Países europeus inteiros cabem dentro das áreas verdes protegidas no Brasil. Só essa constatação, no entanto, não deve ser suficiente para que o País obtenha reconhecimento e retorno financeiro pela preservação, num momento em que se desenham as bases de um mercado global de pagamento por créditos de carbono, aprovado ano passado na Conferência Mundial do Clima (COP-26) em Glasgow.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam as lições de casa a serem feitas para que o Brasil possa se destacar nesse mercado verde, que segundo a consultoria McKinsey, poderá chegar a US$ 100 bilhões em 2030. O País concentra 15% do potencial total de oferta de soluções baseadas na natureza, bem à frente dos EUA (3%) e China (2%), mas, atualmente, emite menos de 1% das possibilidades.
Segundo o estudo da McKinsey, um terço das oportunidades mundiais ligadas às florestas plantadas está no Brasil, e um quarto do potencial para florestas nativas. O agronegócio brasileiro está em primeiro lugar entre os países que podem lucrar com práticas agrícolas sustentáveis, mas emite atualmente créditos pelo sequestro de apenas 0,3 milhão de tonelada de carbono, diante de um potencial de 120 milhões a 160 milhões de toneladas de CO2.
Ainda não existe lei que obrigue empresas a compensar carbono ou estabelecer metas quanto às emissões de gases de efeito estufa. Adotar medidas para diminuir ou compensar as emissões, no entanto, é uma forma da empresa se mostrar antenada com questões ligadas à ESG (Boas Práticas Ambientais, Sociais e de Governança) e se valorizar perante consumidores e investidores.
O conceito de crédito de carbono foi criado em 1997, pelo protocolo de Kyoto, e visa premiar quem consegue reduzir emissões de gases de efeito estufa. A nação que não atingir as metas estabelecidas no Acordo de Paris, em 2015, pode comprar o crédito de nações "superavitárias". Cada tonelada não emitida corresponde a um crédito. A aproximação do prazo de 2030 para cumprimento parcial das metas tem provocado uma corrida dos países por esses créditos, e aumenta o engajamento de grandes empresas, como a Shell e a Petrobras, que anunciaram recentemente centenas de milhões de reais em projetos de preservação de florestas.
Crédito de carbono deve premiar quem faz bem feito
“O crédito não pode ser apenas para manter a floresta de pé e fazer uma lavanderia para segurar as emissões internacionais. Nada contra, mas o crédito precisa ter uma função análoga à que tem na Europa, que é financiar a inovação tecnológica, reconhecer as técnicas produtivas avançadas, premiando quem faz bem feito. Assim como uma petroleira, um pecuarista que investe, que recupera pasto, que acelera o tempo de abate e reduz emissões de metano também deveria ter crédito de carbono. A lógica é a mesma”, assinala Daniel Vargas, coordenador de Pesquisa do FGV Agro e do recém-criado Observatório de Bioeconomia da FGV.
Ao lado dos setores de energia e florestas, não há player mais interessado no assunto do que o agro, que é o que mais tem a perder e a ganhar, a depender do encaminhamento de questões cruciais que interferem no tema, como o desmatamento da Amazônia e os ativos da Reserva Legal, obrigatória em toda propriedade rural. Em relação ao desmatamento, o compromisso oficial é zerá-lo até 2028. Mesmo se isso acontecer, ainda será preciso ter um mercado nacional de carbono bem estruturado e com regras claras de governança, para que os frutos da sustentabilidade possam chegar em maior volume.
Há projetos no Congresso para criar um mercado de carbono regulado – que envolve compromissos de redução de emissões assumidos pelo país e impõe metas para os setores mais poluentes – e também para estabelecer diretrizes do mercado voluntário. Mas são poucas as chances de votação antes das eleições. O Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) pede urgência na votação do Projeto de Lei 528/2020 (apensado ao PL 2148/2015), que cria o mercado de carbono no Brasil, resultado de contribuições após anos de estudos, consulta pública e participação ativa de empresas e entidades.
"Um mercado regulado de carbono é estratégico para o setor produtivo brasileiro, e nosso grande risco é ficar para trás. Qualquer ação em direção oposta a essa significa perda de competitividade, represálias comerciais e prejuízos ao mercado nacional, afetando a geração de empregos e renda", diz nota do CEBDS à Gazeta do Povo.
