Lideranças que representam boa parte do PIB agropecuário brasileiro estão mobilizadas para tentar evitar que o país assuma “compromissos inalcançáveis” nos esforços para mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas. A preocupação se acentua no contexto de calor extremo e queimadas no país, que pode criar um ambiente propício para imposição de uma pauta ambientalista radical no chamado Plano Clima, ignorando os atributos e diferenciais da agricultura tropical sustentável.
O Plano Clima é um conjunto de estratégias que estão sendo elaboradas pelo governo. O objetivo é reduzir o desmatamento e permitir a transição rumo a uma economia de baixo carbono, "rumo à neutralidade climática", segundo o Ministério do Meio Ambiente.
O alerta do setor agropecuário é de que não é possível adotar metas climáticas mais ambiciosas, como sugerem ONGs ambientalistas, e como acena o governo Lula ainda para este ano, sem que antes se faça um ajuste no Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa.
Da forma como funciona atualmente, o inventário não leva em consideração as comprovadas remoções de carbono feitas por boas práticas como integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF), Sistema de Plantio Direto, recuperação de pastagens e cultivo de florestas plantadas.
As preocupações estão em carta aberta endereçada à secretária nacional de Mudanças do Clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, no início do mês, que havia cancelado de última hora uma reunião com representantes do setor produtivo. O documento causou incômodo no governo porque, na prática, soou como um ultimato por mais transparência e diálogo antes da assinatura de compromissos multissetoriais que podem afetar a economia do país pelas próximas décadas.
Setor empresarial busca diálogo
Quem bateu na mesa foi um grupo de interlocutores considerado mais moderado, que reúne executivos das associações de exportadores de carne, madeira, frutas e óleos vegetais, além de dirigentes de bancos com forte portifólio no agronegócio (Itaú BBA e Rabobank).
A reunião entre os líderes empresariais e a secretária nacional da Mudança Climática foi remarcada e ocorreu em São Paulo, uma semana depois da carta-manifesto. Um dos articuladores do grupo, Marcello Brito, ex-presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e coordenador da Academia Global do Agronegócio da Fundação Dom Cabral, preferiu pôr panos quentes na polêmica. “O processo agora está em construção, hora de trabalhar muito internamente, hora de construir”, afirmou.
O diretor de relações institucionais da Indústria Brasileira de Árvores (Ibá), embaixador José Carlos da Fonseca Junior, foi na mesma linha: “A secretária nos deu a notícia de que não precisamos nos preocupar. Isso vai estar contemplado por parte das especificidades da agricultura tropical que se pratica no Brasil”.
Setor produtivo não quer surpresa de metas irreais no Plano Clima
A abertura de um canal de diálogo não anula, no entanto, as preocupações expressas no documento. A intenção das lideranças, segundo fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, foi ter “um lugar à mesa” no debate e construção das metas climáticas. Elas não querem ser surpreendidas por acordos feitos dentro de quatro paredes, como em ocasiões anteriores.
Atualmente, o governo brasileiro está comprometido a reduzir as emissões em 48% até 2025 e em 53% até 2030, em relação às emissões de 2005. Preocupa a disposição declarada do governo Lula de “ser o paladino do 1,5 °C”, liderando o esforço de medidas restritivas para frear o aquecimento global.
Para os signatários da carta do agro, o Brasil pode aproveitar a COP em Belém, no ano que vem, para exercer liderança e propor mudanças e revisões de prioridades, mas “sem exagerar” em novas metas e ambições.
“Teremos condições de posicionar a discussão nos desafios que de fato precisam ser solucionados. Reduzir o uso de fósseis, investir em adaptação, regulamentar o mercado internacional de carbono, consolidar o Fundo de Perdas e Danos, efetivar o Balanço Global, para melhor compreender os esforços para atingimento das metas no Acordo de Paris. Tais ações deveriam ser prioridade ao invés de trazermos novas metas e novas ambições à mesa”, diz o documento.
Foco nos combustíveis fósseis
A intenção do governo petista é atualizar a meta climática brasileira – conhecida como Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) – ainda neste ano, durante a COP 29, no Azerbaijão. Para o setor agroindustrial, o país não pode fazer coro ao discurso de que as atividades agrícolas são vilãs do clima.
"Nos chama a atenção, por exemplo, que o Plano Clima, por meio do modelo Blues, da UFRJ, não está considerando as remoções de florestas plantadas [apenas de florestas nativas]. Este ponto deve ser mais bem debatido e inserido na modelagem, pois o próprio inventário nacional e o IPCC consideram estas remoções”, diz trecho da carta.
“A redução das emissões de gases efeito estufa na produção agropecuária é relevante no caso doméstico, mas não é o principal ofensor a nível internacional. Dessa forma, nos preocupa posicionar o setor como parte central do problema ou da solução. Não podemos perder de vista os combustíveis fósseis como o principal desafio a ser combatido”, argumentam.
Promessa de Lula passa por cima do Código Florestal
Dentre compromissos sem fundamento técnico ou jurídico que preocupam o agro, está a promessa do presidente Lula realizada na última conferência do clima, em Dubai, de zerar o desmatamento legal e ilegal até 2030. “Quase um ano passou após Dubai e ainda não conseguimos entender como pretendem cumprir o fim do desmatamento legal quando sequer o ilegal está equacionado”, questionaram os signatários do documento.
