleitear por isso”, arremata Ananias.
Em nota, o Serviço Florestal Brasileiro destacou que "no módulo de Análise Dinamizada estão parametrizados mais de cem cruzamentos automatizados no ambiente de processamento de informações geográficas, permitindo a verificação dos dados de cobertura do solo e hidrografia declarados e sua revisão pelo produtor rural para, posteriormente, identificar a situação de regularidade ambiental das Áreas de Preservação Permanente (APP), de Reserva Legal (RL) e de uso restrito no imóvel rural". Também será útil para "localização de excedentes de vegetação nativa que podem ser objeto de emissão de Cotas de Reserva Ambiental (CRA) e outras modalidades de pagamentos por serviços ambientais".
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