Hora de construir métricas nacionais para os créditos de carbono
O professor da FGV Daniel Vargas enfatiza que “a ponte para o verde não está dada". "Ela precisa ser construída, e é fruto de um conjunto de criações, de um lado jurídicas, de outro, científicas, e, entre os dois, muita economia. O Brasil precisa abraçar e construir sua rede de métricas e metodologias nacionais para medir o carbono de cada quilo de produto que sai daqui. É converter nossa bagagem em valor. Isso é fundamental para nos proteger, para sermos menos ameaçados pelo avanço internacional da agenda da sustentabilidade e sua tradução em regras de comércio”, afirma.
Pelo decreto 11.075/2022, da Presidência da República, publicado em maio, nove segmentos de maior impacto nas emissões terão prazo de até um ano para apresentar seus planos setoriais de cumprimento das metas climáticas. É uma forma de provocar uma governança interna no setor privado.
“O crédito de carbono por si já é um ativo, mas é preciso ter um ambiente regulado para negociar esses créditos. Não é simplesmente alegar que estou fazendo uma produção limpa e adequada e já gerar o crédito. Seria fácil demais, como imprimir dinheiro. E essa impressão geralmente surte efeito contrário, de não valorização do crédito. Precisamos construir as empresas que criarão os certificados e a plataforma de negociação desses créditos de carbono. Para de fato juntar as pontas e ter algo duradouro”, explica Vinícius Gomides, da Fintech Bioma Investimentos, que assessora produtores rurais e agroindústrias.
O alerta é de que, ou a sociedade brasileira cria metodologias próprias para medir a pegada de carbono de seus produtos, em linha com as diretrizes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), do qual o Brasil é um dos 195 signatários, ou terá de seguir a métrica de outros países. E aí podem ocorrer distorções. Um exemplo, que está sendo revisado pelo IPCC, envolve a medição das emissões da pecuária da mesma forma como são medidas as emissões de combustíveis fósseis. Não faz sentido, diz Vargas, por que o gado apenas recicla o gás de efeito estufa que já está na atmosfera, enquanto a extração de petróleo vai buscar um carbono que estava enterrado e imobilizado há milhares de anos.
Reserva Legal deve ser premiada como adicionalidade
Um debate à parte envolve as áreas preservadas dentro das propriedades rurais brasileira, como a Reserva Legal (de 20% a 80% da propriedade, dependendo do bioma), que são obrigações legais e que cobrem 20,5% de todo o território nacional. Nem a Organização Mundial do Comércio nem a Conferência do Clima definiram se essas áreas entram no conceito de adicionalidade, e, assim, poderiam gerar créditos de carbono. “As áreas de preservação permanente e de Reserva Legal são adicionalidades quando comparadas a qualquer outra agricultura do mundo. Existe a discussão de que é uma obrigação, mas ocorre que elas têm custo para o produtor rural, que precisa mantê-las, cercar, evitar incêndios e invasão por estranhos. A gente entende que há uma adicionalidade e que poderia ser elegível no mercado de carbono”, diz Nelson Ananias, coordenador de Sustentabilidade da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA).
Vargas, da FGV, concorda. “É uma contradição, cria-se uma corrida às avessas. Quanto mais fraca a legislação, melhor. Nos Estados Unidos, a preservação se dá pelo pagamento aos produtores por parte do estado. Uma espécie de antitributo. Aqui é o contrário, o produtor é tributado em 20% e se houver problema, é um crime que ele terá de resolver.”
No Brasil, hoje, certificar as boas práticas e os créditos que um empreendimento rural possa ter no mercado de carbono é quase um monopólio da multinacional americana Verra. Vargas defende que empresas certificadoras locais entrem nesse jogo, “nacionalizando” as métricas. E não por causa de um preconceito de origem, mas porque o que se tem atualmente segue padrões de uma realidade distinta, do hemisfério Norte.
“A certificação é a porta de entrada de todo o sistema. Ela é complexa, cara, restrita e automaticamente já cria um filtro que deixa grande parte da atividade produtiva fora do jogo. Portanto, ter certificadoras que competem entre si é uma questão estratégica para esse mercado avançar no Brasil nos próximos anos”, assegura o coordenador do FGV Agro.
RenovaBio já faz pagamento por serviços ambientais
Exemplo de arranjo regulatório “nacionalizado” está no setor de cana de açúcar, com o RenovaBio, criado em 2016 para fomentar a produção de combustíveis renováveis. O produtor Antonio Celso Bernardes de Oliveira, de Planura (MG), já recebe dividendos pelas boas práticas no canavial. Ele confessa que, no início, não pôs muita fé nos CBIOs, créditos de carbono que as distribuidoras de combustíveis fósseis são obrigadas a comprar no mercado. Mas esses créditos já renderam à propriedade R$ 300 mil por ano, ou R$ 1 por tonelada de cana processada. Hoje o valor já está em R$ 1,30 por tonelada.