Esse aparente desdém do governo pelo Código Florestal só tem aumentado as resistências do setor produtivo. Para Daniel Vargas, professor de Economia e Direito da FGV, ao prometer desmate legal zero o governo cria um paradoxo inaceitável para os produtores. Pela lei, eles podem converter de 20% a 80% de suas áreas para cultivos agrícolas, a depender do bioma. Isso é garantido pela Constituição.
“Aí o governo brasileiro cria uma obrigação do país [desmatamento zero], cuja satisfação passa por negar o meu direito. E sem esclarecer como essa equação vai se resolver. Você converte o que é um direito do proprietário dentro do país em uma dívida do país perante o mundo”, alerta Vargas.
Agricultura não pode ter mesmo tratamento de empresa petroleira
A falha do inventário das emissões, diz Vargas, é tratar o agro como se fosse uma petroleira, que só emite gases de efeito estufa. Trata-se de um modelo construído para a realidade dos países ricos, onde o problema é a energia suja.
"Uma petroleira não sequestra nada, ela só emite. Mas para o agronegócio e o uso da terra, a dinâmica é outra. Você pode gerar emissões, mas a depender da forma como utiliza a terra, também pode haver sequestros. A fotossíntese é uma máquina a céu aberto de sequestro de carbono da atmosfera. E o que importa para nós é o balanço. E o que fazemos no inventário não é balanço. É uma nota promissória em que a gente só coloca as dívidas", argumenta.
A COP 30, em Belém, será a COP da renovação das metas ambientais do planeta, ao se completarem dez anos do Acordo de Paris. No setor produtivo, teme-se que o governo Lula resolva “ficar bonito na foto”, assumindo compromissos que não levam em conta a realidade da agricultura tropical, sequestradora de carbono. Outro receio é de que o momento atual, de estiagem prolongada e recorde de incêndios, acabe favorecendo a radicalização da pauta ambientalista.
Discurso de medo e apocalipse
“O combustível mais influente para uma agenda ambiental restritiva é o medo. Esse ambiente de queimadas espalhadas pelo país, que em parte sinalizam uma incapacidade do próprio governo de fazer a gestão ambiental, também acentua essa sensação de medo. Medo de que isso possa se espalhar, possa atingir minha propriedade, prejudicar a minha saúde. E naturalmente isso acaba criando um ambiente mais favorável para regulações mais restritivas”, aponta Vargas.
Fazer os ajustes demandados pela agropecuária brasileira no Inventário Nacional de Emissões de Gases de Efeito Estufa é uma tarefa que, além da vontade política de Brasília, depende também de convencimento e argumentação técnico-científica junto ao Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), das Nações Unidas.
O ex-pesquisador da Embrapa e climatologista Eduardo Assad, que coordenou o último inventário nacional, de 2020, diz que o processo de ajustes é lento, mas pode ocorrer. “A mensuração que você vai usar tem que ser compatível com a de outros países, você vai comparar abacaxi com melão. Porém, está escrito também que os países podem adotar regras que sejam adaptadas ao que eles fazem”, explica.
Mudança do inventário exige mais participação nos fóruns climáticos
No inventário de 2020, Assad relata que houve tentativa de incluir as remoções efetuadas pela agropecuária, mas os técnicos do Ministério da Ciência e Tecnologia não acataram. “Na minha época, eles colocaram uma série de coisas, que faltavam dados, que não podia, não estava correto. O máximo que a gente conseguiu mostrar foi que o agro remove”.
Ele critica o setor agropecuário por chegar muito tarde ao debate, depois que “o calo apertou” em função das perdas na agricultura. “Boa parte do agro diz que não tem mudança climática, passou muito tempo falando isso. Então a gente tenta buscar os interlocutores que são equilibrados, e a maioria dos equilibrados assinou aquele documento”, pondera.
Assad defende participação ativa do agro nos fóruns de debate da mudança climática. “Nós estamos tentando fazer isso. Por exemplo, nesse inventário atual, ainda não entrou a remoção por pastagem nem as remoções por conta da agricultura de baixo carbono. Por que não entrou? Quem foi que não colocou isso? Por que são contra essas coisas? Tudo está em discussão. Vamos sentar lá com o Ministério da Ciência e Tecnologia e discutir porque isso não entrou”, pondera.
Saber "como o jogo é jogado"
O pesquisador defende que é possível, com diálogo, contemplar as demandas do setor agropecuário, de maneira a se ter uma contabilidade climática mais justa e adequada aos padrões tropicais da agricultura brasileira.
“O importante é saber como é que o jogo é jogado e por que essas coisas não entraram ainda. A gente já está tentando fazer isso há algum tempo”, assegura.
Antes da divulgação de novas metas climáticas, o Executivo vem realizando plenárias presenciais regionais do Plano Clima Participativo. Essas reuniões, contudo, apenas colhem sugestões. A deliberação final caberá ao Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, sob coordenação técnica do Ministério do Meio Ambiente.
Sobre as reivindicações e ponderações do setor agropecuário em relação ao Plano Clima, a Gazeta do Povo fez contato com a assessoria do Ministério do Meio Ambiente, ao qual a Secretaria da Mudança do Clima está subordinada. Não houve retorno, mas o espaço se mantém aberto.
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