No início do ano, a região de Flandres, na Bélgica, proibiu o abate de animais sem atordoamento prévio, o que reacendeu um velho debate que envolve ONGs de defesa do bem-estar animal, ideologias políticas e liberdade religiosa, já que a medida afeta diretamente os mercados consumidores de carne kosher e halal, ou seja, judeus e muçulmanos, respectivamente. De acordo com as leis desses povos, os animais precisam ser sacrificados cumprindo preceitos da lei judaica e dos rituais islâmicos, o que muitas vezes vai contra os métodos de insensibilização adotados pelos frigoríficos de alguns países europeus.
A boa notícia é que essas restrições podem favorecer a indústria de proteína animal brasileira, já que esse tipo de exportação, além de volume, tem valor agregado no preço. Atualmente, já somos o principal exportador de carne halal do mundo e o número de frigoríficos adaptados para o abate kosher no país deve dobrar nos próximos dois anos.
Além de Flanders, a região de Valônia também vai adotar a restrição aos abates religiosos a partir de setembro, e Bruxelas estuda fazer o mesmo. Fora a Bélgica, Noruega, Islândia, Suécia e Suíça também obrigam o atordoamento de animais antes do abate. Já Dinamarca e Finlândia exigem o atordoamento logo após a degola, o mesmo ocorre na Estônia. Na Alemanha e Áustria, os abates kosher e halal são permitidos apenas para abastecer os mercados internos, sendo vedada a exportação.
“Esse movimento de proibição não é isolado e nem recente. O motivo alegado é o bem-estar animal, só que existe uma série de agendas por trás disso, ideológicas, dos grupos de extrema-direita que apoiam a caça esportiva e querem proibir o abate religioso. De outro lado existem grupos radicais ambientalistas. Só que se essa fosse a verdadeira razão, as propostas trabalhariam métodos para melhorar o bem-estar animal, mas o que acontece é que acabaram rotulando na opinião pública o abate religioso como maus tratos aos animais”, afirma o consultor Felipe Kleiman, fundador da KLM Kosher Consultin, especialista em operações de abate kosher.
Segundo Kleiman, há muitas contradições nessas restrições – como na Bélgica, onde a caça esportiva é permitida. “Se discute na Holanda e na Polônia uma proibição parcial, querem proibir a exportação, o que vai acabar com o mercado de uma forma ou de outra. Segundo a lei judaica, o animal não pode estar inconsciente, não pode estar insensibilizado na hora do abate”, explica.
Conforme o especialista, algumas técnicas de insensibilização, como as pistolas de pressão – que golpeiam a cabeça dos bovinos fazendo o atordoamento antes de serem abatidos, para não sentirem dor – geralmente provocam a morte cerebral do animal, o que violaria a lei judaica, que diz que o animal precisa estar “íntegro” na hora do abate, ou seja, desperto e capaz de exercer seu comportamento natural, mas nunca pode estar morto.
Novo mercado
Para o Brasil, segundo Kleiman, esta é uma oportunidade de explorar um nicho novo de mercado, onde quem começar primeiro vai levar vantagem. “A Europa sempre foi autossuficiente na carne halal e kosher, e isso vai mudar. A procura pelo abate halal deve crescer, pois estamos falando de uma comunidade de 30 milhões de pessoas – 27 milhões delas são muçulmanos, sendo que 16% deles não abrem mão do abate halal tradicional. E os demais 3 milhões são judeus”, observa.
Caso a Polônia, um dos principais produtores de carne para o Velho Continente e que também estuda proibir o abate sem sensibilização animal, pare de produzir carne kosher e halal, a oportunidade para o Brasil ficará ainda mais clara, especialmente na esteira do recém firmado acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, que deve facilitar ainda mais as trocas comerciais com o bloco europeu.
Só para se ter uma ideia, no ano passado o Brasil exportou US$ 70 milhões (14 mil toneladas) de carne bovina para Israel. Número que poderia chegar a 20 mil toneladas. De acordo com Kleiman, enquanto o Chile (um dos países mais exigentes em relação à qualidade da carne) paga US$ 4,3 mil a tonelada de dianteiro bovino tradicional, o mercado kosher pagaria US$ 5,1 mil a tonelada.
O Egito, grande consumidor da nossa carne halal, por outro lado, paga em média US$ 3,4 mil a tonelada. Atualmente, segundo o consultor, existem 7 plantas de abate kosher no Brasil, 5 delas estão ativas. Nos próximos dois anos esse número deve chegar a 10, o que demonstra que os frigoríficos estão investindo pesado nesse segmento.