Tudo é controlado numa planilha. “Se não houve incêndio no canavial, você pontua na planilha. Se usar menos adubo nitrogenado e óleo diesel, também pontua. Conta ainda o uso do esterco para fazer adubação das canas. A gente informa a usina, que passa a auferir esses créditos e nos repassa”, explica Oliveira. Ele ressalva, contudo, que fez investimento alto para receber esse bônus. “Só o projeto de Eia Rima custou cerca de R$ 200 mil, sem contar todas as adequações, as atividades e preservação que tem de inserir dentro da propriedade. Você tem um custo anual alto, mas pelo menos o RenovaBio remunera”.
Os benefícios de organizar a certificação de boas práticas ambientais não estão apenas no mercado de compensações por emissão de carbono. Envolvem, também, a preferência na compra de produtos, descontos, prêmios ou juros menores na hora de contratar empréstimos e serviços, além do próprio acesso à comercialização desembaraçada.
Agro é o maior interessado em acabar com o desmatamento ilegal
No novo mercado global de créditos de carbono, o Brasil tem os trunfos da alta taxa de preservação do território (66%), boa parte como Reserva Legal dentro das propriedades rurais, e de uma base energética limpa, calcada principalmente sobre hidrelétricas. Mas há também um calcanhar de Aquiles, o desmatamento ilegal da Amazônia. “Todos esses esforços do país para criar um agro pujante e cada vez mais sustentável, tudo isso acaba sendo sombreado por avanços no desmatamento. É uma ferida que o Brasil precisa enfrentar. E ninguém tem mais interesse de ser o maior ambientalista do Brasil do que o agro. Por que se a gente para o desmatamento, tudo o que a gente faz na agricultura passa a ser crédito, passa a ser modelo”.
As dimensões continentais do País podem fazer pensar que o Sul e o Sudeste, por exemplo, situados a milhares de quilômetros de distância, não teriam nada a ver com o problema amazônico. Mas não funciona assim. “No cálculo da geopolítica, a referência é a partir das unidades nacionais. É o país que negocia. Se dentro da nação tem uma parte que é sustentável e outra não é, a nação é que responde. Se pararmos o desmatamento vamos criar uma quarta safra para a produção brasileira. A grande crítica, o grande elemento de sensibilidade em relação ao agro brasileiro é a Amazônia. E o agro precisa ajudar a combater o problema, não por que ele criou, mas por que ele paga a conta”, analisa Vargas.
Boas práticas precisam ser recompensadas
Se os desafios são grandes, também são grandes as oportunidades para o agronegócio brasileiro. O sistema de plantio direto, que fixa carbono no solo, as florestas plantadas, a carne baixo carbono (ou carbono zero) são exemplos de práticas que podem ser recompensadas, trazendo dólares ao País.
“Assim como uma petroleira, um pecuarista que investe, que recupera pasto, que acelera o tempo de abate e reduz emissões de metano também deveria ter crédito de carbono. A lógica é a mesma. O crédito não pode ser apenas para manter a floresta de pé e fazer uma lavanderia para segurar as emissões internacionais. Nada contra, mas o crédito precisa ter uma função análoga à que tem na Europa, que é financiar a inovação tecnológica, reconhecer as técnicas produtivas avançadas, premiando quem faz bem feito”, assinala Vargas. E nisso, no estabelecimento dessas regras, o País é soberano. Um segundo momento envolverá discutir esses princípios nos fóruns internacionais.
Mercado de créditos de carbono poderá ser trilionário
O CEBDS lembra que "os mercados de créditos de carbono podem se tornar um negócio trilionário até 2050, considerando os mecanismos de mercado previstos no âmbito do Acordo de Paris e a possibilidade de compensação de emissões com tais créditos tanto para fins de cumprimento com regulações específicas quanto para cumprimento de metas voluntárias". São recursos, diz o CEBDS, que poderão estimular a inovação no setor produtivo e financiar a transição para "uma economia verde, competitiva e inclusiva".
Fato é que não há como tirar a agropecuária da solução do problema. “Saiu do solo todo esse carbono que está na atmosfera criando uma série de problemas para nós. É para o solo que ele tem que voltar. E quem cuida do solo, na maior parte do mundo, são agricultores. Então esse mercado vai ser construído por eles, tocado por eles, gerado valor por eles, e negociado nas mais diversas frentes e indústrias mundo afora”, prevê Gomides, da Bioma Investimentos.
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