Os produtores rurais brasileiros estão sob pressão em direções opostas, como se fossem puxados num cabo de guerra. Na área ambiental, além de serem cobrados por uma legislação que está entre as mais restritivas do globo, vivem sob ameaça constante de boicote por parte de ONGs, ambientalistas e países europeus, caso se atrevam a converter novas áreas à agricultura.
De outro lado, se não fazem uso de pelo menos 80% do potencial produtivo de suas terras, estão sujeitos à desapropriação para fins de reforma agrária. O cenário ganhou contornos preocupantes após decisão recente do STF, que concluiu que a propriedade produtiva é passível de desapropriação caso não esteja cumprindo integralmente a função social – o que envolve, também, critérios porosos ao subjetivismo como “uso adequado dos recursos naturais” e “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores”.
Ou seja, se abrir a terra é boicotado e multado; se não abrir, a propriedade pode cair na “malha fina fundiária” como supostamente improdutiva.
A decisão da mais alta corte do país relativiza o Artigo 185 da Constituição, que declara expressamente que a propriedade produtiva, assim como a pequena e a média propriedade rural, “são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária”. Em reação ao STF, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) pediu urgência na apreciação do projeto de lei 4.357/2023, do deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS), que reafirma a proibição de se desapropriar terras produtivas.
Paradoxo entre leis ambientais e fundiárias
O ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no governo de Jair Bolsonaro, Geraldo Mello Filho, diz que o paradoxo da legislação fundiária versus legislação ambiental traz insegurança jurídica ao campo: “Se por um lado as políticas ambientais defendem que se aumentem as áreas preservadas, ou estimulam que se faça isso, a legislação fundiária pune”.
A situação teria agravantes na região amazônica, em que é comum os proprietários entrarem com pedido de licença para desmatar dentro do que é permitido por lei, e o Estado não se manifesta. “O Estado simplesmente não responde, daí passam anos, a pessoa não consegue abrir e, ao não conseguir abrir, está sujeita a essa improdutividade. E se resolver abrir, mesmo no limite da legalidade, ou seja, abrindo dentro do que poderia se tivesse licença, vai receber uma multa”, exemplifica.
A questão foi colocada pela Gazeta do Povo para o Incra: uma propriedade com excedente de Reserva Legal que pudesse dar lugar à conversão para agricultura – maximizando o uso da terra – mas não o faz, é passível de ser autuada e ter questionado o cumprimento de sua função social?
Incra confirma risco de desapropriação
O Incra respondeu: “O imóvel nessas condições está suscetível a desapropriação pela Lei 8629/93. Caso o interesse do proprietário seja o de preservar além do mínimo legalmente exigido, ele pode averbar o excedente como reserva legal ou criar/registrar uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), cujo trâmite é feito com o órgão estaduais de meio ambiente. As áreas legalmente protegidas/preservação não entram no cálculo do GUT”.
Ou seja, se não averbar seus excedentes de vegetação como Reserva Legal ou transformá-los em RPPN, o produtor de fato corre o risco de ter as terras preservadas desapropriadas.
O entendimento do Incra, contudo, pode ser contestado à luz da Lei de Pagamento por Serviços Ambientais (Lei 14.119/2021), aprovada pelo Congresso e sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro. O Artigo 24, inciso V, acrescentou como “não aproveitáveis” para o potencial agrícola de uma propriedade as áreas com remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada não protegidas pela legislação ambiental e que não estejam em qualquer projeto de exploração econômica.
Em teoria, pelo menos, os produtores podem argumentar que mantêm a função social das terras, mesmo com um percentual inferior a 80% de utilização. Porque a lei complementar considerou ser possível que o proprietário mantenha uma área nativa conservada por voluntariedade, sem ser punido por isso.
Brasil é protagonista na segurança alimentar global
Para garantir a segurança alimentar global, o mundo espera que o Brasil continue a incrementar a produção de alimentos. Projeção do Departamento e Agricultura dos Estados Unidos aponta que o país tem "amplas reservas de terra e água e ainda muitas áreas agricultáveis com potencial de aproveitamento". O país deverá acrescentar 20 milhões de hectares à produção até 2031, um crescimento de 2,6% ao ano, que deve resultar em uma produção 76% maior de grãos e 41% maior de sementes oleaginosas, comparativamente a 2021.
Essas estimativas, no entanto, não levam em consideração eventuais interferências políticas. Para o produtor Antonio Galván, presidente da Associação dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja), a preocupação maior está na insegurança jurídica, agravada por decisões do STF e animosidade esquerdista do governo. “O que são esses 80% de uso da terra? São da área que já está convertida? Ou são 80% daquilo que você é dono? Eles não têm uma regra clara. O problema do Brasil está na segurança jurídica”, se queixa.
O tema da função social da terra, que tinha ficado adormecido por vários anos, foi retomado agora pelo STF num contexto altamente politizado, observa a advogada Rafaela Parra, especialista em direito agrário. Ela assegura, contudo, que alguns produtores já têm apresentado defesa junto ao Incra, citando o novo regulamento da Lei de Pagamento por Serviços Ambientais, que autoriza a manutenção de áreas verdes excedentes na propriedade, sem que isso se configure não aproveitamento do grau de 80% de uso da terra.
O que pode ajudar a vencer esse paradoxo entre o que exigem as legislações ambiental e fundiária é a expansão e o amadurecimento do mercado de créditos de carbono. A monetização das áreas verdes preservadas pelos produtores teria o potencial de esvaziar o debate sobre o cumprimento da função social da propriedade.
Advogada aponta risco de injustiça com quem preserva
“Vão surgir projetos novos, do ponto de vista ambiental, de preservação, que devem ser considerados para cálculo de produtividade dessas áreas, porque vão estar gerando créditos de carbono, por exemplo, ou porque vão estar aptos a projetos de pagamento por serviços ambientais. Então, eles terão que entrar no cálculo de produtividade dessas áreas, sob pena de se estar cometendo injustiça na interpretação da legislação. Agora, se os 80% são corretos, justos ou não, aí a gente entra num embate que cabe ao Legislativo”, avalia Parra.
O jurista Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia da Fundação Getulio Vargas (FGV), resume a dicotomia vivida pelos produtores. “De um lado, é ONG ambiental e país europeu ameaçando o proprietário brasileiro que abre a propriedade para ser mais produtivo. Se desmatar, ainda que a lei autorize, não vende. De outro lado, é ONG social e lideranças nacionais que ameaçam o produtor com expropriação, se não utilizar a propriedade por inteiro. Se for ‘produtivo demais’, não pode vender. Se for ‘produtivo de menos’, pode perder a terra. Tudo, curiosamente, em nome do interesse público”, sublinha.
Governo incentiva abrir terras, governo pune abrir terras
Não é de hoje que o governo brasileiro trata de forma contraditória os agricultores. Nos anos 1970 e 1980, os colonos que foram atraídos pelo governo militar à Amazônia eram incentivados a abrir pelo menos 50% de toda a área de suas propriedades, sob pena de não conquistar a titulação das terras.
Com o advento do Código Florestal, em 2012, as exigências passaram a ser em direção oposta, e a preservação ambiental nativa (Reserva Legal) se tornou obrigatória em 80% da área das propriedades no bioma amazônico, 35% nas áreas de cerrado localizadas na Amazônia Legal e 20% nas demais regiões do país. O produtor rural, de qualquer maneira, segue sob pressão bipolar: tem que preservar ao máximo e explorar ao máximo, simultaneamente.
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