Kleiman explica ainda que o custo para montar um frigorífico de abate kosher não é alto para a realidade do setor. Enquanto uma planta industrial que abate mil cabeças de gado paga até R$ 3 milhões por dia somente na compra de gado, o custo de adaptação de um frigorífico para fazer o abate kosher no qual Kleiman está realizando consultoria no Nordeste está orçado em R$ 6 milhões. “O mercado é interessante não só para as grandes empresas, mas também para aquelas que tem uma única planta frigorífica, por exemplo, pois têm a chance de fazer um produto mais bem acabado, de qualidade, e com valor agregado.”
Outra vantagem brasileira é o fato de termos tecnologia própria para produção dos boxes especiais que imobilizam o gado para o abate, que é uma exigência normativa israelense. “As empresas que se adaptaram para atender Israel estão com sua estrutura perfeitamente adequada para atender a Europa, num alto patamar de bem-estar animal”, diz Kleiman. Além do Brasil, o Uruguai e a Argentina também têm condições de competir nesse mercado, segundo ele.
Frango na dianteira
No caso da carne halal, o Brasil já saiu na frente com o frango. Nosso principal comprador – a Arábia Saudita – não tolera qualquer insensibilização dos animais na hora do abate. É aí que os nossos frigoríficos levam vantagem, segundo Ali Ahmad Saifi, diretor executivo da CDIAL Halal, empresa que responde por cerca de 60% de todo o frango certificado no país de acordo com a lei islâmica. “As empresas brasileiras sempre conseguem se adaptar a situações que nem elas achavam que poderiam”, observa.
De acordo com Saifi, que será um dos palestrantes do 7º Fórum de Agricultura da América do Sul, que ocorrerá em Curitiba (PR) no início de setembro, algumas linhas religiosas muçulmanas entendem que o abate halal deve ser feito sem a insensibilização dos animais, mas não são todos os países islâmicos que exigem que seja feito dessa maneira. É o caso da Malásia, que aceita a insensibilização por choque elétrico ou com pistola de pressão não perfurante, mas somente em último caso. Já os Emirados Árabes não toleram nenhuma técnica desse tipo.
Atualmente, a Arábia Saudita importa 450 mil toneladas/ano de carne de frango halal brasileira. De carne bovina são outras 36 mil toneladas/ano. Segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), quase 50% das exportações de frango brasileiras em 2018 foram de produtos halal, somando 1,97 milhão de toneladas. Segundo Saifi, hoje existem 200 plantas frigoríficas no país adaptadas para esse tipo de abate.
Além do mercado árabe, o Brasil já abastece também a Europa, onde a comunidade islâmica é grande, além de ter turistas muçulmanos que frequentam o continente e onde há muitos restaurantes especializados em comida halal. “Logo que o acordo do Mercosul com a Europa vingar, apesar de ter a questão das cotas, e quando o Brasil tiver acesso a esse mercado, a carne halal será mais um bônus para o país”, diz Saifi.
Kosher
Kosher quer dizer “permitido - adequado ao consumo” e aplica-se no caso de alimentos que respeitam a determinação da lei judaica. No caso do abate, o animal recebe um corte profundo e uniforme na garganta, usando-se uma faca bem afiada e de formato especial. Depois disso, os animais passam por uma inspeção de seus órgãos internos. A carne, então, deve passar por um processo de salga antes da desossa. As peças são retiradas sempre da parte dianteira do boi, mas podem ser incluídos o contra-filé e o filé mignon, que são da região lombar. Pela lei judaica, não se pode consumir o nervo ciático do bovino, que cobre toda a região traseira do animal. A dificuldade para retirá-lo na prática inviabiliza o uso dessa parte do boi.
Halal
Halal significa "lícito" e tem a ver com as regras estabelecidas pela sharia, a lei islâmica. Os produtos halal não devem ter vestígio de itens proibidos aos muçulmanos, como a carne suína ou seus derivados, além do álcool. No caso do abate, o animal precisa ser degolado por um muçulmano, que diz em árabe, voltando-se para Meca, “em nome de Deus, Deus é maior!” antes de fazer um corte em formato de meia lua no pescoço do animal. Em um só golpe ele precisa cortar a veia jugular e a traqueia do bicho. Para isso, a faca precisa estar bem afiada.
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